A irritabilidade é a tendência de ficar chateado por razões que parecem – para os outros – ser bastante irrelevantes.
Seu parceiro pergunta como foi o dia de trabalho, mas o jeito com que perguntou o faz sentir-se intensamente agitado. Seu companheiro está dispondo os talheres na mesa para o jantar e você menciona (e não é a primeira vez) que o garfo deve ficar do lado esquerdo, e não do direito. Ele então imediatamente solta um enorme suspiro e atira os talheres no chão, dizendo que, foda-se, então faça você, já que é quem entende do assunto. Foi a mais irrelevante das críticas, e tecnicamente correta. Mas agora a explosão já aconteceu.
Há muita irritabilidade ao nosso redor, e ela tem um enorme custo diário nas nossas vidas coletivas, e, portanto, é adequado que fiquemos muito curiosos a seu respeito: o que está de fato acontecendo com a pessoa que se irrita? Por que está, no fundo, ficando tão agitada? E em vez de culpá-la por ficar tão perturbada com coisas “tão pequenas”, devemos a ela enfim descobrir porque, de fato, essas coisas talvez não sejam tão pequenas no fim das contas.
A jornada começa com o reconhecimento do papel do medo na irritabilidade nos casais. Por trás da maioria dos arroubos há tentativas mal engendradas de ensinar algo para o outro.
Há coisas que gostaríamos de apontar, defeitos que somos capazes de discernir, comentários que achamos que temos que fazer, mas nossa consciência sobre como proceder é apressada e histérica.
Acabamos fazendo discursos improvisados e malvados, que não carregam nenhum traço da legitimidade (ou mesmo da nobreza) do ato de aconselhar.
E quando nossos parceiros estão ouvindo essas “lições” irritadas, eles, é claro, rapidamente ficam na defensiva, e se tornam impermeáveis a essas sugestões que mais parecem assaltos sem sentido e de má vontade com relação a suas próprias naturezas do que gentis e cuidadosas tentativas de tratar de aspectos problemáticos da vida a dois.
A calma, que é pré-requisito num professor, trata-se de certo grau de indiferença com relação ao sucesso ou fracasso na lição. Naturalmente queremos que as coisas deem certo, mas se um aluno difícil roda em trigonometria, é – fundamentalmente – problema só dele. Os temperamentos podem ficar equilibrados porque os alunos individuais não tem tanto poder sobre a vida de seus professores. Felizmente, já que não se importar tanto se torna um aspecto crítico para uma pedagogia bem-sucedida.
Ainda assim, esta não é uma opção aberta ao temido companheiro irritável. Ele se sente inelutavelmente levado a apresentar suas “lições” de um jeito cataclísmico, agitado (a porta bate muito forte), mas não porque sejam loucos ou malvados (embora se possa ser facilmente levado a concluir isso), e sim porque sentem muito medo: aterrorizados em gastar os anos que lhes restam nesse planeta na companhia de alguém que não parece compreender de forma alguma um ponto crucial sobre a arte da conversa, ou a disposição dos talheres na mesa, ou o momento certo de chamar um táxi.
Sabemos intuitivamente, quando ensinando uma criança, que somente o cuidado mais extremo e a paciência funcionam: não se deve nunca gritar, se deve usar de tato extraordinário, é preciso fazer dez elogios para cada comentário negativo, e é preciso dispor de muito tempo…
Mas essa sabedoria infelizmente esquecemos quando se trata da sala de aula do amor: aumentar as ameaças raramente apressa o desenvolvimento. Quando nosso orgulho é ferido, nossa integridade é ameaçada e nossa autoestima é violada, não nos tornamos mais razoáveis, mais dados a aceitar a responsabilidade e mais precisos com relação a nossas fraquezas.
A reclamação contra a pessoa irritável é que ela está ficando incomodada por “nada”. Mas os símbolos oferecem uma forma de ver como um detalhe pode representar algo muito maior e mais sério. A sacola de compras colocada sobre a mesa errada não incomoda por si mesma. Mas simbolicamente representa que seu parceiro não se importa com a ordem doméstica; causa confusão; é bagunceiro. Ou a pergunta sobre como foi o dia é vivenciada como um símbolo de questionamento, uma falta de privacidade e uma humilhação (uma vez que nossos dias raramente se passam assim tão bem).
Idealmente a solução é se concentrar no que seria a questão maior. Filosofias de vida inteiras se rebatem sob a superfície de brigas aparentemente desimportantes. As irritações são indicações externas de debates armadilhados entre concepções antagonistas da existência. E é nos temas mais amplos que precisamos tentar chegar.
Em meio às discussões, podemos até mesmo nos deparar com aquela verdade surpreendentemente perene sobre os relacionamentos: que a outra pessoa não é uma extensão de nós mesmos que, misteriosamente, não recebeu o recado. Ela é aquela coisa tão surpreendente: uma pessoa diferente, com uma psique própria, cheia de um sem número de razões sutis, excêntricas e imprevistas para pensar do jeito que pensa.
A decodificação pode levar tempo, talvez meia hora ou mais de exploração concentrada, observando algo que até agora parecia não merecer mais que um instante.
Pagamos um preço bem alto por essa negligência; cada conflito que termina em um empate amargo é um capilar bloqueado no coração do amor. As emoções acharam outros meios de fluir agora, mas com a acumulação de disputas não resolvidas, os caminhos ficaram mais cabeludos, e as possibilidades para a confiança e para a generosidade diminuirão.
Um último ponto. Pode ser apenas comida ou sono: quando um bebê está irritável, raramente precisamos pregar algo sobre autocontrole ou sobre um senso adequado de proporção. Não é que temamos que o intelecto da criança não seja capaz de assimilar essas coisas, mas porque temos uma explicação muito melhor sobre o que esta acontecendo. Sabemos por que estão agindo desse jeito – e ficando incomodados com qualquer coisinha: porque estão cansados, famintos, com calor ou tendo dificuldades com algum episódio digestivo.
O fato permanece de que as mesmas causas fisiológicas nos atingem durante toda a vida. Quando estamos cansados, ficamos chateados mais fácil; quando sentimos muita fome, qualquer coisa nos incomoda. Mas é imensamente difícil transferir a lição em generosidade (e precisão) que recebemos das crianças e a aplicar a alguém com diploma em administração, ou um brevê de piloto, ou com quem estamos casados a três anos e meio.
Devemos tentar ver a irritabilidade como o que ela é de fato: uma tentativa confusa, sem articulação, e muitas vezes cheia de vergonha de nos fazer compreender o quanto alguém está sofrendo, e quão urgentemente precisam de nossa ajuda. Deveríamos – se somos capazes – tentar ajudá-los.
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Esse texto foi publicado originalmente no Philosophers Mail e traduzido sob autorização.
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