“Esta é você. De olhos fechados, na chuva. Nunca pensou que fosse fazer algo assim. Você nunca se viu como uma dessas pessoas que gostam de olhar para a lua ou que passam horas contemplando as ondas, o pôr-do-sol. Deve saber de que tipo de pessoas estou falando. Talvez não saiba.
Seja como for, você gosta de ficar assim, lutando contra o frio e sentindo a água penetrando sua camisa e tocando sua pele. E da sensação do chão ficando fofo sob seus pés e do cheiro. E do som da chuva batendo nas folhas. De todas as coisas que estão nos livros que você não leu.” –Ann, em Minha Vida Sem Mim
Essa é Ann, a personagem de que, mal conhecemos, descobrimos que irá morrer em pouco tempo.
Ann é faxineira de uma universidade – que agora nunca vai frequentar – e vive com o marido e duas filhas em um trailer no quintal da casa de sua mãe, uma senhora amargurada cujo marido está na prisão. Ann tem 23 anos, um tumor que está tomando conta do seu corpo e, apesar de viver relativamente bem com sua família, tem também um punhado de sonhos e projetos não realizados. A morte a pegou de surpresa.
A vida comum de Ann poderia ser a sua. Temos consciência da morte em alguma medida. Mas poucas são as pessoas que acreditam que poderia acontecer amanhã ou talvez no ano que vem. Eu mesma tenho a sensação que não acredito.
Pois morreremos, mesmo com toda opressão do cotidiano. Mesmo com a dificuldade de viver nesta ou naquela condição, com desejos, anseios, pensamentos, projeções, mesmo com a rotina que não nos dá descanso ou com nossa falta de controle. A consciência da morte pode até não nos proporcionar algum alívio, mas com certeza nos coloca pra dividir um mesmo barco.
A questão é que Ann pensava que não entraria neste barco tão cedo e agora sente que nem todas as drogas do mundo podem tirar “a sensação de que toda vida foi um sonho e só agora está acordando”.
E um sonho que passou rápido demais.
Ann não tem nem mesmo tempo para se colocar como a principal vítima de uma história de péssimo gosto. Precisa dominar o que sobrou o mais depressa possível.
“Pensar, você não está acostumada a pensar. Você nunca tem tempo pra pensar. Talvez esteja tão sem prática que se esqueceu como se pensa.”
Resolve então dispensar exames e medicamentos e não conta sobre a doença a ninguém, assumindo uma lista de 10 coisas para fazer antes de morrer. A lista de Ann, como sua própria vida, não tem espaço para o que as pessoas costumam chamar de “grandes acontecimentos”.
Ainda assim, os desejos ali postos parecem contar uma história de encontros, desencontros, intensidade:
- Dizer às minhas filhas, várias vezes ao dia, que eu as amo.
- Encontrar uma nova esposa para o Don, que as meninas gostem.
- Gravar mensagens de aniversário para as meninas até os 18 anos.
- Ir a Whalebay Beach com todo mundo e fazer um piquenique.
- Fumar e beber o quanto eu quiser.
- Dizer o que estou pensando.
- Fazer amor com outros homens para ver como é.
- Fazer alguém se apaixonar por mim.
- Visitar o papai na cadeia.
- Colocar unhas postiças (e fazer algo com o cabelo).
É fácil se reconhecer em Ann. Assim como é fácil acreditar na solidez de nossas convicções. Deixar de reconhecer e compartilhar nosso tempo, oportunidades, emoções, privilégios. De ser fiéis a nós mesmos sem perder o cuidado com tudo o que nos cerca.
E, de repente, podemos nos deparar com a possível descoberta que as pessoas em volta não são coadjuvantes ou figurantes da nossa vida. Não somos os protagonistas das histórias que contamos. Nossa vida não é a medida de todas as coisas.
Nossa vida existe sem nós.
O controle que tanto ansiamos não passa de uma ilusão fraca e temporária diante do fluxo dinâmico de acontecimentos.
“Agora você vê as coisas claramente. Vê todas essas vidas emprestadas, vozes emprestadas. Você olha para as coisas que não pode comprar. Agora você nem quer comprar. As coisas que ainda estarão aqui depois que você se for, quando você morrer.
Aí, você se dá conta de que todas as coisas nas vitrines brilhantes, todos os modelos dos catálogos, todas as cores, as ofertas especiais, as receitas da televisão, aquele monte de comida gordurosa, tudo está lá para nos afastar da morte.
E não funciona.”
Morrer e viver são oportunidades que desperdiçamos com freqüência. A morte não é o contrário da vida. A morte nos aproxima da vida. Como Ann, só acreditamos de verdade na possibilidade de morrer e de viver ao escutar:
“Você tem um tumor nos dois ovários. Atingiu o estômago e começa a se espalhar para o fígado. Receio que não há nada que possamos fazer”.
Talvez, não seja preciso chegar tão perto.
Mas contemplar essa possibilidade pode oferecer a chance de mudar perspectivas, questionar nossas ações e a maneira como nos relacionamos com as pessoas. Acredite, seu tempo é limitado. Esta vida é provisória.
A consciência da morte, que é apenas uma das manifestações da impermanência de todas as coisas, pode ensinar princípios. Talvez um pouco de lucidez, entrega, silêncio e calma. Talvez. Na morte, nada se perde, somente a ilusão de que possuíamos pessoas, lugares, momentos, coisas.
Estar presente na própria vida não depende de estar vivo ou morto. Mesmo antes de morrer, sua vida já pode estar sem você.
E pode ser que não haja tempo para tentar cumprir uma lista de desejos.
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