Em maio de 2015, participei da conferência TEDx Laçador em Porto Alegre com uma fala de pouco mais de 10 minutos sobre como a cultura pop me ajudou a lidar com a descoberta de que meu filho tem uma condição genética rara chamada Síndrome de Prader-Willi.

Foi um texto difícil de escrever, trabalhoso de ensaiar e angustiante de apresentar ao vivo, em um palco, sem cola ou teleprompter, para uma plateia de desconhecidos.

Para família e os amigos, a síndrome do João Gabriel nunca fora segredo e mesmo assim, com muito afeto e ajuda evolvidos, o tema já trazia à tona inseguranças e desafios emocionais. Imagina então ir realmente a público, em um evento que seria filmado e transmitido online, falar sobre a diferença do meu filho em uma época em que a luta pelo respeito à diversidade vem sendo tratada às vezes com pura agressividade e às vezes com a assustadora indiferença de quem acha que “o mundo está ficando mais chato”. Honestamente, isso me meteu medo.

Ou melhor: medos. Com s no final. A gente costuma falar do medo usando o singular, mas medo quase sempre vem no plural e essa foi a minha experiência.

Ter um filho diferente da média e expor isso ao mundo adiciona à coleção básica de temores já embutidos na paternidade e na maternidade um pacote extra que é de uma riqueza estonteante.

Esses medos adicionais surgem nas profundezas do coração sob a forma de novelos difusos nos quais se entrelaçam tristezas, incertezas, desconfianças, paranoias, covardias, irritações, desesperos e outros vapores internos sem nome, cor e forma mas de uma intensidade palpável e intoxicante. São sensações e sentimentos de difícil tradução e de constrangedora expressão, portanto é comum que fiquem longe da superfície ao menos em sua roupagem original. Já não é fácil demonstrar determinados medos que reconhecemos e se torna quase impossível exteriorizar aqueles que mal conseguimos enxergar.

Só agora, quase dez meses depois da conferência, é que consegui escrever com um pouco mais de desenvoltura sobre o zoológico de anseios que se instalou em meu interior na época. Ainda não posso dizer que identifiquei todas as espécies – e isso talvez nem seja necessário – mas trazer algumas delas à luz da linguagem é tão tranquilizador quanto instigante. Você puxa a ponta de um fio para desenroscá-lo e descobre novos nós, que nem imaginava existir, logo abaixo. Em busca de sanidade, a coisa toda se torna uma maluquice completa e por vezes hilária. 

Exemplo: a primeira linha de medo que enfrentei, provavelmente clássica, foi o medo de expôr o meu filho. Seria certo fazer uma fala sobre ele sem que ele entendesse e pudesse decidir se queria ou não se tornar personagem de uma narrativa minha? Não sei. E continuo não sabendo.

Esse medo estava associado a outro, que era o de fixar uma identidade no meu filho, envolvê-lo em filme plástico e conservá-lo como o portador de uma síndrome rara que é tema de uma palestra de um TEDx, reduzir toda a vasta gama de expressões da sua vida a esse conceito.

Leia também  Uma régua para medir seu progresso em sabedoria

Embaraçado nisso, havia uma certa desconfiança de que eu poderia estar querendo me exibir, me tornar eu o protagonista de um pequeno épico de superação familiar (modalidade de narrativa muito popular hoje em dia). O que se enliava com outra incerteza: não correria eu também o risco de assumir uma identidade fixa, a do pai-herói-de-deficiente, o que poderia ser um peso desnecessário no longo prazo?

Envolvendo tudo, brotava o medo narcísico que marca muitos que trabalham com atividades criativas: vou dizer algo útil? Vou trazer algo minimamente interessante? Ou vou apenas vomitar clichês terapêuticos? E soar uma fraude?

No fim das contas, depois de muita reflexão e uma quase-desistência, independente de todos os medos, os com nome e os sem-nome, os com rosto e os desfigurados, com o apoio de pessoas próximas, fui em frente, subi no palco e, digamos, saí do armário.

Assumi perante um certo público minha condição de pai de um diferente – ainda que hoje meu filho não pareça tão diferente assim e ainda que eu não queira muito grudar esse adesivo em mim, seja como estigma ou como medalha.

E por que saí do armário? Eu não sabia bem, mas dez meses depois encontrei uma pista: o psicanalista Contardo Calligaris propôs, em uma de suas crônicas recentes, que o conceito de “sair do armário”, surgido na requintada cultura gay, diz respeito mais a um enfrentamento dos medos internos do que a um confronto com uma sociedade conservadora.

Sai-se do armário, segundo Calligaris, para começar a peitar as próprias culpas e inibições. A partir disso, peitar o preconceito, a violência e a negligência social fica um pouco mais fácil. Essa sequência, ao que parece, é uma tarefa universal, que une todos aqueles que se sentem diferentes. Mesmo que por tabela, como é o meu caso.

Uma vez fora do armário, pensei que haveria alguma fanfarra, algum tipo de insight poderoso que me guiasse dali pra frente. Mas não. Apenas retomou-se o trabalho diário, nas trincheiras da vida adulta (como diz David Foster Wallace) de fazermos o que for possível, dentro das condições que se apresentam, para que meu filho consiga crescer e explorar todo seu potencial mesmo com suas dificuldades.

Isso inclui esse texto, que reflete uma busca ainda desajeitada para que os frutos do nosso esforço em âmbito familiar transbordem para o espaço público. Mais uma tarefa cheia de nuances e complexidades, mas que precisa ser empreendida em algum nível para combater um outro medo, que continua sempre muito presente nesses tempos ainda inseguros para aqueles que são diferentes da média: o medo de sair do armário e descobrir-se em um quarto escuro com a porta e as janelas ainda totalmente fechadas.

Gustavo Mini

Gustavo Mini é publicitário e músico.