Se analisarmos bem, quanto stress desnecessário é causado por algumas condutas e algumas relações que não precisavam ser como são? No fundo, tanto sofrimento poderia ser evitado se soubéssemos conviver um pouco melhor.
Se tivermos mais atenção ao coletivo, muitos dos problemas individuais não surgirão.
Lembro-me de quando ainda era estudante de psicologia e trabalhava em um projeto que desenvolvia atividades socioculturais com usuários do Centro de Atenção Psicossocial [CAPS] de minha cidade. Uma das atividades consistia em um grupo de educação musical, e essa, diferentemente das outras, acontecia fora do espaço institucional do CAPS. Os usuários do serviço iam até a universidade para as aulas.
Não sei se todo mundo sabe, mas a universidade é entendida como um mundo à parte para muita gente. Não foram poucas as vezes que fui questionado, na entrada do campus, se o acesso era liberado para alguém que não fosse estudante ou funcionário da instituição. Imagine, então, o espanto de quem sempre foi tratado como o resto defeituoso da sociedade [portadores de sofrimento psíquico] e foi convidado a entrar nesse espaço que, ainda hoje, representa um sonho inalcançável para tanta gente. Um espaço restrito a uma pequena parcela da sociedade brasileira.
É claro que esses convidados ficaram muito impressionados com a permissão de entrada e isso acabou se tornando uma dificuldade, inicialmente, nas atividades propostas pelo projeto. Tudo se convertia numa forma de fuga para o pátio central do prédio, a curiosidade era grande. Ir ao banheiro era um pedido constante. Sair para fumar, uma mania. Era necessário colocar algum tipo de limitação para que a aula de música não fosse completamente sabotada.
Os instrutores do projeto logo tomaram a decisão de controlar as idas e vindas dos alunos. Cada saída passou a necessitar de “passaporte” e os alunos acabavam pedindo permissão aos instrutores para essas saídas. Se, por um lado, as fugas da atividade diminuíram, o número de pedidos tendia a aumentar e isso também atrapalhava o bom andamento da atividade. Some a isso o fato de que eram os instrutores que acabavam decidindo quem poderia e quem não poderia sair… como e quando.
Qual poder, qual clarividência eles possuíam para saber quem precisava ou não, verdadeiramente, se retirar por alguns minutos da aula de música? Quem tem o direito de deter esse tipo de poder e por quê?
Acreditávamos que seria apenas aula de música para usuários de um serviço de saúde mental. Em pouquíssimo tempo estava instaurado, mesmo que discretamente, um problema coletivo e temas como organização, autonomia, direitos, participação social e mais um tanto de coisas estavam batendo em nossa porta. O que fazer?
Assim na terra como no céu… o macro e o micro
A história que contei é bem específica. Uma aula de música, com usuários do serviço de saúde mental, realizada numa universidade de uma cidade do interior de Minas Gerais. Um exemplo específico, mas de sentido universal.
Não há relação humana que não seja perpassada por perguntas como as levantadas pelo projeto. Quando duas ou mais pessoas se encontram e estabelecem contato duradouro, algum tipo de regulamentação da convivência tem que ser estabelecida. Regras devem ser criadas, limites impostos, liberdades garantidas. Aristóteles acerta ao dizer que o humano é um animal naturalmente político. Qualquer relação tem, dentro de si, em pequena escala, as questões importantes para toda a sociedade.
Isso vale para muita coisa. Podemos pensar na convivência entre familiares. Podemos falar também sobre uma situação de trabalho. Uma república estudantil. Uma organização social. Até mesmo um relacionamento amoroso.
Cabe, espertamente, pensarmos no que vem sendo discutido, pensado e produzido no campo das práticas sociais e, caso a caso, implementar seus princípios e técnicas. Vamos lá?
Sem democracia, sem acordo
Antes de tudo, quero deixar claro que as propostas aqui apresentadas são voltadas para instituições e meios que se proponham a ter uma relação minimamente horizontal, democrática. Sei que existem situações em que os sujeitos pensam somente em si e as relações se transformam em pura disputa com tentativas de controle e imposição. Não escrevo para esses tipos e, nesses casos, acredito que uma revolução é medida essencial para que o[s] reizinho[s] caia[m] do posto o mais rápido possível.
Autoritarismo não combina com saúde mental, mesmo em situações que algum tipo de hierarquia deve existir dentro da relação.
Isso traz o primeiro ponto que é, ao mesmo tempo, solução e problema. Em um processo democrático, é importante que as decisões tomadas pensem o espaço coletivo e isso coloca o desafio de abrir mão de algumas vantagens que, se nos favorecem, também são capazes de destruir a boa convivência.
Para tratar esse ponto peguemos o caso do mesquinho. Acreditamos, erroneamente, que o mesquinho é um simples egoísta, mas na verdade é mais que isso. O sujeito mesquinho é, principalmente, um corruptor. A grande vitória do mesquinho é fazer dos outros com quem ele convive pessoas tão mesquinhas quanto ele.
Quando um mesquinho quer tudo para si, sem ter a menor consideração em retribuir, não é apenas egoísmo, é uma forma de educação. O que ele deseja é transformar o outro, através do exemplo, em mesquinho também. O intuito é convencer que não há saída de sua mesquinhez.
Esse tipo de gente não aceita a possibilidade de outro que não o seja como ele e tentará destruir qualquer sentimento altruísta. Esse é um dos bons exemplos em que pagar na mesma moeda só reafirma a posição que queremos combater. Devemos sempre fazer o esforço de pensar em vias do coletivo e não da nossa pura e simples vontade. Acreditem, é mais vantajoso em longo prazo.
No caso da atividade de música, nenhum dos participantes tinha intenção de dominar o grupo para benefício próprio. O problema que encontramos foi outro. Questionamo-nos se estabelecer um sistema de tomadas de decisão em que todos teriam poder de voz e voto seria condizente com a situação de portadores de sofrimento psíquico institucionalizados. Seriam eles capazes de tomar decisões em pé de igualdade com o resto da equipe ou deveríamos tutelá-los?
Optamos pela primeira hipótese. Todos que participavam da atividade teriam direito de conversar sobre as regras do grupo.
Ter observado, de perto, o impacto disso na vida de cada um dos participantes da atividade é o que me faz acreditar que, apesar dos pesares, vale a pena insistir em uma estrutura democrática.
A difícil arte de criar regras
Para criar um projeto de convivência que foque no coletivo, é necessário criar métodos coletivos de se tomar decisões. Como se sabe, mas não custa lembrar, as pessoas são diferentes, possuem histórias diferentes, interesses diversos e visões diferentes de como chegar até a realização de seus desejos [mesmo os desejos comuns].
Apesar de sabermos tudo isso, parece que insistimos em agir como se nada disso acontecesse e tudo fosse uma simples extensão da nossa forma de existir. Acreditamos que a medida de todas as coisas somos nós. Não é bem assim.
É o começo de todos os conflitos. Não perguntar ao outro o que se pensa sobre isso ou sobre aquilo. Não conversar abertamente sobre o que se espera da relação. Não estabelecer quais os limites que não devem ser ultrapassados. Tudo causado pela falta de diálogo.
Diálogo é um processo que pode acontecer de muitas formas. No caso de uma república, pode acontecer através de uma reunião em que se decide o futuro da casa. No caso de um namoro pode acontecer através de uma D.R. em que se pensa como vai o relacionamento. Pode ser uma conversa formal, com ares de oficialidade, com ata e tudo, mas também pode acontecer todos os dias nos cafés da manhã, acertando as arestas de pouquinho em pouquinho. O modelo também pode ser misto, claro!
O principal é que ninguém tome uma decisão sobre o coletivo, sem perguntar se a[s] outra[s] pessoa[s] afetada[s] estão de acordo com aquilo. É o tipo de atitude simples que economiza muita dor de cabeça, ressentimento, conflito…
Se por um lado temos quem fale de mais e tente sempre colocar sua voz acima das outras, tem quem fale de menos, mesmo quando teria algo importante a compartilhar. Voltando ao meu relato inicial, compartilhamos com todos os participantes os problemas que atrapalhavam o bom andamento da atividade. Deixamos claro que queríamos uma proposta que fosse coletiva e pudesse favorecer o maior número de pessoas e, obviamente, a atividade principal que estávamos realizando.
Descobrimos que é difícil estimular a participação de quem já se acostumou a não ser levado a sério por seus semelhantes. Por isso, acrescento aqui: deve se ter calma para elaborar um espaço em que o diálogo seja o carro chefe na tomada de decisões. Não é por mal, mas quantas vezes não tivemos paciência de esperar o outro se sentir confortável para falar e já atropelamos com nossas ideias supostamente infalíveis?
É importante que, indiferente do modelo escolhido, proporcionemos o diálogo e não um monólogo. O principal é que ninguém tome uma decisão sobre o coletivo, sem perguntar se a[s] outra[s] pessoa[s] afetada[s] estão de acordo com aquilo. É o tipo de atitude simples que economiza muita dor de cabeça, ressentimento e conflito.
Cumprindo as tarefas
Logo depois que são estabelecidas as regras de convivência, vem a parte de cumprí-las. Outra situação em que alguns problemas são recorrentes e acabam atrapalhando a vida de todos.
Uma regra estabelecida para o coletivo deve ser cumprida por todos aqueles que participaram do acordo. Não devem existir sujeitos que fiquem acima da lei. Quando eu quero cobrar algo de alguém, é muito importante que eu esteja disposto a cumprir a minha parte do acordo. Sem isso teremos uma relação insustentável.
Quantas vezes não tivemos que lidar com situações em que, em um casal, percebemos os plenos poderes de um deles e a total subserviência do outro? Esse é um exemplo do que não deveria acontecer. A satisfação de um ocorre pelo sofrimento do outro. Um tipo de relação abusiva que acontece todos os dias, em todos os lugares, mas que devemos combater com veemência, todas as vezes que estivermos diante dela. O melhor combate é cumprir a nossa parte, servir de bom exemplo.
Claro que é difícil e parece não ser tão grave dar um jeito de não ter que fazer a sua parte, cumprir sua responsabilidade de vez em quando. O problema é que isso desmotiva todos ao redor, cumpre o papel de ensinar que um pouco de corrupção não faz mal a ninguém… Como não tenho intenção de apontar os erros dos outros aqui, prefiro dizer que experimentei o peso das minhas próprias falhas em cumprir o que havia acordado com aqueles com quem convivia. Pude aprender que, quanto maior o meu poder dentro da relação, mais impactante e perigosa era a minha falta. Maior o poder, maior a responsabilidade.
Nada é perfeito
Mesmo quando se cumpre tudo à risca e tenta-se o máximo de justiça possível dentro das relações, o conflito é inevitável.
Não há como evitar todo e qualquer conflito. É da liberdade individual o direito de discordar e pensar diferente de quem quer que seja. Somente em estruturas altamente autoritárias e hierarquizadas que o conflito é bloqueado em sua ação direta, mas, mesmo assim, continua por outras vias. Nesses casos, os resultados são sempre desastrosos.
A resolução do conflito tem que acontecer por via das mesmas tentativas anteriores de se lidar com o outro: democracia, responsabilidade, afirmação dos direitos de cada um.
O conflito é aspecto natural das relações, e ultrapassará a lógica mesmo de uma estrutura racionalmente construída para reduzir seus danos ou evitá-lo. Em algum pequeno momento ele surgirá. Pode ser que se torne insustentável. Pode ser que seja um breve e passageiro. Dele surgem novas resoluções e a criatividade pode se fortalecer.
Como disse, acredito na possibilidade de enfrentá-lo fortalecendo ainda mais essas propostas de convivência que apresentei neste pequeno artigo, mas quero deixar claro que um intuito maior é necessário para vencê-lo. Estamos falando de um ideal comum. Estamos falando de uma relação de carinho.
Nesses momentos é muito importante se lembrar que existe algo mais na união que ali existe. É assim que se fortalecem laços e, além disso, se superam adversidades em busca de um intuito maior.
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