Polêmica graúda temos visto em relação à assistência ao parto no Brasil, finalmente – nossa abordagem desse importante momento vinha sendo ridícula, na falta de termo mais específico. Se todos temos uma parcela de culpa ou se ninguém tem culpa alguma, não importa agora. O fato é que alguma informação e um pouco de bom senso têm feito falta nas discussões. Parecemos não conseguir ver além de uma dicotomia pouco lógica entre parto cesário, completamente dependente do médico, e domiciliar, em que o médico não tem nada a fazer?

Algo me faz pensar que podemos iniciar uma conversa razoável por aqui, então tratarei dessas duas posições mais comuns que têm entrado em conflito para depois tentarmos avançar por um caminho central que já existe (quase sempre existe), mas tem sido pouco explorado.

Parto cesáreo

Nenhum leitor em sã consciência apostaria a vida de sua mulher ou filho em um jogo de roleta no cassino. Afinal, não colocaríamos nossos “bens” mais preciosos em jogo, ainda mais dependendo tanto da sorte – apostando em um único número na Roleta Americana, suas chances de ganhar são de 1 para 36. Imagine o que diríamos, então, se, mesmo em caso de vitória, nossos filhos e mulheres continuassem vivos, mas sofressem uma surra da qual demorassem a se recuperar. Eu sei, nunca seríamos tão estúpidos.

Pois pasmem, meus honrados lenhadores e respectivas senhoras: é exatamente isso o que muitos de nós têm feito, sob o pretexto de uma pretensa comodidade ou de uma “logística” facilitada.

O Brasil é campeão em partos por via cesárea – a imensa maioria sem a menor indicação. A incidência supera 80% nos serviços privados, quando a OMS recomenda 15%. Não há dúvidas de que isso é um absurdo.

A descrição e desenvolvimento do parto cesáreo (parto por qualquer via que não a vaginal, envolvendo abertura cirúrgica do útero) trouxeram avanços consideráveis na assistência ao parto, e esse procedimento de fato salva muitas vidas, quando bem indicado. As situações mais comuns em que o parto cesáreo traz benefícios incluem cenários em que:

  • precisamos que o parto seja realizado no menor tempo possível, como em quadros de sofrimento fetal ou risco de vida materno;
  • o parto vaginal é impossível, como quando há desproporção cefalopélvica (a cabeça do bebê é grande demais para a pelve da mãe), apresentações anômalas (bebê “virado”, na horizontal, por exemplo), placenta prévia centro-total (quando a placenta cobre o orifício interno do colo uterino, impedindo a passagem do bebê);
  • o parto vaginal traz riscos maternos ou fetais, como em gestantes com determinadas cirurgias uterinas anteriores, duas ou mais cesáreas prévias, alguns problemas cardíacos;

Excluídas essas e pouquíssimas outras situações, estamos errando ao realizar partos cesáreos. Apesar da aparente facilidade do parto com hora marcada, o risco e o trauma cirúrgico a que expomos mãe e bebê beiram o criminoso.

Muitas mulheres proclamam que fariam cesárea por não querer passar pela dor do parto vaginal, sem saber que a incidência, duração e intensidade das dores no pós-parto cesáreo são muito maiores. Outras alegam que o parto vaginal pode ser longo e trabalhoso, a despeito de que a recuperação do útero e de outras estruturas ao seu estado anterior e natural seja muito mais lenta no parto cesáreo. Há ainda quem ache que a cirurgia parece mais “limpinha”, ignorando que o maior fator de risco para infecções puerperais seja o parto cesáreo – a chance de endometrite é até 30 vezes maior em alguns estudos. Você não leu errado. Não são 30%, são trinta vezes. 2900%.

Lembram da roleta?

Levemos em conta, ainda, os malefícios não mensuráveis, como o prejuízo do contato entre mãe e filho no pós-parto imediato pelo procedimento cirúrgico. Parece que estamos tão acostumados com a ideia que não percebemos o quão agressivo é abrir uma barriga a faca e arrancar o pimpolho lá de dentro. Assombroso acharmos isso vantajoso, auferindo ganhos do tipo “poder planejar as datas da licença e das férias”.

Mais um sintoma da “fast-foodização” afobada da prática médica e da “clientelização” do paciente. A relação de confiança, quase paternal, entre médico e paciente deu lugar a uma relação mercantil entre o consumidor e o simples realizador dos seus desejos. O obstetra ético e competente, que se recuse a realizar cesáreas sem indicação, provavelmente terá um consultório vazio em pouco tempo.

Parto domiciliar

Em oposição à epidemia descabida de partos cesáreos e à “mercantilização” e “artificialização” de um momento importante, belo e natural como o parto, têm-se levantado, em todo o mundo, correntes defensoras de partos “alternativos”. Muitas mulheres têm tido seus filhos em casa, assistidas ou não por médicos, na maioria das vezes apenas com a presença das “obstetrizes”, “parteiras” ou “doulas”, profissões formalizadas recentemente e ainda em processo de regulamentação no Brasil. (Há muito tempo existem enfermeiras especializadas em assistência ao parto e houve considerável altercação sobre a criação dessas novas ocupações, mas a legitimidade ou necessidade dessa categoria profissional não é a discussão que queremos abrir por enquanto).

YouTube | Um parto de 9 horas de duração, resumido em 15 minutos. Eu não acho tão bonito quanto eles

Acontece que, ao mesmo tempo em que seguir a manada em direção ao óbvio precipício da cesária é inaceitável, muitas vezes simplesmente dar meia volta e criar uma contracorrente cega e impensada também não dá muitos frutos. Alguns raciocínios formulados para defender o parto domiciliar aproximam-se do ideário que advogaria pela aplicação de cataplasmas para o tratamento de abscessos: é mais “natural”, menos “instrumentalizado”, menos “centrado no médico” e pode até dar certo. Mas se der errado a coisa pode ficar feia de um jeito que a maioria das pessoas nem imagina.

As complicações obstétricas são pouco comuns, mas podem ser muito graves. Quando ocorrem, requerem atendimento especializado e rápido, com grande risco de sequelas importantes ou mesmo de morte para mãe e bebê.

O argumento de que o parto domiciliar só se aplica a gestações de baixo risco não melhora as coisas – risco baixo é diferente de ausência de risco. O risco de pegar HIV em uma única relação sexual também é baixo, o que não quer dizer que você deva deixar de usar camisinha quando aquela gata da balada resolver alegrar sua noite, em defesa de um sexo “natural e humanizado”.

Imagino que isso vá surgir nos comentários, mas creio que usar como argumento o fato de que uma das maiores defensoras do parto domiciliar morreu em um parto domiciliar seria covarde e apelativo, então vamos nos ater à discussão fundamentada.

A celeuma sobre o parto é difícil de ser posta sob júdice em estudos estatísticos, pela grande quantidade de vieses culturais e logísticos, além das diferenças entre os modelos de assistência entre as diversas localidades. Ao selecionarmos mulheres para protocolos de pesquisa, é praticamente impossível encontrar uma mulher para a qual “tanto faça” parir em casa ou no hospital – o que torna completamente vazia de significado científico a observação de que mulheres que pariram em casa estão mais satisfeitas com esse modelo (muitos pacientes que fumam também estão satisfeitos com isso, o que não quer dizer que fumar seja bom para eles). Os trabalhos já publicados sobre o assunto são pequenos, com poucos pacientes, ou feitos em contextos muito específicos, resultando em baixa validade externa.

Uma revisão sistemática com meta-análise, publicada em 2010 no American Journal of Obstetrics and Gynecology, tentou em vão resolver a briga.

Pelos dados observados neste estudo, partos domiciliares planejados resultam em:

  • menos infecções, lacerações, hemorragias e retenção placentária;
  • incidência praticamente igual de prolapso de cordão umbilical;
  • menos intervenções médicas, como analgesia epidural, cardiotocografia, episiotomia, partos cesáreos (Só eu achei óbvio?)

Até aí, o parto domiciliar parece uma maravilha. Bem, não tão rápido.

A análise também resultou, nos partos domiciliares em relação aos partos hospitalares:

  • mortalidade perinatal geral duas vezes maior;
  • mortalidade perinatal em fetos não-anômalos três vezes maior;

Os autores chamam a atenção ainda para a homogeneidade nesses resultados entre os estudos analisados e para o fato de que a população submetida ao parto domiciliar apresentava, em geral, menos fatores de risco obstétricos que a população submetida ao parto hospitalar.

A observação de que populações com menor risco sofreram consistentemente uma mortalidade até três vezes maior parece uma evidência razoável para condenarmos veementemente essa prática. De novo: não tão rápido.

Após sua publicação, esse estudo foi apedrejado pelos defensores do parto domiciliar, que questionaram seus modelos de cálculo e critérios para inclusão dos estudos – com razão, uma vez que a revisão realmente tem falhas sérias na seleção e na análise estatística. O periódico chegou a fazer uma reanálise dos dados, que, entretanto, não mostrou diferenças nos resultados.

O ponto é que, mesmo que se refutem essas evidências, a grande maioria dos profissionais de saúde, acostumados a sempre raciocinar em termos de risco-benefício, rejeita a idéia do parto domiciliar. Não falo apenas dos obstetras, que poderiam ter uma opinião enviesada pelo interesse econômico. Em conversas com colegas das mais variadas especialidades, localidades e ambientes, absolutamente 100% da minha casuística não admite outro lugar para o nascimento dos próprios filhos que não o hospital. A soi-disant “naturalidade” de parir no lar nem de longe parece compensar o risco de se ver sem ter como atender a uma complicação grave.

O mito da escolha

Se você contrair uma pneumonia grave, com necessidade de internação, que esquema antimicrobiano prefere receber: levofloxacina isolada ou ceftriaxone e claritromicina?

E se por acaso for acometido por uma fibrilação atrial aguda, prefere a cardioversão química ou elétrica?

Se essas perguntas lhe soaram bizarras, talvez devamos discutir a ideia de que é natural que mulheres grávidas escolham a via de parto, ou, além, o local em que ele acontece.

Eu escolhi parir em casa
“Eu” quem?

“Gravidez e parto não são doenças”, dirão os mais puristas. Conceitualmente podem não ser, mas poucos eventos produzem tantas alterações na fisiologia feminina e expõem a mulher a tantos riscos quanto esse subestimado par de intempéries biológicas. O argumento (verdadeiro) de que a mulher tem direito sobre o seu corpo tem sido usado para embasar um retrocesso na assistência a essa situação importante e delicada.

A autonomia e o direito de escolha do paciente, garantidos pela legislação brasileira e tidos como grandes pilares da prática clínica pelo código de ética médica, pressupõem compreensão completa do diagnóstico, prognóstico, opções terapêuticas, riscos e implicações de cada alternativa.

O conhecimento médico, além de basalmente colossal, cresce e modifica-se a passos largos, e essa pretensa compreensão é quase sempre muito pobre, por mais culturalmente “diferenciado” que seja o paciente. Isso dá espaço a péssimas escolhas – feitas por critérios duvidosos e desconsiderando ou subestimando riscos importantes – e esse viés não é sequer percebido na maioria das vezes. A menina que se submete a um risco cirúrgico razoável para aumentar os peitos, esperando “tratar” um buraco que está bem mais abaixo, é o mais superficial dos exemplos – e existem muitos.

Talvez esse “direito à escolha”, o “poder sobre o próprio corpo” e outros valores demagogicamente proclamados na defesa tanto da cesárea quanto do parto domiciliar representem apenas uma falsa sensação de controle, uma ilusão de que estamos no comando e não precisamos confiar a vida àquele cara de branco, que já perdeu completamente a aura de santo – mas ainda é o mais preparado para assisti-la. Talvez esses referenciais sejam mais um obstáculo ao melhor cuidado da mulher gestante e de muitos outros pacientes.

O caminho do meio

Superar a visão dicotômica que só enxerga as escolhas “parto-cesáreo-mercantil-máquina-de-fazer-salsicha” ou “parto-domiciliar-bicho-grilo-abraça-árvore” parece ser o melhor caminho. Temos outras opções no cardápio, acreditem.

Pessoalmente, não tenho dúvidas de que o ambiente hospitalar é o melhor para a assistência a qualquer parto. A evidência científica, mesmo que metodologicamente imperfeita, suporta essa conduta e mesmo que os estudos tenham dificuldade em demonstrar diferenças estatísticas, não há justificativa para abandonar a segurança de uma estrutura que foi toda pensada para diminuir riscos que são, sim, consideráveis. Deixemos o destemor para outros momentos da nossa vida.

Sala de parto
Aqui há todo o necessário para uma mulher dar à luz — do jeito que ela quiser

A controversa (e já suspensa pela 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro) decisão do CREMERJ, apesar da truculência, visa nada mais que a segurança dos pacientes – e essa deveria ser nossa maior prioridade. Talvez esse caminho da restrição impositiva não seja o mais bonito, mas enquanto discutimos o assunto me parece sensato manter os pacientes onde estarão mais seguros. Cabe lembrar que a Justiça Federal suspendeu a resolução baseando-se mais em questões logísticas, como a impossibilidade de assistência em locais que não possuem hospitais, que em qualquer vantagem creditada ao parto domiciliar per se.

O que é indiscutivelmente válido – e até urgente – é que se abra espaço para a humanização do parto, dentro do hospital. Iniciativas nesse sentido ainda são incipientes, justamente porque as duas “facções” dialogam pouco e estão pouco abertas aos saberes uma da outra. Mulheres revoltadas protestam na rua sem saber das implicações das suas “escolhas” enquanto muitos doutores engravatados fecham as portas à discussão e preferem a comodidade da produção em série e consultório cheio.

Ao analisarmos o discurso das defensoras do parto domiciliar, percebemos que o principal motivo que as leva a tal decisão é a má assistência frequentemente prestada em ambiente hospitalar: privação de contato com acompanhantes, falta de privacidade, violência física e psicológica. Absurdos que devem ser combatidos, numa revisão imprescindível do formato atual de assistência – mas que não justificam a abdicação completa de estruturas e protocolos científicos desenvolvidos para diminuir riscos.

Só avançaremos de fato quando pararmos de perceber o outro como inimigo ou adversário. Todos queremos o mesmo: a melhor assistência à família que está nascendo. Há médicos dispostos a lutar junto às mulheres por uma assistência digna e humana. Há espaço (ainda pequeno, mas crescente) nos hospitais para partos naturais, fisiológicos, centrados no tão falado “binômio mãe-bebê” – e por que não incluir nessa equação o marmanjo com cara de bobo que não sabe se beija o filho, chora, tira foto, desmaia ou segura a mão da mulher?

Um dos meus grandes sonhos é ser pai. Se tudo der certo, vai ser no hospital, de parto “normal” e com ela brilhando, linda, mais mulher do que nunca. E acho que devemos todos brigar por hospitais onde isso seja possível, porque o problema, colega saco-roxo, nunca foi só delas.

Lucas Pedrucci

Gaúcho expatriado, é pianista aposentado, jogador de rugby em fim de carreira, ex-oficial da FAB, paraquedista das categorias de base e meditante wannabe. Seu principal hobby é a Medicina, que estudou na USP e tem praticado no Hospital das Clínicas.

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