Convivo com a síndrome do pânico desde os 16 anos. Não o tempo todo, mas tempo demais.

"O Grito" (1893) de Edvard Munch
“O Grito” (1893) de Edvard Munch

Comecou no final do colegial. Estava vendo uma terapeuta e, de repente, me sentia triste e chorava. Foi piorando, piorando até que a minha terapeuta achou que não me ajudava mais e me mandou para um psicoterapeuta, ou seja, um psiquiatra que também faz terapia.

Durante uma das sessões, lembrei de uma coisa que havia enterrado há muito tempo: aos seis anoos de idade, meu tio tinha abusado sexualmente de mim. Logo depois do surgimento dessa memória, as crises de pânico começaram.

Por três vezes, fui obrigada a dar uma pausa na minha vida para me tratar. Durantes esses períodos, ficava extremamente debilitada. Sentia medo e dores no corpo todo. Não suportava o cheiro de qualquer comida. Só tomava água em pequenos goles. A comida tinha quer ser fria, sem gosto e em pequenas quantidades. Perdia muito peso em pouco tempo e não saía casa. Quando tinha sorte, dormia.

Mas nunca nos primeiros dias. Eram os piores. Começava como se uma luz se acendesse na minha cabeça. Como se tivesse me lembrado de alguma coisa. Parecia que era uma coisa muito importante. Mas não era. Logo em seguida, sentia uma descarga elétrica pelo corpo, vinda do topo da cabeça. E um formigamento. O estômago doía como se tivesse comido algo estragado. E eu ficava apavorada, aterrorizada. Sentia que ia vomitar e isso me deixava ainda pior. Parecia que ia sair do meu corpo. Parecia que o mundo não era mais sólido. Eu olhava para frente e o mundo acabaria em um abismo exatamente no ponto em que eu não pudesse mais enxergar o horizonte. Eu tinha certeza que iria morrer. Ou enlouquecer.

Da última vez em que fiquei assim, foram semanas até que fosse controlado.

"A Criança Doente" (1885) de Edvard Munch
“A Criança Doente” (1885) de Edvard Munch

Tomei tanto remédios que até perdi a conta. Conheço todas as famílias de anti-depressivos, ansiolíticos e anti-psicóticos. Não tenho nada contra remédios. A verdade é que me salvaram. Honestamente, eu acho teria acabado pulando da janela se não conseguisse ter o mínimo de paz. Precisava conseguir respirar. E foram os remédios que fizeram isso por mim quando eu não tinha forças para fazer sozinha.

Tomei por vários anos. Com muitas idas e vindas. Não é fácil encontrar a medicação e a dosagem certa. Os psiquiatras fazem o que podem. Escutam sua história, seus sintomas e tentam ajustar. Mas, depois de tanto tempo, percebi que é uma roleta. O médico nunca sabe exatamente como aquele organismo vai reagir. O que eu tomava não servia para uma amiga que passava pela mesma coisa.

Depois de um ano e uma troca de psiquiatra, um dia eu finalmente consegui me arrumar e ir a um restaurante. E comer. Foi um dos melhores dias da minha vida. Parece uma bobagem, mas eu não vivia como uma pessoa normal há muito tempo. Consegui respirar de novo. Eu nunca apreciei tanto a entrada e saída de ar dos meus pulmões.

Tudo ótimo. Eu estava recuperada. Tive pouquíssimas crises de pânico nessa época, mas mesmo assim não tinha medo. Até o momento que percebi que não tinha medo de nada. Parece ótimo. Não ter medo de nada. Mas para mim era muito estranho. Eu tinha me acostumado a viver com o um certo grau de medo e tinha desenvolvido procedimentos. Não comer demais, não beber, não fazer nada em excesso. Nem muita alegria nem muita tristeza.

Com os remédios, eu nem me lembrava dessas regrinhas. Eu comia de tudo, sem limite nenhum. Comecei a beber. Bebi demais. Foi divertido por um tempo. Mas, com o tempo, comecei a perceber que tinha ficado sem noção, sem controle. Não era capaz de segurar meus desejos. Não conseguia me concentrar. Ler era um sacrifício. Demorava o dobro do tempo para ler uma página. Descobri que estava ficando diabética.

Leia também  Incesto e Consangüinidade

"Cinzas" (1894) de Edvard Munch
“Cinzas” (1894) de Edvard Munch

Honestamente, não sei se foram os remédios propriamente ditos, ou se a liberdade que me davam é que me levou para esse lado. Nem os médicos sabem dizer com certeza. Mas foi quando eu pensei que deveria parar. Tinha que largar aquelas pílulas milagrosas.

No primeiro momento, não fiquei com medo. Quase todo mundo que toma esses remédios quer parar quando se sente bem. E é exatamente quando recaímos. Meu psiquiatra me disse claramente que as crises poderiam voltar dentro de seis a oito semanas. Mas eu estava convencida a parar. Era escolher entre a doença em si ou seus efeitos colaterais dela — que poderiam gerar outras doenças.

Comecei a ler e estudar tudo que havia disponível sobre meditação e curas alternativas. O pânico não mata ninguém de verdade, mas a sensação é que se vai morrer no próximo minuto. Então, para mim, era um big deal. Eu tinha que encontrar um jeito de parar com os remédios e lidar como pânico, caso voltasse. E foi isso que eu fiz.

Meditei e medito todos os dias. Leio sobre o pânico e sobre o que ele faz com o corpo. Tento entender profundamente que a dor é só isso: dor.

Não foi fácil. O pânico voltou no início do ano, mas eu estava determinada a não retomar os remédios. Comecei a fazer um tratamento alternativo para traumas. Esse tratamento me ajuda a entender meu corpo, observar quando o pânico começa, em que parte do corpo, para onde ele vai, como são essas dores. A meditação me ajuda a observar, a não reagir, a me acalmar.

Foram meses de dores, sem comer direito, sem poder nem sentir o cheiro da comida, sem sair de casa. Meses sem conseguir respirar de novo. Eu pensava em desistir, eu pensava, meu deus, porque estou me colocando nessa situação de merda? Eu dormia e era quando tinha paz. Acordava mais forte, com menos vontade de desistir. Mas tive dor de estômago e de barriga esse tempo todo. Era como se tivesse um punho pressionando tudo dentro de mim.

"Morte no Quarto" (1895) de Edvard Munch
“Morte no Quarto” (1895) de Edvard Munch

Há mais ou menos um mês, consegui ir a um restaurante. Não comi nada, mas fiquei num lugar público. Tenho feito isso desde então. Entrei em uns sete restaurantes até agora. Cada dia sinto uma coisa diferente, cada dia uma coisa me surpreende.

A cada dia sai uma das pedras que não deixava o rio correr.

Só percebo porque estou prestando muita atenção. E só consigo prestar atenção quando não fico pensando no que me aconteceu ou em tudo que pode dar errado amanhã. Não é fácil, não existe folga e é deliberado. Preciso conscientemente cuidar da minha mente todos os minutos nos quais estou acordada.

E como era a minha vida antes? Deixava minha cabeça solta por aí, não me preocupava com o que estava pensando ou deixando de pensar. Eu era escravizada pelos meus pensamentos.

Ainda acontece muito. Mas agora eu percebo que acontece. Ainda sinto dores, mas cada vez eu tenho menos medo, menos desespero.

Estou fazendo as pazes com meu corpo, com a minha mente. Tem que ser sempre e só pode ser agora.

Momento a momento.

* * *

A autora mantém um blog para falar sobre síndrome do pânico, Sempre no Presente, e convida os leitores a lhe escreverem para compartilhar experiências: semprenopresente arroba hotmail ponto com

Autor Anônimo

Identificação coletiva e anônima, usada por autores ou leitores PapodeHomem que querem escrever artigos ou contar suas histórias sem abrir mão do sigilo.