Será a vida absurda? Absurda por nossa mortalidade? Absurda por sermos insignificantes perante o cosmos? Absurda por não termos um fim último que nos justifique? O filósofo português Desidério Murcho discorda: nossa vida não é absurda. E explica o porquê.
Primeiro Congresso Humanista Secular do Brasil
No fim de semana passado, estive no Primeiro Congresso Humanista brasileiro, realizado pela Liga Humanista Secular do Brasil em Porto Alegre.
Participei da mesa-redonda de gênero, onde basicamente apresentei uma versão preliminar de um texto que estou escrevendo aqui para o PapodeHomem há meses, “Curso rápido de feminismo para homens”. Meu principal conselho, e que vale para qualquer debate, é que não adianta apontar o dedo para alguém e acusá-lo de machista (ou racista ou homofóbico, etc), porque não temos acesso ao que as pessoas realmente são, mas que é mais eficiente e útil apontar que seu interlocutor agiu de forma machista, ou manifestou opiniões racistas, etc.
Mas eu, com certeza, claro, fui a menor das atrações.
Tivemos Carlos Diaz, presidente da Atheist Alliance Internacional, contando o caso do indonésio preso por simplesmente dizer no Facebook que deus não existe. Ouvimos o professor de genética Renato Zamora Flores falando sobre como violência contra crianças modifica seus cérebros de tal maneira que essas mudanças são transferidas para a próxima geração — ou seja, é a vingança de Lamarck sobre Darwin! A melhor mesa-redonda juntou o jornalista científico Carlos Orsi, e Kentaro Mori, o criador do Ceticismo Aberto, falando sobre ceticismo. Perfeita a resposta de Orsi sobre qual era a crendice mais nociva: com certeza, a medicina alternativa. Tem gente que toma homeopatia achando que é um remédio normal, sem nem imaginar que é só água. O professor e ex-deputado Marcos Rolim deu uma palestra impressionante sobre a cultura da violência. Finalmente, a transsexual Marina Reidel, professora de ética e religião em escolas da rede pública de Porto Alegre, também deu depoimento sobre as dificuldades que enfrentou.
O evento foi lindo. Me senti honrado pelo convite e, para o próximo congresso, em 2014, já reservei meu tema: budismo e ateísmo.
Enfim, ao invés de fazer um apanhado geral do congresso, preferi apresentar com mais espaço a minha palestra preferida, onde o filósofo português Desidério Murcho (que nome sensacional!), professor da Universidade Federal de Ouro Preto, explicou porque, apesar de parecer que não, a vida faz sentido sim, mesmo em um universo sem deus.
Abaixo, uma paráfrase e um resumo de sua comunicação.
Afinal, mesmo sem deus, nossas vidas têm valor?
A palestra de Desidério é uma resposta ao ensaio O absurdo (1971), do filósofo norte-americano Charles Nagel. (Aliás, vale muito a pena ler: o artigo e um resumo, ambos em inglês.)
Pra começar, Nagel aponta que a vida é em geral considerada absurda por três razões: por sermos mortais; por sermos insignificantes comparados à dimensão do universo; por não termos um fim último que nos justifique.
Nagel concorda que a vida é de fato absurda, mas não por esses motivos.
A vida é absurda por ser curta e insignificante
Contra essa ideia, rebate Nagel:
Oras, uma vida que é absurda por durar somente setenta anos não seria infinitamente absurda se durasse toda a eternidade?
Existe uma objeção possível: Vai ver a vida eterna somente nos parece eternamente absurda porque somos incapazes de concebê-la. Entretanto, se vivêssemos para sempre, com certeza desenvolveríamos novas atividades, novos talentos, novas prioridades. Mas, se pensarmos em como nossos gostos mudam em apenas quinze anos, imaginem em vinte milhões!
É de esperar que o abismo seja ainda mais profundo se na vida imortal depois da morte terrena desenvolvermos características para nós inimagináveis mas apropriadas a uma existência eterna de permanente júbilo na contemplação sabe-se lá do quê.
Se para viver eternamente terei que mudar tanto, será que eu continuarei a ser eu?
Não se perderá a continuidade relevante para que essa tal pessoa que subsiste daqui a vinte milhões de anos tenha uma relação suficientemente significativa com o que hoje sou para que não seja irracional da minha parte não só desejar chegar lá como considerar que é o chegar lá que dará sentido ao que hoje sou e faço e penso?
Parece que nossa vida não é absurda por ser curta, pois seria igualmente absurda se fosse eterna.
Ou teríamos uma eternidade para ser os mesmos chatos que somos hoje ou mudaríamos tantos que já não seríamos as mesmas pessoas…
E sobre nossa tal insignificância, Nagel afirma:
Se nossas vidas são absurdas dado o nosso tamanho atual, por que seria menos absurdas se ocupássemos todo o universo?
A vida é absurda por nunca chegar aos seus fins últimos
Teoricamente, tudo o que fazemos tem um fim último. Tomamos vacinas para ficarmos saudáveis. Estudamos para arrumar melhor emprego. Mas esses não são os nossos fins últimos. Aristóteles se perguntava:
Se o bem é seja o que for que é a finalidade do que fazemos, terá de haver algo que seja um bem último, um bem em si, e será isso a finalidade última da nossa vida.
Segundo Nagel, o terceiro argumento inadequado a favor do absurdo baseia-se na ideia de que a nossa mortalidade impede que as cadeias de justificação das nossas escolhas atinjam um desfecho adequado.
Mas é fácil de provar que muitas vidas atingem normalmente seus fins últimos, quaisquer que sejam.
A vida é absurda por outro motivo
Para Nagel, o absurdo da vida seria outro.
Nossas vidas são absurdas porque existiria uma tensão insuportável entre nossas maiores realizações, por mais incríveis e notáveis que sejam, e a consciência de sua profunda e total insignificância do ponto de vista cósmico.
A resposta de Desidério: vida não é absurda porque seu valor é subjetivo
Para Desidério, Nagel parece estar dizendo que o absurdo viria da discrepância entre o valor subjetivo que atribuímos aos nossos feitos e o valor objetivo deles, que seria mínimo. Nossas vidas pareceriam realizadas e plenas quando observadas humanamente, mas destituídas de sentido objetivo quando observadas de um ponto de vista mais amplo.
Entretanto, o valor depende de criaturas humanas que lhes atribuam às coisas. Não existe de fato esse “valor objetivo”, flutuando no espaço abstrato, sem ter sido atribuído por ninguém.
Segundo Desidério, é preciso ter cuidado com esse olhar excessivamente distanciado, uma extensão muitas vezes ilusória que ultrapassa os limites do conceitualmente possível:
Um pouco como alguém que pensa que se é saudável comer uma banana, comer um milhão também o será. Neste caso, a pessoa pensa que se olhar-se distanciadamente revela muitas vezes uma ver-dade mais profunda acerca de si, olhar-se de um ponto de vista maximamente distanciado revela a verdade última acerca de si. Infelizmente, de um ponto de vista maximamente distanciado, parece que nenhuma das actividades que valorizamos tem valor.
E ele conclui, de maneira brilhante:
Se o valor é uma propriedade relacional que envolve um agente que valoriza, a inexistência de valor de um ponto de vista mais distanciado é apenas a consequência de não estar lá agente algum que valorize. A ilusão é pensar que esta ausência é um sinal de que as nossas valorizações são absurdas; na verdade, essa ausência ocorre apenas porque é conceptualmente impossível haver valor sem um agente que valorize. Logo, a ausência de valor que vemos de um ponto de vista maximamente distanciado nada nos diz quanto ao valor e ao sentido das nossas vidas.
O valor de nossas vidas depende do valor que colocarmos nelas. Se pensarmos em nossas vida contra um pano de fundo tão amplo, tão cósmico e tão abstrato, é óbvio que elas não terão valor.
Ainda bem que nossas vidas acontecem aqui embaixo, onde as leis são diferentes, no meio dessa zona humana, cercados de pessoas que nos amam e nos odeiam.
* * *
Muito obrigado ao professor Desidério Murcho por disponibilizar o texto de sua palestra. Visitem o site do homem. E, aqui no PapodeHomem, leiam também o meu Cajuína.
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