Não dou presentes porque:

1) estimula o consumismo de objetos;

2) cria uma pesada e constrangedora obrigação de reciprocidade; e

3) é uma ferramenta de controle e dominação.

Em vez de dar presentes, prefiro:

1) fazer atividades e ter experiências com as pessoas que eu amo, como ir à praia ou passear;

2) fazer coisas pelas pessoas que eu amo, como cozinhar ou lavar a louça

3) dar a elas minha atenção plena, quando estamos juntas.

Aviso necessário

Querida pessoa leitora, eu não te conheço. Logo, eu não tenho nem poderia ter nenhuma opinião sobre você, sobre as coisas que você faz, sobre as coisas que você deveria fazer ou deixar de fazer. O texto é sobre MIM, sobre os motivos que ME levaram a parar de dar presentes, sobre o meu próprio galopante e relinchante narcisismo. Você, tenho certeza, é uma pessoa bem melhor que eu.

Não dou presentes porque…

1) Estimula o consumismo de objetos

Uma ex-namorada me trazia um presentinho sempre que me via.

Sim, era por amor e por carinho, e eu adorava. Mas também era por seu enorme e compulsivo prazer em comprar objetos.

Observar a ela me fez perceber que eu não era diferente. Passava em uma livraria e pensava:

“Não posso comprar mais nada para mim, já estourei meu orçamento!”

Mas, então, via um livro perfeito, da autora preferida da minha amiga Paulinha, e pensava:

“Ah, gente, a Paulinha vai amar esse livro, é ideal pra ela! PRECISO comprar!”

E pronto. O que poderia ser mais mais conveniente?

Eu coçava a minha comichão obsessiva por comprar mais um objeto e, ao mesmo tempo, comprava também a desculpa perfeita:

“Não é para mim, é para a Paulinha! É presente! Não estou sendo consumista e compulsivo! Não, não! Estou sendo carinhoso e generoso! Olha como sou bonzinho!”

(Aprendi a sempre desconfiar das minhas autonarrativas que tenham como moral da história “olha como eu sou bonzinho!”)

Tirando uma ou duas pessoas realmente significativas, os presentes que eu dava serviam muito mais para atenuar minha própria ansiedade do que para, de fato, presentear outras pessoas.

Como tudo na minha vida narcisista e egocêntrica, o foco era em mim.

* * *

2) Cria uma constrangedora e pesada obrigação de reciprocidade

Todo cartão de natal traz duas mensagens.

A interna, que você precisa abrir o cartão para ler, é sempre uma variação de

“Feliz natal da família Fulano!”

A externa, que você não precisa nem abrir o envelope para decodificar, é mais sutil, mas ninguém deixa de entender.

“Parabéns! Você acabou de ganhar a obrigação de mandar um cartão de natal no ano que vem ou arriscar tornar-se uma pária social!”

* * *

Desde o começo do mundo, presentear é uma das formas mais antigas e tradicionais de comércio, gerando uma cadeia infinita de obrigações sociais.

Digamos que eu plante milho e meu cunhado crie porcos.

No meu aniversário, ele me dá dois porcos e eu fico obrigado a ele.

Aliás, é exatamente daí que vem a nossa palavra “obrigado”. Alguém nos faz um “favor” (entre aspas, pois não é favor, é comércio) e eu respondo:

“Agora estou obrigado a você.”

Ou seja, agora tenho uma obrigação para com você de retribuir esse favor. Com o tempo, a frase foi abreviada até virar uma palavra só, mas a obrigação continua a mesma.

(Já dizia o Profeta Gentileza: “em lugar de “muito obrigado” devemos dizer “agradecido” e ao invés de “por favor” devemos usar “por gentileza” porque ninguém é obrigado a nada e devemos ser gentis uns para com os outros e relacionarmo-nos por amor e não por favor.”)

Como não existe uma equivalência precisa entre milhos e porcos, quando chega o aniversário do meu cunhado, eu lhe presenteio com mais milho do que me parecem valer dois porcos, criando um excedente que, agora, faz com que ele fique obrigado a mim.

De certo modo, uma das primeiras funções do dinheiro foi quantificar, matemática e friamente, operações que antes eram subjetivas e sociais.

Se você me deu um porco, e um porco tem um valor de mercado determinado, eu posso te retribuir com exatamente aquele valor, sem sobras e sem excedentes, e assim, literalmente, me desobrigar de você, quebrando essa estrutura capilar de créditos e débitos que efetivamente mantinha a sociedade unida e coesa.

* * *

Em um ano desses da vida, algumas décadas atrás, eu mandei vinte cartões de natal, pintados por mim, um por um, à mão.

Foi uma das experiências mais instrutivas e iluminadoras da minha vida, pois aquilo me consumiu: gerou dor, angústia, raiva, inveja.

“Porra, não brinca que Fulana não vai nem agradecer?!”

“Pintei o cartão à mão, À MÃO!!, e Beltrano, hein, nem tchuns!”

“Ano que vem, está fora da minha lista, não quero nem saber!” etc.

Descobri, horrorizado, que eu não queria ser a pessoa que mandava cartões de natal pintados à mão.

No ano seguinte, tirei todo mundo da minha lista: nunca mais mandei cartões de natal.

* * *

Esse texto é sobre as minhas falhas de caráter.

Se você, pessoa leitora, consegue dar presentes e, no íntimo do seu ser, não julga, não cobra, não espera, eu te admiro, pois você é uma pessoa evoluída.

Parei de dar presentes porque, para minha vergonha, não sou.

* * *

3) É uma ferramenta de controle e dominação

Um dia, um parente me deu a feliz notícia de que me presentearia com um apartamento, novinho, na planta. Agradeci efusivamente e já comecei a fazer planos de onde eu iria morar com o dinheiro do aluguel daquela minha nova propriedade.

“Como assim, Alex?! Estou te dando o apartamento para você morar nele. Está desdenhando do meu presente?!”

E respondi que não, claro que não! Aquele presente iria mudar minha vida de verdade. Afinal, alugar uma propriedade para gerar renda era uma das maneiras mais úteis e comuns de usufruir de um bem.

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Mas meu parente não quis nem saber: disse que o apartamento (dois quartos, vaga na garagem, academia no prédio) ficaria no nome dele; eu poderia morar lá enquanto quisesse; e, quando morresse, ficaria para mim em testamento.

Na época, eu não tinha nem apartamento nem nenhuma perspectiva de ter: pagava aluguel e morava em uma república com três outras estudantes.

Mesmo assim, relutantemente, dolorosamente, recusei.

(Não porque sou forte, ou incrível, ou maduro, tralálá, mas porque sempre tive um instinto rebelde muito forte contra tentativas de me controlar.)

Se ele quisesse me dar aquele presente, eu aceitaria (e queria e precisava!), mas então o apartamento passaria a ser meu e eu poderia dispor dele à vontade, como fazemos com as coisas que são nossas.

Se ele quisesse decidir onde eu iria morar (usando um apartamento como ferramenta), então, eu recusava, pois já estava velho demais para delegar a outras pessoas esse tipo de decisão.

Depois disso, nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. Não sei o que ele fez com o imóvel, mas sei que não estou mais no testamento.

Hoje, eu tenho uma quitinete que alugo para turistas e moro de favor com a pessoa mais leve que eu conheço.

* * *

A história acima, emblemática do mundo privilegiado de onde venho, serve para ilustrar que, na verdade, grande parte dos pequenos presentes que recebemos também contém pequenas tentativas de controle.

Quem nunca deu um livro como uma maneira sutil de fazer com que a outra pessoa lesse uma obra que provavelmente não leria?

Quem nunca, pior ainda, perguntou:

“E aí, leu?”

Quem nunca recebeu um item decorativo que não tinha nada a ver com a casa, mas foi obrigada a colocá-lo na estante, porque senão “o que a Tia Maricota vai pensar?!”

Quem nunca, pior ainda, saiu correndo pra procurar no depósito a estatueta horrenda da Tia Maricota só porque ela estava vindo visitar e o que pensaria se não visse seu presente em exposição?!

Já dizia o provérbio inuit: “dádivas criam escravos, como o chicote cria cachorros”.

Quantas pessoas podemos dominar com esses presentes?

* * *

Então, por tudo isso, em vez de dar presentes, eu prefiro:

* * *

1) Fazer atividades e ter experiências com as pessoas que eu amo, como ir à praia ou passear;

2) Fazer coisas pelas pessoas que eu amo, como cozinhar ou lavar a louça;

3) Dar a elas minha atenção plena, quando estamos juntas.

Em 2013 e 2014, viajei o Brasil inteiro com o encontro “As prisões”, ficando sempre hospedado na casa de pessoas leitoras queridas.

Em vez de seguir as regras de etiqueta que guiaram boa parte da minha vida (“leve sempre um presente para a mulher mais velha da casa e, ao sair, dê uma gorjeta aos empregados”), eu simplesmente chegava de mãos vazias — para o horror e decepção da minha mãe:

“Mas, meu filho, você não traz nada? Nem uma lembrancinha?”

“Não, mãe. Mas eu ajudo na faxina, faço o jantar, lavo a louça, configuro o computador, ajudo minhas pessoas anfitriãs em tudo que eu puder.”

“Ainda bem que nenhuma dessas pessoas sabe que sou sua mãe. Não criei você assim!”

Mas não é só isso: quando estou hospedado na casa de uma pessoa, eu lhes dou (ou tento dar) o presente mais valioso que tenho a oferecer: minha atenção plena.

* * *

Se chego na casa de uma pessoa e ela me recebe com a tevê ligada, eu já me sinto desprestigiado.

Se ela queria ver tevê, por que me dei ao trabalho (para mim, cada vez mais árduo) de vir até aqui?

Poderíamos ter ficado ambas em casa, interagindo pela internet, nunca sabendo as mil coisas que outra está fazendo enquanto finge que presta atenção à nossa conversa…

* * *

Há quinze anos, quando eu tinha celular e trabalhava como consultor de internet, eu abria as reuniões com um pequeno mise-en-scène:

Tirava o celular do bolso, desligava publicamente, guardava dentro da pasta, fechava e dizia:

“Pronto. Agora, sou só de vocês.”

Naquela época, eu não sabia nada nem de atenção plena e nem de empatia (hoje, eu mal sei!): era apenas um truque de vendas, para me sobressair à competição e maximizar meu lucro. (Money money money!)

Ainda assim, mesmo com as intenções mais toscas e mais interesseiras, o teatrinho tinha o seu valor.

Hoje em dia, os celulares estão muito mais ubíquos: deixaram de ser aparelhos que fazem chamadas telefônicas para se converterem em fetiches mágicos que representam nossa identidade.

Então, de modo bem real e concreto, se a pessoa simplesmente não fica conferindo retângulos luminosos enquanto interage comigo eu já me sinto como se tivesse recebido um dos presentes mais escassos e mais valiosos do mundo.

Muito obrigado.

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E muito obrigado também às 431 pessoas mecenas que, com suas contribuições em dinheiro, seja em agradecimento pelos meus textos que já consumiram ou para me possibilitar escrever novos textos, me dão o presente mais concreto que um artista independente poderia desejar.

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Notas

Sobre a cultura do presente, recomendo Debt: the first 5,000 years, publicado pelo antropólogo David Graeber em 2011 e um dos livros mais incríveis que li esse ano.

Envio esses textos em primeira mão para as pessoas assinantes da minha newsletter, e elas sempre têm sugestões sensacionais. A frase do Profeta Gentileza foi sugerida pela Beatriz Cruz e pode ser encontrada em uma crônica de Leonardo Boff. O provérbio inuit foi sugerido pelo Joeverson e está na introdução de Ilhas de História, do Marshall Sahlins.

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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu