Todos já ouvimos aquele papo de emoções como algo superiores à racionalidade, esta reconhecida como fria, ou um tanto totalitária – mecanicista, determinista. No entanto, isso é uma grande dicotomia falsa e por duas perspectivas simultâneas: tanto os valores negativos e positivos podem ser atribuídos a ambas as coisas, quanto não é muito possível dissociá-las.

Explico. O totalitarismo da razão não só também pode ser encontrado plenamente na contraparte, a emoção, quanto a própria razão é, muitas vezes, exatamente o que chamamos de “razoável” – o âmbito não arbitrário, compartilhado, público. A irracionalidade das paixões só parece atraente até certo ponto, da mesma forma que a frieza efetiva da razão só se manifesta sob certa perspectiva.

"Tô emocional. Não, tô racional"

Além disso, as emoções invariavelmente ocorrem em meio a torrentes de justificações e pensamentos aos soluços. E mesmo a aparentemente mais impassível racionalidade tem como base uma verve emocional, que facilmente vem à tona e brilha quando aquelas ideias são confirmadas ou refutadas.

Não existem valores absolutos em termos das duas faculdades, e separá-las é efetivamente  temerário – embora ao longo da história,  e mesmo nas visões prevalecentes hoje, o fato é que ainda há muita separação conceitual. Estereótipos de, por um lado, uma pessoa justa ou fria, e por outro uma pessoa passional ou intratável, correspondem ao espectro de possibilidades extremos dessas ideias, e em nosso arcabouço ideológico/conceitual cotidiano, operamos muitas vezes como se emoções e razão fossem em alguma medida separáveis.

Ainda assim, existe algum fundamento em lembrar alguém bufando de raiva para pensar bem as coisas, e em quebrar o transe labiríntico de um raciocínio com ar fresco e emoções simples ligadas aos sentidos imediatos, ou a um verdadeiro “reconectar com o coração”. Quando estamos fixados ou fascinados em demasia por uma engrenagem emocional e/ou racional repetitiva, vale o conselho de espairecer – e modo geral esse espairecer tem algo de imediatamente físico. Uma coisa que tanto as emoções quanto a razão fora de controle fazem é nos desconectar com a realidade imediata, pé-no-chão. E mesmo nos seus modos basais, não extremistas, ambas as coisas tem o potencial de distorcer a realidade, e nos fazer ignorar ou distorcer a evidência imediata dos sentidos e da memória.

Quem já ficou atormentado resolvendo um problema típico da engenharia, ou perdido em pesadelos que repetem conversas de fim de relacionamento, sabe que, nesse momento, qualquer atividade física ajuda, ou mesmo dormir, se for possível. Quando conseguimos passar uma dúzia de horas sem pensar no problema, ele ganha outra dimensão, novos caminhos se abrem. Isso vale para as duas faculdades, porque, ora, estou argumentando que não são separáveis.

Abrimos espaço para nos conectarmos vivencialmente, menos arbitrariamente: temos mais chance de usar os aspectos menos obsessivos de razão ou emoção.

Da mesma forma, respirar fundo, e tentar encarar um problema pessoal com praticidade, ou ser capaz de considerar as opções numa situação imediata, ou “desanuviar” e conseguir “seguir o fluxo” e ser espontâneos, são exemplos de momentos em que, tomados por emoções fortes ou racionalização aprisionante, sentimos que precisamos nos dar um tapa na cara e botar nossa mente para trabalhar seja de uma forma mais estruturada, ou efetivamente nos libertar das estruturas.

Num sentido histórico e social, a evolução das ideias no pensamento europeu vem lidando com essa dicotomia numa série de variedades extremas que aparentemente surgem de reatividades a momentos anteriores, ou aos diversos setores da sociedade. O iluminismo descamba no terror dos momentos posteriores da Revolução Francesa, e o olhar clássico, composto e elegante dá lugar ao romantismo de sentimentos exagerados. E o que é o nazismo senão uma mistura das engrenagens indiferentes das máquinas da revolução industrial com a passionalidade nostálgica do nacionalismo e o ódio pela alteridade? Emoções e razão combinados e no lugar errado são melhor exemplificadas com a invenção da metralhadora: uma síncope mecânica de fogo e destruição.

Mas é no aspecto espiritual e na publicidade que se confundem ideias de fé, não conceptualidade, mistério e devoção com pregação articulada. Como qualquer um que já tentou debater um tema difícil de forma intelectualmente séria com alguém sabe, argumentar não é um processo meramente racional – não basta estar em posse de evidências, referências, fatos, premissas verificáveis, implicações válidas e conclusões corretas: seja o convencimento o ponto, ou apenas o diálogo mutuamente enriquecedor, nos dois casos a psicologia do outro, o lidar com a alteridade, é o ponto crucial. E, nesse sentido, nunca seremos máquinas articulando protocolos perfeitamente lógicos – esta é uma ilusão do projeto racionalista, ou uma crença idealista na capacidade humana para uma racionalidade pura, imparcial, desconectada de nossos envolvimentos pessoais e outras faculdades.

É claro, o melhor dos mundos é lidar com alguém um tanto desembaraçado, capaz de olhar os próprios argumentos sob a ótica de suas dificuldades, capaz de flexibilidade cognitiva suficiente para verificar o que está sendo dito sobre várias perspectivas, dotado de autorreflexão bem cultivada e relativamente coerente e honesto, e assim por diante, mas exigir isso do outro é demasiado. O fato é que não temos clareza sobre o quanto irracionais somos – e aliás, quanto mais irracionais, é óbvio que menos clareza temos, comprovando Dunning-Krugger.

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Daí que é inevitável a necessidade de linguagem indireta e o que não pejorativamente se chama de “retórica”. Encontrar um interlocutor não arbitrário é uma raridade – ora, mesmo examinarmos honestamente a nós mesmos e não encontrarmos arbitrariedades também é uma proposta extremamente rara. A alternativa é, além da autenticidade e, se possível, a triagem de interlocutores (ninguém quer perder tempo com trolls!), um uso flexível e polissêmico da linguagem. Quanto mais diretos, menos flexibilidade é possível.

Pode soar escorregadio, mas é exatamente isso: as afirmações e a clareza nos parecem sedutoras, e efetivamente mais honestas, mas só funcionam num mundo ideal. Na realidade cheia de zumbis cognitivos e trolls, o fato é que estamos pisando em ovos, tateando às cegas para encontrar um ponto de conexão. Como no flerte, fazemos uma aposta, e certas coisas deixamos claras, enquanto outras vamos blefando – e não é uma mera desonestidade, é conhecer o outro mantendo ou nos reservando uma posição própria, um espaço de decisão, para os dois.

Este uso também é mais próximo da poesia, e seu impacto é “publicitário” – claro, a propaganda é a forma mais insidiosa de totalitarismo semântico, mas a ideia aqui é que não dialogamos com argumentos ou ideias, mas com os hábitos do outro. Aquilo que o outro projeta explicitamente, com maior ou menor habilidade, revela mais escancaradamente suas estruturas externas do que qualquer outra coisa. É muito raro ir ao outro em busca de conhecimento – mesmo no âmbito acadêmico.

E reconhecer os hábitos, as estruturas sutis do outro, implica em certa medida abandonar os próprios hábitos, em particular a ideia de que detemos um lastro privado ou garantia de conhecimento quanto a aspectos necessariamente imponderáveis – tais como metafísica, ou a própria estrutura sutil da comunicação e da alteridade. Encontramos muitas vezes seres totalitários que dizem ter se deparado com algo que “não conseguem explicar”, mas cuja existência e intimidade promulgam sem vergonha.

Ora, se não pode explicar, assobie. Não gaste o tempo dos outros articulando sua própria falta de coesão interna.

Esta postura é uma entre várias formas de desrespeito a alteridade – que usa o mistério como desculpa para o fechar de portas da comunicação. “Ah, isso você só vai entender se tiver a mesma experiência que eu” – óbvio que as experiências são intransferíveis, mas o mero ostentar publicitário de que algo misterioso foi reconhecido não garante nada, pelo contrário, assinala muito possível charlatanismo. E, principalmente, fecha as portas da comunicação – nem quem afirma é testável, nem quem ouve tem qualquer acesso.

Da mesma forma, mesmo numa relação a dois, quanto mais falamos de nosso amor, mais isso de fato aprisiona o outro, revelando não só nossa dependência quanto demandando do outro uma contraparte. Claro que podemos dizer que o amamos, se houver convite tácito para isso, ocasião: de outra forma nossa afirmação de amor é absolutamente vazia, na melhor das situações, e pode ser efetivamente negativa nas piores. Como algumas pessoas dizem, só se fala nas coisas quando elas não existem – discutimos paz durante a guerra, e assim por diante. Dizer “eu te amo” pode muito bem ser, e muitas vezes é, agressão, posse, separação.

Igualmente, falar em sua crença irracional em Deus ou na tartaruga cósmica não ajuda ninguém. Se ao menos a pessoa domina o método publicitário, ela apresenta um exemplo que nos faz perguntar: “o que essa pessoa tem de especial?”, e então ela efetivamente abre oportunidade para expressar a crença no monstro do espaguete ou no que for. De outra forma, ninguém está aberto para ser convencido.

Aliás, se alguém parecer estar aberto para ser convencido, isso muitas vezes pode ser exatamente o tal método publicitário operando. O micropoder também pode e muitas vezes é fascista, e quem não raciocina direito e não tem as emoções no lugar correto (na empatia, no reconhecimento da alteridade) é vítima fácil da escravidão ao pensamento, e à manipulação emocional, do outro. Reconhecimento de alteridade precisa vir na forma de respeito mútuo, de outra forma, é manipulação que visa cooptar ou excluir.

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."