1.

Por volta dos dez anos, no quarto escuro, os olhos fechados, muitas vezes imaginei percorrer com calma a pequena cidade onde passei a infância. Relembrava vividamente as ruas de barro esburacado, as quadras inteiras sem nenhuma casa, a calma floresta, e a promessa das falésias, do mar, se você andasse o suficiente.

Admirava todos os lugares que antes me eram tão cotidianos, e me afligia uma profunda saudade e culpa por perceber que não havia apreciado o suficiente esses espaços enquanto estava lá, por não conseguir notar sua beleza como agora.

2.

Escrevendo sobre a capacidade de apreciar nossos entornos, sentia que me faltava algo importante. Me lembrei então dessa experiência na infância, e creio que era com isso que queria trabalhar. Responder, minimamente que fosse, essa pergunta primordial. Por que parece que apreciamos melhor os lugares, as vivências, quando já não estamos mais lá? Por que elas parecem mais belas depois que passaram?

O que me faltava entender era essa temporalidade natural das coisas. Nenhuma das ruas por onde eu andava existe mais, a mata quase também não. As falésias iriam estar sempre lá, a uns 20 minutos de bicicleta, na época só não me ocorreu que quem não iria estar era eu, e que alguma visita, necessariamente, ia ser a última.

Essa verdade, de que a vida cotidiana é singular e impermanente, nos escapa com facilidade, afunda no ruído da mente normalmente distraída. Eu andava pelas ruas pensando em onde queria chegar, no que iria comer, sem a perspectiva que aquela talvez fosse ser a última vez que iria ver aquela esquina em particular.

Anos depois, à noite, na cama, era essa importantíssima perspectiva que me fazia ver com tanto afeto todos aqueles lugares agora inexistentes. Era mais bonito porque agora eu andava nas ruas da memória com a sabedoria de que todos aqueles lugares, aquelas composições, eram construções impermanentes e só existiriam por um instante.

É difícil manter essa perspectiva, mas ela é um recurso poderoso. É como a melancolia e o afeto que surge naturalmente em nós e em quem amamos nos momentos anteriores a um longo período de separação que sabemos claramente se aproximar. É a mesma pessoa, o mesmo ambiente, mas a promessa da sua falta deixa mais claro o valor da sua existência.

Agora, se sabemos dessa fragilidade olhando o passado, por que é tão difícil trazer essa visão sensível e afetuosa para o nosso dia-a-dia?

"A morte é nossa amiga precisamente porque nos põe em presença absoluta e apaixonada com tudo que está aqui, que é natural, que é amor".Rainer Maria Rilke (Carta à Condessa Margot Sizzo-Noris-Crouy – 1923)

3.

É difícil apreciar o presente justamente porque não sabemos estar presentes.

Lembrar do passado, esse passado da memória, muito peculiar e editado, é frequentemente uma forma de continuar uma narrativa interna, de estabelecer um senso de "eu" em ambientes que nos são estranhos.

Sonhamos acordados ou ruminamos o passado quase sempre por não sabermos ficar bem onde estamos. Precisamos evocar cenas e histórias para nos dar o mínimo de sustentação. No caso da ruminação é pior: nos sentimos tão dependentes de histórias específicas para estarmos bem que preferimos imaginar repetidamente e sem produtividade nenhuma como aquilo poderia ter sido diferente, como foi e como acabou, do que simplesmente ficarmos presentes.

4.

Estar presente e apreciar nossos entornos é difícil não só por que nossa mente geralmente opera de forma restrita e causal, presa a histórias e imagens e passando sempre de uma tarefa à outra, mas também por que recorrentemente é difícil viver e aceitar o presente, a circunstância concreta que nos envolve.

É como sonhar com quem se está apaixonado enquanto se espera o ônibus na rodoviária. A experiência, a percepção imediata que o mundo lhe oferece é cinza, pesada, desconexa, até suplicante e ofensiva. Mas o espaço mental interno é agradável, proporciona imagens e sensações que sustentam nosso ânimo.

Dá medo ficarmos presos ao concreto, estarmos presente em um lugar sem ideia de como sustentar nossa energia ou como nos relacionar com aquele ambiente. Por isso uma narrativa e imagens internas são tão poderosas, nos dão uma fonte de ânimo externa, independente do ambiente e das circunstâncias imediatas.

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Se o nosso estado natural, sem algo imediato para fazer ou pensar sobre, é inquieto, insatisfeito ou aflito, é instintivo recorrermos repetidamente à aquilo que nos traz o mínimo de alívio ou aumenta nosso ânimo. O uso compulsivo do celular é um ótimo exemplo contemporâneo disso.

Se as coisas têm o poder de nos balançar, é muito difícil estar aberto às inúmeras e desconexas manifestações à nossa volta. Por isso nos refugiamos em espaços mentais já conhecidos. A imaginação e a memória viram uma casa móvel, um esconderijo, e frequentemente, uma prisão.

Ou seja, não nos falta apenas a perspectiva de temporalidade e impermanência, o diagnóstico é pior: somos inábeis em apreciar a maioria dos nossos momentos e ambientes, temos dificuldade em apreciar a nossa vida enquanto ela acontece por que nosso estado padrão é de insatisfação e desconforto.

5.

Acredito que o que nos falta é serenidade. Uma quietude natural onde possamos repousar para daí olhar o mundo com a clareza e a atenção necessária. Uma capacidade de sustentação autônoma do nosso ânimo e bem-estar que leva a uma amplidão perceptiva.

Vem dai a liberdade de poder ficar, de não precisar agir. Se você não consegue parar por um instante e ficar bem, se não consegue simplesmente apreciar suas possibilidades e evitar agir, as possibilidades que você de fato tem de ação, de experiência, são incrivelmente limitadas. A talvez apaziguar um pequeno desejo imediato ou a seguir encadeando uma sequência de pensamento.

Que fique claro que serenidade não é mansidão, mas um tipo de clareza, de acuidade e espacialidade mental. Nossa agitação costumeira é um tipo de torpor, de ação desenfreada e restrita, e a serenidade é seu oposto.

Saber sustentar nosso ânimo é uma liberdade, não ficamos dependentes de nenhum lugar ou situação específica para fazer isso por nós. Estando bem por termos nos balanceado internamente, temos uma base sólida para poder estar em e apreciar qualquer espaço. Com isso nossas possibilidades se multiplicam.

6.

A base do problema, o que me faltava então, em tantos momentos da vida, era essa serenidade. A habilidade de apreciar o momento sem sentir que preciso fazer algo. Faz anos que não sinto mais culpa por não ter apreciado as ruas da infância, afinal, eu tinha seis anos. A pergunta que me faço, e que deveríamos nos fazer é: quanto ainda vivemos agitados e desatentos, deixando escapar a riqueza do nosso cotidiano? O quanto do que estamos vivendo vai ser relembrado não com satisfação e apreço, mas com nostalgia e culpa?

Um adendo: Fotografias

O Pier: João Pessoa, 2005

Talvez uma das grandes potencialidades das fotografias que guardamos seja não só conservar a memória uma de experiência que tivemos, mas também nos lembrar de como as coisas deixam de existir. Apreciar uma foto antiga pode ser uma experiência poderosa em nos mostrar o quanto as coisas mudaram, ou quantas qualidades haviam no passado que não notávamos e desapareceram sem percebermos.

Com mais espaço entre nós e um ambiente, uma situação, também fica mais claro a quantidade de possibilidades que não visualizávamos naqueles momentos. Culpa surge, muitas vezes, não por não termos feito isso ou aquilo, mas por nem ao menos termos enxergado que poderíamos ter apreciado ou agido de forma diferente.

E com um pouco de esforço, podemos trazer essa visão para o presente. Quão vasta é nossa situação atual? O que importa para nós hoje? O que está desaparecendo?

We are here on the planet only once and might as well get a feel for the place. We might as well get a feel for the fringes and hollows in which life is lived.Annie Dillard (Teaching a Stone to Talk – 1988)

Bernardo Vailati

Designer de experiências digitais que em 2018 tirou um ano sabático para aprender a escrever e ponderar a vida um pouco mais profundamente. Também explora a fotografia e tem um diário visual de pequenas poéticas no Instagram.