Estamos muito mal acostumados com a medicina moderna. Até poucas décadas atrás, antes do desenvolvimento de antibióticos, garganta inflamada era causa de morte comum. Hoje, para muitas infecções, até mesmo para o HIV, existem medicamentos que se não resolvem, ajudam. Mas não foi o que aconteceu nos primeiros anos da AIDS.
Para os primeiros pacientes, e entenda-se aqui milhares de pessoas, o diagnóstico de AIDS era sentença certa de morte. Médicos, parentes e amigos eram obrigados a ver de mãos atadas pacientes com menos de 30 anos morrendo de infecções banais, como uma forma de pneumonia que até então matava apenas crianças e idosos. E, quando se descobriu que a doença era causada por um vírus, a perspectiva não melhorou muito.
O remédio ideal para combater uma bactéria, um fungo, um vírus, um câncer ou qualquer outro organismo indesejável que possa estar crescendo em nosso corpo, é aquele que ataca apenas o outro. Antibióticos costumam ser medicamentos sem grandes efeitos colaterais justamente por que atacam estruturas que apenas as bactérias têm. Fungos são um pouco mais complicados, pois são organismos mais parecidos conosco, ao ponto de muitos antifúngicos serem de aplicação local, como pomadas, pois são tóxicos se ingeridos.
Os vírus e o câncer são o auge deste problema. Tumores são células do corpo crescendo descontroladamente, e vírus são parasitas que usam quase exclusivamente apenas estruturas de nossas células para se reproduzir. Isso deixa pouquíssimas alternativas para serem atacados.
No caso dos tumores, os quimioterápicos geralmente fazem tão mal para nossas células quanto a eles, vide os efeitos colaterais, e o tratamento consiste em fazem com que eles sucumbam antes do paciente.
No caso do HIV, a saída foi partir para o primeiro e maior desenvolvimento inteligente de medicamentos que já existiu. Longe de ser um caso onde uma empresa farmacêutica está escondendo uma terapia que desenvolveu enquanto lucra com paliativos que enganam os pacientes, o HIV, assim como o câncer, o melhor exemplo de desenvolvimento coletivo de terapias.
O primeiro medicamento utilizado contra o HIV foi o AZT, inicialmente testado como medicamento antitumoral. Ele funciona impedindo a célula de produzir moléculas de DNA, mas não foi muito eficaz contra os tumores, pois a célula consegue tirá-lo do DNA e continuar. Já o HIV precisa de uma proteína própria para poder transformar seu RNA em DNA, e não consegue se livrar do AZT.
Com pacientes morrendo sem a menor esperança e médicos e pesquisadores tentando de tudo para combater a AIDS, o AZT se revelou uma das poucas e melhores possibilidades de cura e tratamento.
Quase todos os outros medicamentos do coquetel anti-HIV que surgiram depois foram planejados. Além de sequenciar o genoma do HIV, os pesquisadores isolaram e estudaram todos os componentes do vírus, em busca de alvos que só ele possui, e desenharam moléculas que se encaixam nestes alvos, ao mesmo tempo evitando nossos componentes. O problema de uma terapia que cure o paciente do HIV está no vírus, e não no medicamento.
Vírus em geral são capazes de mudar seus genomas, ou seja, mutar em uma velocidade maior do que qualquer outro organismo. O influenza é capaz de mudar tão rapidamente que, no ano seguinte a uma gripe, seu sistema imune não o reconhece mais, e você pode ficar doente novamente. Por isso, a vacina contra a gripe é anual. Já o HIV consegue fazer o mesmo em uma semana.
Quando uma pessoa se infecta com o HIV, ele muta tão rapidamente que o sistema imune nunca está pronto para atacá-lo. Nossas células estão sempre buscando o vírus de uma ou duas semanas atrás, enquanto o atual continua invadindo e matando as células imunes que deveriam combatê-lo. O saldo final desta guerra quase sempre é o fim do sistema imune e a invasão de infecções oportunistas, típicas da AIDS, daí o nome imunodeficiência.
Da mesma forma que o HIV muta e escapa da imunidade, ele muta e escapa dos remédios. Quando os pacientes começaram a ser tratados com o AZT, em pouco tempo recuperavam o número ideal de células imunes no sangue, combatiam infecções oportunistas e melhoravam milagrosamente. Porém, em menos de seis meses, pioravam novamente e o medicamento perdia o efeito, independente da concentração. Dentro do paciente, variantes do HIV tinham sofrido mutações que mudaram a região onde o medicamento se ligava, e estes vírus resistentes substituíram os anteriores.
É por conta destas mutações que precisamos de tantas drogas contra o HIV, e o paciente precisa tomar várias delas ao mesmo tempo, o coquetel. Com o ataque simultâneo a vários alvos do vírus, torna-se muito mais difícil de ele mutar o suficiente para escapar. Como ele se integra ao genoma da célula infectada, e pode infectar células que vivem por anos, mesmo que não haja HIV replicando no sangue ou que os níveis estejam indetectáveis (como no caso do Magic Johnson), o paciente não pode parar de se medicar, pois o vírus volta a se replicar assim que o tratamento é suspenso – apesar do pastor falar o contrário.
A rápida evolução do HIV também é problema no caso da vacina. Até hoje,
estamos buscando uma região do vírus que seja reconhecida e atacada pelo sistema imune sem que ele possa escapar, mas ele está longe de ser um alvo fácil como a varíola foi. Em termos francos: qualquer doença que seria facilmente contida com uma vacina simples já o foi. As que estão aqui até hoje, como dengue e hepatite C, não tem vacina por motivos técnicos: porque não é fácil.
Algumas pessoas são capazes de conter o vírus sem tratamento, ou mesmo não serem infectadas após repetidas exposições. De vez em quando, o sistema imune ataca uma região viral que não pode ser mudada, e desenvolve uma resposta que mantém o HIV completamente sob controle. Longe de esconder estas pessoas, os pesquisadores são os primeiros a correr para estudá-las, em busca de uma vacina ou medicamento.
Atualmente, uma série de novos tratamentos contra o HIV e outras doenças está sendo desenvolvida. Incluindo proteínas como o DRACO capazes de reconhecer o genoma de RNA que apenas os vírus contém, seguindo o princípio de atacar alvos que não causam efeito colateral. Muitos deles longe de grandes centros farmacêuticos, sendo pesquisados por pessoas que adorariam ganhar um Nobel e muito dinheiro com a próxima cura.
O HIV é um problema de saúde seríssimo, responsável por diminuir a expectativa de vida de muitos países no sul da África para menos de 50 anos. Ele infecta células imunes, as destrói causando a AIDS, e pode ser controlado com o coquetel. E, acima de tudo, pode ser totalmente evitado com o uso de preservativos, e está pouco se fodendo se você acredita em tudo que falei ou não.
A série “AIDS desconstruída”
Nosso objetivo é desmistificar um tema ainda espinhoso pra muita gente. O primeiro artigo aborda o mito da AIDS ter sido criada para acabar com os gays e o segundo, com os afrodescendentes. No terceiro artigo, explora a lenda urbana de que existe uma vacina ou tratamento para AIDS sendo escondido pelas autoridades. Vale a pena ler.
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