“Todo detalhe é importante pois, aos olhos de Deus, nenhuma imensidão é maior que um detalhe.”

(Michel Foucault – Vigiar e Punir)

1. Um pequeno detalhe da nossa anatomia

No futuro, quando rememorarmos as manifestações que varreram o país nestas últimas semanas, um pequeno incidente pode passar desapercebido e ficar registrado na historiografia apenas como um caso pitoresco, indigno de maior atenção.

Porém, esse pequeno incidente talvez nos revele muito mais sobre essas manifestações do que poderíamos imaginar em uma análise apressada.

Supõe-se que, a essa altura, todos saibam do caso dos manifestantes que invadiram a Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Recapitulando os fatos, na sequência dos protestos pela redução do preço da passagem de ônibus, os vereadores da capital gaúcha votaram por não abrirem à transparência pública as contas das empresas de transporte coletivo, um gesto de total surdez e imbecilidade política.

O resultado dessa decisão desastrada foi a invasão e a ocupação da Câmara de Vereadores por manifestantes ligados ao Bloco de Luta pelo Transporte Público. E ali eles permaneceram durante uma semana, resistindo a ameaças de retirada forçada e a contendas no judiciário. Apenas saíram, civilizadamente e sem registro de depredação no local, após um acordo em que suas reivindicações foram atendidas.

Mas não é essa a história que nos interessa, por mais digna de atenção e análise que ela seja. O que nos interessa é que, durante a ocupação, alguns manifestantes tiraram fotos como esta:

peladosnacamara

Agora, amigo leitor, imagine um senhor que se vê como um “decente pai de família”, sentando no sofá com sua senhora após a jornada de trabalho, aguardando a novela das oito. E eis que o casal descobre, pelo jornal televisivo, que, enquanto dormiam na semana passada, jovens circulavam nus em uma repartição pública.

“E, se posaram nus daquele jeito, sem repressão, o que mais podem ter feito?”, algo na mente de cada um desses cidadãos decorosos sussurra, sem que ousem expressar um ao outro. “Fizeram sexo? Participaram de uma suruba? E eu, dormindo enquanto isso tudo acontecia? Ninguém me convidou?”

A verdade é que algumas agressões ao pudor alheio advém do fato de se praticar um ato diante daqueles que não tiveram, eles próprios, igual oportunidade de agredir o pudor dos outros.

2. O seu corpo, leitor, é um campo de batalha

Mas não fiquemos apenas no aspecto superficial do choque ao pudor alheio. Para compreendermos o que ocorreu, precisamos ultrapassar o território moral e avançar para uma região na qual um corpo nu pode ser bem mais subversivo e eloquente: o poder Político.

O exercício do poder sobre as pessoas, como todos sabemos, não é brincadeira, não é algo que se possa basear em abstrações. O controle sobre todos os indivíduos de uma sociedade, para ser efetivo, precisa ser exercido sobre um fundamento seguro, precisa capturar os indivíduos naquilo que possuem de mais importante, de mais concreto.

E a única coisa realmente concreta que possuímos é nosso corpo. Tudo mais são abstrações. Mesmo os bens materiais que “possuímos” apenas nos pertencem enquanto o direito vigente (uma abstração criada para o convívio social) diz que nos pertencem. E esse mesmo direito pode dizer o contrário em diversos casos, como quando perdemos bens por “desapropriação”, “usucapião” e execução de dívidas. Portanto, o exercício efetivo do poder e do controle social deve incidir, necessariamente e no final das contas, sobre o corpo humano.

E foi essa uma das microrrevoluções trazidas por Michel Foucault: a noção de que o próprio corpo humano é o território no qual são implementadas estratégias de controle Político. E, se isso for verdade, o corpo humano também é um campo de batalha para as diversas forças que se digladiam por esse controle.

Vigiar e punir
Vigiar e punir

E, quando se diz “Político”, não se fala dessa mesquinharia que são discussões partidárias, conchavos eleitorais e intrigas de gabinetes. Não se trata da política com “p” minúsculo, mas daquela com “P” maiúsculo, que diz respeito à posição que assumimos, enquanto indivíduos e comunidade, diante dos desafios e problemas de nossa sociedade.

Por essa razão, quando os manifestantes decidiram ficar nus diante da parede em que estavam pendurados os retratos dos vereadores, representantes do poder político oficial, eles levaram sua luta para outro território do combate Político, talvez o território fundamental. Levaram a batalha das ruas para o corpo humano.

Não creio, claro, que os manifestantes perceberam todas as implicações de tirarem aquela foto. Porém, inconscientemente revelaram, com a nudez de seus corpos, a ocultação de seus rostos e a escolha do cenário, um pouco mais da verdadeira face desses protestos.

3. Nem toda nudez será castigada: os sarados e as gostosas estão liberados!

Foucault propôs o conceito de “corpo dócil”. Sob a ótica do poder, um corpo dócil é aquele que pode ser utilizado e aproveitado eficientemente pelo controle político. Desse ponto de vista, como ele explicou:

“[…] as funções básicas do corpo humano se transformam em objeto de uma estratégia política.”

(tradução livre de uma palestra transcrita nesse livro)

Até o século dezoito, os corpos dos súditos interessavam aos poderosos apenas em sua dimensão de disponibilidade física, tal como no caso de um soldado que deve se sujeitar a morrer em combate por seu monarca. Nessa época, o Clero exercia controle sobre os corpos dos fiéis associando uma das funções básicas do corpo humano ao pecado. Os reis e senhores feudais, mais simples e diretos, controlavam os súditos pela constante ameaça da prisão, da tortura e até da morte — ameaças essas que incidiam sobre seus corpos físicos.

Com o fim do poder monárquico e feudal, a coisa ficou mais complicada.

Em uma democracia, não é tão fácil assim produzir corpos dóceis. Além disso, após o século dezoito, um outro fator entrou no jogo: a dimensão econômica. Em uma sociedade regida pela lógica da economia, uma das dimensões em que esse corpo dócil precisa estar sujeito à utilização eficiente é a do aproveitamento econômico.

Nesse período, portanto, o controle dos indivíduos não é exercido mais pela repressão das funções básicas do corpo. É exercido mediante dois “dispositivos ou mecanismos sexuais”:

Perfeitos. Eróticos.
Perfeitos. Eróticos.

(1) A ultravalorização de corpos “perfeitos”, eroticamente idealizados. Mulheres sem gordura, homens com barriga de tanquinho. Isso resulta em culpa e autorrecriminação quando o indivíduo não consegue atingir padrões impossíveis de beleza. Indivíduos fragilizados estão mais suscetíveis a serem domesticados, a consumirem.

(2) A erotização dos corpos: corpos são sempre, sob essa ótica, objetos eróticos, precisam estar a serviço da erotização. Induz-se, assim, os indivíduos a falar e expressar excessivamente a sua sexualidade (qualquer semelhança com a super-exposição da intimidade em redes sociais como o Facebook não é mera coincidência).

Esses dois “dispositivos” ou “mecanismos” de produção de corpos dóceis não afastam as antigas formas de controle. Se corpos são sempre objetos eróticos — segundo esse raciocínio — então a nudez é sempre algo erótico e deve ser oculta com pudor no cotidiano. Essa ocultação rotineira reprime conteúdos sexuais no inconsciente humano, o que permite que a sexualidade seja capitalizada pelo mundo da publicidade e do consumo.

São notórias, e até folclóricas, as supostas técnicas publicitárias que buscam associar o consumo de certo produto ao êxito sexual.

4. Se somos todos pecadores, não há pecado

E antes que alguém levante a bandeira da “teoria da conspiração”: é claro que tudo isso não é uma “conspiração internacional” de gente poderosa contra nós, pobres indivíduos. Somos nós, todos os indivíduos conjuntamente, que criamos essas estratégias sociais para manter os corpos dos outros sob controle e também disponíveis para serem utilizados por nós, inclusive financeiramente, se a oportunidade aparecer. É algo que decorre da própria lógica de organização de nossa sociedade.

E talvez isso não seja algo essencialmente errado. Não há nada de inerentemente errado em procurarmos a boa forma de nossos corpos, e tampouco em utilizarmos roupas de grife. Não nos deixemos levar por uma ideologia de esquerda caricata e mal-digerida: talvez isso tudo seja legítimo. Talvez o consumo, como reconheceu até mesmo certa celebridade comunista, seja um aspecto inafastável da psicologia humana.

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Também convém não sermos “neo-moralistas”, ressuscitando o pecado medieval em noções contemporâneas e econômicas do que é socialmente certo ou errado.

Link Vimeo | Esse vídeo foi tirado do texto Bom dia Belladona e… bom dia, Alberto

Compartilho a opinião de Contardo Calligaris: não há nada de inerentemente “mau” em uma sociedade na qual somos capazes de transitar entre vários modos de usar os outros como objetos ou de sermos por eles usados da mesma forma, inclusive no âmbito econômico, e inclusive pela publicidade.

Isso talvez seja parte do jogo que é viver em uma sociedade complexa e criativa — aceitarmos que há uma dimensão na qual a manipulação recíproca pode ser, até mesmo, exercida de forma saudável. O problema não é exatamente esse. O problema é quando levamos muito a sério nossos jogos a ponto de construirmos armadilhas para nós próprios.

4. Pelados, mas não desarmados

As manifestações pelo Brasil começaram com uma reivindicação específica: o maior acesso ao transporte público barato e de qualidade. Fica impossível não perceber que a questão inicial trata da mobilidade de nossos corpos nos grandes centros urbanos. São cidades em que o trânsito sujeito a engarrafamentos e os metrôs e ônibus lotados exigem extrema domesticação de nossos corpos, que devem se conformar, na opinião de governantes e empresários do transporte público, docilmente com essa situação.

E, nesse campo de batalha que são os corpos humanos, qual o significado político daquela fotografia feita pelos manifestantes dentro da Câmara de Vereadores? As estratégias de combate não se limitam apenas a palavras de ordem e a algumas vitrines quebradas. A nudez é outra forma de combate. E, com aquele único golpe, os manifestantes atacaram diversos alvos ao mesmo tempo.

O primeiro alvo diz respeito à imagem dos manifestantes nus, em posições não sensuais, revelando “imperfeições” inerentes a qualquer corpo humano normal, coloca em cheque um dos instrumentos de produção de corpos dóceis, que é a imposição de ideais impossíveis de beleza. Afirmando, com visível orgulho, a plena posse de seus corpos tal como eles são, fazem piada de um dos paradigmas de nossa sociedade obcecada por uma perfeição física irreal.

O segundo alvo se revela no fato de que se tratou de uma nudez não-erótica, que desassociou, pelo gesto e não pela retórica, os corpos nus de qualquer conteúdo necessariamente sexual. Que a sexualidade está vinculada a uma nudez ao menos insinuada é óbvio, mas se mostra incorreto supor o contrário: a nudez não se esgota na sexualidade. Porém, a exploração (inclusive econômica, inclusive publicitária) da sexualidade pelo poder, típica de nossos tempos, tenta tornar verdade uma mentira — a de que a nudez é, inafastavelmente, erotizada.

Alberto Mielgo, pintor espanhol
Alberto Mielgo, pintor espanhol

Ninguém está, claro, propagandeando o nudismo, e tampouco defendendo a abolição das roupas. É justamente o contrário: a nudez utilizada como instrumento político em momentos específicos apenas ressalta a importância de estarmos vestidos cotidianamente. Aliás, poucos gestos são tão políticos em nosso cotidiano do que o de escolher as roupas com a qual sairemos de casa, e essa escolha diária diz muito mais sobre nós do que supomos.

Portanto, é preciso que exista o tabu (a nudez), justamente para que o tabu seja rompido em determinados momentos. E, uma vez rompido, é preciso restaurar o tabu, para quebrá-lo novamente se isso, no futuro, revelar-se necessário. Precisamos ter vidraças, nem que seja para que possamos quebrar algo em momentos de crise.

O terceiro alvo é um recado àqueles que os acusam de serem eles próprios vândalos e depredadores, pois os manifestantes revelaram um aspecto de si próprios que é totalmente oposto à lógica da violência recíproca. Exibiram, com seus corpos nus, toda a fragilidade de sua condição humana, e também todo o potencial animal dessa mesma condição.

Ali, na fotografia, há “apenas” corpos humanos, sem roupas que identifiquem aquelas pessoas em determinada posição ou função social, sem roupas que nos permitam deduzir qual seu poder aquisitivo, qual sua suposta preferência sexual e qual parcela de poder comunitário detém em sua vida profissional. Advogados, políticos e executivos andam de ternos, médicos usam jalecos, militares vestem uniforme, juízes utilizam togas.

Ali, temos “apenas” corpos humanos.

Claro que os manifestantes que posaram para aquela fotografia não pensaram em nenhum desses significados. Possivelmente, apenas queriam brincar e festejar a ocupação. Aqueles manifestantes, porém, enquanto “Corpo Político” coletivo, atuaram, por intuição lúdica, no sentido de expressar aquilo que seus corpos físicos e mentes individuais talvez não fossem capazes de perceber.

E o quarto alvo?

5. O quarto alvo

O quarto alvo merece uma atenção destacada, pois creio que essa fotografia é o “retrato” mais perfeito do Brasil nesse momento. Merece atenção por não deixar de ser, também, um golpe que ricocheteou.

Vemos, na imagem, pessoas não identificadas, participantes das manifestações, brasileiros enfim, expondo seus corpos de forma irônica e brincalhona, satisfeitos com a posse de suas funções corporais, ironizando alegremente o poder político atual. São corpos não dóceis, corpos que não foram domesticados. Mas estão sem rostos.

Porém, é um engano supor que não há rostos na fotografia. E onde estão esses rostos?

Estão na parede.

A mesma foto, agora com um significado e entendimento bem mais potentes
A mesma foto, agora com um significado e entendimento bem mais potentes

Os rostos estão separados dos corpos. Estão imóveis, inexpressivos. Alguns, até mesmo, de cabeça para baixo, e um deles próximo a genitália de um dos manifestantes – que, se quis fazer alguma “homenagem”, certamente não foi das mais elogiosas. Rostos que estão emoldurados, representando um poder não só contestado pelos manifestantes, como por eles ridicularizado. Ou, antes, um poder que ridicularizou a si mesmo, pela corrupção e pela falta de identificação com seus eleitores, muito tempo antes desse último ataque.

Temos, então, a imagem perfeita de nosso país: as cabeças “políticas” estão separadas dos corpos dos brasileiros que participam das manifestações. Há uma separação, uma incompreensão que pode ser percebida pelo fato de que nossos congressistas e governantes, até agora, não levaram a sério os protestos da população.

Porém (e aqui está o ricochete), a fotografia também revela que as manifestações não possuem rostos nem cabeças que sejam adequadas à força das multidões que saem às ruas nos momentos mais críticos dessa onda de protestos.

Já parece bem claro que os grupos que organizam as manifestações em torno de questões pontuais como a passagem do transporte público tornam-se tímidos, inábeis e até mesmo omissos quando se trata de liderar e de conferir um verdadeiro rosto às multidões que decidem aderir aos protestos. É como se um corpo enorme começasse a se mexer, mas não há feições para identificá-lo ou uma cabeça para coordenar seu movimento.

Trata-se, portanto, de um país dividido, uma força enorme mas sem propósito claro. De um lado, temos cidadãos descontentes e sequiosos de mudanças, tal como corpos ávidos por agir mas incapazes de decidir o que fazer com toda a vitalidade que descobriram possuir.

De outro, temos “líderes” políticos alienados diante desse fato, congressistas que não conseguem representar seus eleitores, tal como cabeças sem corpos, imobilizadas pelos privilégios oligárquicos, semelhantes aos retratos naquela parede em que vereadores emolduram a prova de seu mesquinho prestígio social.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."