Foi quando passei algum tempo fora do Brasil (e não foi preciso muito!) que pude experimentar minha ligação afetiva com a nossa língua. Escutar Português depois de dias só ouvindo e falando outras línguas era música para os meus ouvidos e coração.
Em um primeiro momento, pode não parecer óbvio, mas a língua é uma das principais manifestações culturais e identitárias. Isto significa que é possível conhecer muito de uma cultura pela sua língua. Visões de mundo e transformações de modos de viver e pensar podem ser identificados nas mais variadas construções linguísticas, sotaques, expressões, palavras e palavrões.
Mas um país não é feito de uma única língua. Segundo Gilvan Oliveira, professor e pesquisador na área da Linguística, no Brasil se estima que são mais de “210 línguas em uso por cerca de um milhão de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna”.
E a Libras, a Língua Brasileira de Sinais, além de ser uma língua não oficial, pertence a uma modalidade de comunicação específica: é visual e espacial.
Apesar da Libras ter sido regulamentada em 2005 pelo decreto 5.626, ainda são muitos os enganos a seu respeito. Vamos esclarecer algumas questões recorrentes.
Surdo ou surdo-mudo?
O termo “surdo-mudo” é rejeitado pelos grupos e associações de surdos. O portal da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos explica que a expressão “tem sua raiz na história, num tempo muito antigo quando a pessoa Surda estava condenada à mudez. Ser surdo significava automaticamente ser mudo, e pior, ser um abandonado, excluído, desacreditado!”
Oliver Sacks, neurologista norte-americano e autor de “Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos” explica que os surdos foram considerados “‘estúpidos’ por milhares de anos e considerados ‘incapazes’ pela lei ignorante – incapazes para herdar bens, contrair matrimônio, receber instrução, ter um trabalho adequadamente estimulante”, negando-lhes direitos humanos fundamentais. A “mudez” neste caso não tem relação com uma condição biológica, mas social e cultural.
Qual termo seria, então, mais adequado? A palavra “surdo” seria o termo mais apropriado e capaz de minimizar a estigmatização das pessoas surdas, pois não focaliza em questões físicas ou biológicas, mas considera a surdez em relação as suas particularidades e à condição linguística diferenciada. Esta diferença não diz respeito a um modo melhor ou pior de se comunicar, apenas diferente.
Apesar do termo “surdo-mudo” volta e meia aparecer na mídia, é considerado depreciativo e inadequado. Carolina Hessel pesquisou alguns desses exemplos:
Não é a toa que já foi criado um guia para a abordagem do tema “deficiência” na mídia.
Mas há também exemplos inspiradores. Como o personagem Humberto da turma da Mônica que em uma historinha de maio de 2006 passou a se comunicar em Libras. Humberto não é mudo não, mas se expressa por sinais e a turminha também aprendeu como se comunicar com ele.
Língua ou linguagem?
As línguas de sinais são línguas, assim como é o português, inglês ou espanhol. E a linguística e neurolinguística já vem comprovando isso há algum tempo.
Em 1960 se deu o primeiro passo importante para o reconhecimento da Língua de Sinais como uma língua dotada de estrutura gramatical pelo trabalho de William Stokoe, que publicou Sign Language Structure, que Oliver Sacks considera o “primeiro caso de atenção séria e científica dada ao sistema de comunicação visual dos surdos americanos”.
Sacks relata também experiências conduzidas pela professora Úrsula Bellugi, durante a década de 1970, sobre a estrutura das línguas de sinais. Beluggi constatou que a língua de sinais se processa no hemisfério esquerdo do cérebro, utilizando as mesmas vias neurais necessárias ao processamento da fala gramatical, portanto, usuários da língua de sinais, embora possuam uma língua de natureza visual-espacial, apresentam a mesma constituição cerebral que usuários de línguas orais.
Os estudos científicos são recentes mas sabe-se que, como as línguas orais, a língua de sinais é constituída por mecanismos fonológicos, semânticos, sintáticos e morfológicos, tendo como principal característica seu caráter visual-espacial.
Ou seja: línguas de sinais são tão complexas quanto línguas orais.
Basta saber o alfabeto?
De jeito nenhum. O alfabeto manual, também conhecido como alfabeto datilológico, é muito utilizado para comunicar nomes próprios ou palavras que ainda não possuem sinal correspondente, mas para uma comunicação efetiva é preciso aprender muitos outros sinais e estruturas gramaticais. Além de estudo teórico, aprender Libras, como qualquer língua, requer também muita prática. Conhecer o alfabeto é apenas o primeiro passo.
Na língua de sinais, cada pessoa tem um sinal correspondente, para que não seja sempre necessário indicar o nome todo pelo alfabeto manual. Quando um surdo se apresenta, é bem comum que diga seu nome e seu sinal. Se você ainda não tem, quando conhecer um surdo ou um grupo de surdos, poderá ser “batizado” com um sinal.
Os significados dos sinais são óbvios?
Não. Pelo menos não todos. Existem tantos sinais icônicos (que fazem alusão a imagem do que representam), quanto arbitrários (que não mantêm semelhança com o que representam).
Mesmo os sinais icônicos não são necessariamente evidentes. Para quem não conhece a língua, entender uma conversa em Libras, geralmente é bastante difícil.
Cada país tem sua língua de sinais
É bastante comum a suposição de que todas as línguas de sinais são iguais ou que se deveria criar uma língua de sinais internacional. Mas assim como cada país tem seu idioma, tem também sua língua de sinais.
No filme Babel, dirigido por Alejandro González Iñarritu, por exemplo, a personagem Chieko, interpretada pela atriz Rinko Kikuchi se comunica pela Língua de Sinais Japonesa. Rinko foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel desempenhado em Babel. Chieko é uma garota surda com dificuldades de se relacionar, deslocada em um mundo muitas vezes inacessível. Apesar das diferenças linguísticas, as barreiras culturais e sociais são recorrentes nos mais variados países.
Embora existam propostas de línguas universais (como o Esperanto e o Gestuno), sabe-se que línguas são manifestações vivas e culturais, modificam-se com o tempo, acompanham a história e os contextos sociais e culturais de um determinado grupo. Sempre haverão apropriações e transformações, assim como diversidade de uso.
Diversidade dentro de um mesmo país
O caráter linguístico da língua de sinais também é reconhecido pela ocorrência de regionalismos, variações locais, sotaques, gírias, da mesma maneira que ocorre com as línguas orais.
A revista Mundo Estranho publicou em 2010 algumas gírias em Libras.
Língua escrita de sinais
Já se defendeu que a impossibilidade de uma versão escrita da língua de sinais confirmaria sua invalidade linguística. Pois esta suposição já foi contrariada, o SignWriting consiste em um sistema de escrita da língua de sinais, criado por Valerie Sutton em 1974, capaz de transcrever línguas de sinais do mesmo modo que o Alfabeto Fonético Internacional é capaz em relação as línguas faladas.
Existem, inclusive, títulos de livros infantis que empregam tanto o português, quanto o SignWriting, além de recontar histórias clássicas a partir de personagens surdos como é o caso de “Rapunzel Surda” e “Cinderela Surda”.
Libras e aprendizado do português
O educador Paulo Freire já disse que a “leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Como ensinar uma língua oral-auditiva para uma pessoa que não escuta som algum? É bastante improvável que o aprendizado e a comunicação ocorram satisfatoriamente. Ao contrário do que muito já se defendeu, o aprendizado da Libras é fundamental para o posterior aprendizado do português, que é considerado uma segunda língua para a pessoa surda.
Enfim, é importante entender: o aprendizado da Libras não prejudica o aprendizado do Português.
Pessoas surdas possuem níveis diferentes de compreensão do português escrito, algumas delas com dificuldades que podem inviabilizar o entendimento e interpretação de um texto. Por isso, nem sempre é suficiente incluir um texto escrito para promover acessibilidade para surdos.
Estas dificuldades em muito se relacionam com o emprego de metodologias de ensino inadequadas e ineficientes e que, na maior parte dos casos, excluem a língua de sinais e os recursos visuais e pedagógicos necessários.
De qualquer maneira, o uso de legendas são importantes, ampliam a acessibilidade a pelo menos parte da comunidade surda.
O projeto “Videoteca – Cinema Nacional Legendado”, patrocinado pela Petrobrás e realizado pela Associação de Reabilitação e Pesquisa Fonoaudiológica (ARPEF), por exemplo, foi responsável pela legendagem de 60 filmes nacionais, utilizando closed caption, e distribuição gratuita de kits a 100 entidades filiadas à Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS).
O folder do projeto explica que, além do ganho cultural para a comunidade surda, os filmes legendados auxiliam na aquisição e enriquecimento da língua escrita.
Algumas pessoas surdas são capazes de oralizar palavras ou realizar leitura labial, mas não é uma habilidade recorrente, já que comumente as condições sociais e culturais não contribuem para este processo.
Outra curiosidade é que a Libras, embora tenha sofrido alguma influência do português (afinal, são línguas em contato), tem sua origem na Língua de Sinais Francesa. É que a primeira instituição voltada à educação de surdos no Brasil surgiu em 1857 e teve como professor o conde francês e surdo Ernest Huet.
Por que línguas de sinais são tão importantes para pessoas surdas?
Enquanto a pessoa cega está afastada de um mundo de imagens, devido às barreiras de comunicação, a surda está frequentemente distante de outras pessoas, muitas vezes da própria família. A comunicação é um dos processos mais importantes no nosso desenvolvimento. É a comunicação que nos oferece a possibilidade de expressão, proximidade, compreensão, ensino, aprendizado, identificação, afeto, dá-se enfim, sentido a própria existência.
A língua de sinais é considerada a língua materna de uma pessoa surda, já que é a primeira língua que ela aprende, o que significa que o aprendizado ocorrerá naturalmente havendo condições pra isso. Uma pessoa surda se apropria de significados visualmente e línguas de sinais são adequadas a esta forma de apreensão do mundo.
É também sua língua nativa, já que gera identificação com uma determinada cultura ou comunidade. Por isso, é comum pessoas surdas participarem de associações, grupos de igreja, dentre outras organizações nas quais a língua de sinais esteja presente e onde podem encontrar surdos e surdas, compartilhar suas vidas, trocar conhecimentos e informações que outros lugares não lhes oferecem.
São grupos frequentados também por ouvintes (pessoas não surdas): tradutores, intérpretes e pessoas interessadas em estabelecer contato direto com a comunidade surda, a fim de aprender e aperfeiçoar a fluência na língua de sinais.
Por isso, é fundamental considerar a Libras em todas as etapas de aprendizado e situações de comunicação envolvendo pessoas surdas.
Susan Dupor, artista surda, frequentemente representa em seus quadros muitas mãos em referência a importância que a língua de sinais tem para pessoas surdas. Susan nasceu surda, vive em Lake Geneva, no estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, onde mantém seu estúdio de pintura e leciona a disciplina de Artes na Wisconsin School for the Deaf.
Pessoas surdas podem fazer coisas incríveis
Bem, isso ocorre da mesma forma que funciona pra quem escuta. Se houver oportunidades e condições adequadas, pessoas são capazes de realizar feitos incríveis. Como explica o antropólogo Roque Laraia de Barros no livro “Cultura: um conceito antropológico“, não é suficiente “a natureza criar indivíduos altamente inteligentes, isto ela faz com frequência, mas é necessário que coloque ao alcance desses indivíduos o material que lhes permita exercer a sua criatividade de uma maneira revolucionária”.
Talvez um exemplo que impressiona seja o de Helen Keller que nasceu surda e cega, mas com o auxílio de sua professora, Anne Sullivan, encontrou as condições de compreender e se expressar no mundo. Helen Keller escreveu livros como “A história da minha vida”, foi ativista, pesquisadora, conferencista e viajou pelo mundo defendendo os direitos de pessoas deficientes. O filme “O milagre de Anne Sullivan”, que estreou em 1962, conta parte da sua surpreendente história.
A minha experiência
Meu envolvimento com a Libras e a surdez é intenso, pois eu tenho um irmão surdo que se comunica exclusivamente pela Libras, o Dudu. Em 2010 decidimos preparar um presente de aniversário especial para o meu pai: um vídeo ensinando alguns sinais em Libras.
Que tal aprender?
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