Nota da autora: escrevi este artigo com a intenção de que não fosse datado e fizesse sentido de modo atemporal. No entanto, não poderia deixar de dizer que foi escrito no calor da repercussão do estupro de 33 homens contra uma jovem de 16 anos. Entendi que era preciso ensinar homens a não estuprar.
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Hoje eu acordei com uma notificação do Rodrigo Cambiaghi no meu celular. Ele me mostrou a mensagem que mandou ao grupo da faculdade, que pedia pra que o nome violento e machista do grupo fosse modificado – Cambi disse que não gostaria que a sua filha visse que o pai frequentava rodas assim.
Ele, que já tem alguma ideia do que é feminismo, do que é cultura do estupro, do que é equidade de gêneros, vê muitos dos seus amigos perpetuarem práticas e linguagem bastante violentas pra com as mulheres – sejam elas amigas, namoradas, irmãs, ou desconhecidas.
Ele, que já sabe identificar violência até em contextos mais sutis como piadas e atitudes que poderiam passar batido a um olhar menos atento, tem a responsabilidade de educar os homens ao seu redor e compartilhar o que já aprendeu.
Dos outros homens, esperamos nada menos que isso.
Pela militância, se pararmos pra ouvir o que eles têm a dizer, vamos descobrir que muitos estão buscando caminhos de não serem estes mesmos homens que riem de piadas que nos degradam e que se sentem coibidos a gostar das nudes indevidamente compartilhadas nos grupos. Há homens que não querem ser estes mesmos homens que secretamente julgam suas parceiras menos inteligentes, gritam com elas, apertam seus braços. Não querem ser homens que estupram mulheres.
Estes muitas vezes se acham sozinhos. Têm imensa dificuldade em encontrar parceiros de jornada, que ofereçam ajuda e deem um toque quando tropeçarem, que troquem ideias sobre como podem, efetivamente, agir para impedir que as mulheres ao seu redor sejam violentadas. Não é um caminho fácil, e não há nada de errado em pedir ajuda.
É de suma importância entender a raiva e o medo das mulheres. É de suma importância entender que antes de nos sentirmos confortáveis na presença masculina, desconfiamos de todos. Porque assim fomos ensinadas, e é essa a nossa estratégia de sobrevivência, e não temos como saber quem será o próximo agressor. Mas na esperança de oferecer alternativas possíveis e um dia deixar de ser violentada, escrevi esse artigo.
Como você pode combater a cultura do estupro?
1. Pare de isentar o estuprador de sua responsabilidade
Aceite que aquele homem estava em sã consciência quando cometeu esse ato de violência. Não diga que ele estava drogado, que ele é doente ou deve ser louco. Pare de supor que, em algum grau, ele não tinha domínio sobre suas ações. Este homem sabia o que estava fazendo e o fez por um simples motivo: fora da nossa bolha, a violência contra a mulher é moralmente tolerável.
Foi só em meados do século XX, durante a segunda onda feminista, que a sociedade começou a questionar o sexo sem consentimento. Declarações midiáticas e culturais da época marcam bem explicitamente como o estupro era visto: a possibilidade do homem, que tem poder físico e moral sobre a mulher, de aliviar seus desejos sem maiores repreensões.
Em 2016, ainda é assim. Se hoje temos mais resistência e informação sobre o assunto, pra grande maioria ainda não é claro que um marido forçar ou coibir emocionalmente sexo sobre sua esposa é estupro.
Fora da nossa bolha, estupro ainda é moralmente tolerável e nem de longe considerado tão absurdo quanto matar, por exemplo.
Insinuar que o estuprador não estava pleno de suas faculdades mentais quando cometeu o ato é um desfavor.
2. Não compartilhe vídeos e fotos de mulheres violentadas
Essa vítima vai carregar as cenas pro resto da vida, e sabe-se lá se um dia vai se recuperar dos múltiplos traumas que uma tortura dessas causa. As emoções que vai sentir são inenarráveis, mas vão passar por pânico, nojo, tristeza e vergonha. Ela não precisa ter seu rosto e sofrimento expostos e marcados também nas memórias de outras pessoas.
Além disso, as cenas podem alimentar um imaginário psíquico perverso.
3. Pare de defender morte ou medidas de castração como solução para o problema
O porquê é simples: à hora que os estupradores forem castrados ou mortos, eu já terei sido estuprada. E aí não adianta mais, não há quem reverta o meu sofrimento.
Penas duras não estão dando conta de inibir a violência contra a mulher. A cada 11 minutos, uma mulher é violentada no Brasil. Os que são punidos não aprendem, continuam fazendo atrocidades. A reincidência dos casos de agressão doméstica estão em 75% no Maranhão, para tomar exemplo.
É claro que é importante que existam fatores punitivos, mas o essencial é prevenir o ato e impedir que essas vítimas sofram em primeiro lugar. E isso só se consegue atuando em rede, interferindo mesmo nos pequenos atos violentos ao seu redor e educando homens, lhes apontando outros caminhos que não o sexismo.
Além disso, a maioria dos candidatos políticos que apresentam propostas de lei nesse sentido defendem também posturas extremamente danosas aos direitos humanos das próprias mulheres e também outros cidadãos. Não vale a apoiá-los.
4. Se a carapuça não serve, não tente tornar isso o problema maior
Mulheres não têm como saber, à primeira vista, quem será seu agressor ou não. Por isso, como estratégia de defesa, desconfiamos de todos. Ademais, a exaltação social de uma masculinidade bastante violenta, na qual é bonito insistir até que uma mulher ceda e é perdoável dar uns tapas de vez em quando, faz com que muitos homens se sintam realmente pressionados na direção do estupro. Faz com que sejam, efetivamente, um risco à nossa segurança.
Por isso e muito mais, precisamos nos proteger como primeira reação.
Se você nunca estuprou ninguém e nem pretende, assuma a sua responsabilidade de educar outros homens nesse sentido. É uma energia melhor investida do que a que seria usada pra reclamar sobre a generalização. Não tente fazer soar como se a nossa estratégia de defesa fosse um problema maior do que os estupros em si.
5. Não xingue estupradores usando termos machistas, nem deseje que sejam estuprados na prisão para “aprender a lição”
A noção de estupro como “lição” ou “corretivo” é extremamente problemática porque legitima a violência e a coloca como válida em alguns casos. Um estupro nunca é válido, nem como vingança.
Além disso, xingamentos do tipo “filho da puta”, “boiola”, “vai aprender a ser mulherzinha na prisão” só reforçam a noção de que características associadas ao feminino são inferiores, negativas.
Dois desfavores que podem alimentar a própria cultura do estupro.
6. Não tente justificar a violência nem colocar a culpa na pessoa estuprada
Como dito, estupros e violência contra a mulher acontecem porque eles ainda são moralmente toleráveis.
Não acontecem porque a vitima usava roupa curta, porque o homem tem mais tesão do que a mulher, porque ela estava bêbada, inconsciente, ou precisava aprender uma lição. Acontecem porque alguém a estupra. Acontecem porque alguém viola seu corpo.
E também não acontecem porque “as mulheres hoje têm costumes diferentes” ou são “mais liberais”, visto que um grande número de estupros acontece dentro de casa.
7. Pare de consumir conteúdo pornográfico de origem desconhecida
Muito do desejo por resistência e jogo sexual é alimentado pelos vídeos pornôs que simulam ou retratam reais estupros. Consumir esse conteúdo é pagar pra que ele seja produzido, pra que essas atrizes sejam violentadas e que outras pessoas alimentem fetiches de estupro.
Além disso, uma grande parte dos filmes pornôs são produzidos sem nenhum cuidado com as atrizes envolvidas e corroboram com o ideário de um sexo falocêntrico e focado no prazer masculino.
Se escolher por consumir conteúdo pornográfico, busque certificar-se de que todos os envolvidos na produção estejam sendo tratados com dignidade e que o ideário sexual do filme considere a mulher como sujeito do sexo, como no caso das produções de Erika Lust.
8. Não contrate prostitutas, nem incentive os shows particulares para homens
A ideia de que homens podem e devem ter sexo a qualquer momento, independentemente da vontade de uma mulher, e que o ato sexual pode ser comprado é outra noção extremamente problemática.
O prazer do sexo precisa estar condicionado ao tesão de duas pessoas para ser saudável. É preciso ter muito claro que o consentimento de outra pessoa não poderia ser comprado ou coagido.
O tesão masculino precisa necessitar mais da correspondência de outro sujeito pra que os abusos não se repitam. Fazer sexo com alguém sem vontade precisa ser broxante.
9. Pare de violentar meninos
Meninos saudáveis são violentados todos os dias quando são pressionados a agir desrespeitosamente em relação a outras meninas, venha isso em forma de “parabéns, garanhão!” pela namorada da escola ou “não pega ninguém, boiola” como forma de chacota.
Essas agressões se acumulam e resultam em comportamentos autodestrutivos e violentos contra outras pessoas, em especial as mulheres. A pressão e violência sofridas pelos meninos são berço da misoginia.
10. Não tolere discursos ou humor machista
Quando você ri amarelo ou se cala diante das piadas ou chavões sexistas do seu pai, irmão, chefe, colega e amigo, você se omite e corrobora com a cultura do estupro. A violência contra a mulher precisa ser combatida desde suas raízes mais sutis para que não encontre terreno para crescer.
Ao presenciar cenas do tipo, chame os homens para uma conversa sincera sobre esses atos. Lembre que muitos deles não querem ser estupradores, mas precisam de ajuda e de um outro caminho para seguir.
11. Converse com os seus amigos sobre o compartilhamento de fotos das mulheres
Uma quantidade imensa de homens está em grupos de compartilhamento de nudes. Por causa da violência que sofreram quando meninos e a falta de atitude depois de homens, acham que espalhar as fotos e humilhar as mulheres nelas é símbolo de masculinidade.
Não aceite que seus colegas repitam essas ações e converse com eles sobre respeito e a preciosidade de uma relação saudável, de confiança e liberdade sexual entre um casal.
12. Impeça que os homens ao seu redor agridam mulheres fisicamente
Se estiver por perto de um estupro, agressão física, empurrões ou assédio, impeça que ele aconteça. Literalmente entre no meio da situação e impeça que a vítima seja abusada.
Ah, e lembre-se: assédio não é moralmente tolerável. Não é ok que seu parça enquadre a mulher na parede durante a balada ou beije-a a força.
13. Impeça que os homens ao seu redor agridam mulheres intelectualmente
Observe, perceba e interfira quando mulheres estiverem sendo desrespeitadas de maneiras mais sutis também como: ter sua fala constantemente interrompida por um homem, como se ela não tivesse plena capacidade mental, ou ter seus argumentos descreditados deliberadamente por motivo sexista.
14. Dê um toque no homem ao seu lado sempre que ele agir de modo sexista
Aceite que a possibilidade de que algum tipo de violência tenha vindo de você algum dia é real. Compreenda seu desejo de que isso não aconteça novamente e entenda que você vai precisar de ajuda pra tal, já que nem sempre conseguimos enxergar nossas próprias ações com clareza. Cerque-se de pessoas dispostas a estabelecer uma parceria com você, pessoas sinceras e compassivas, que seriam capazes de ouvir e de falar quando as condutas escorregarem.
Colocar-se como o homem feminista infalível não é garantia de nada.
Para ler mais sobre equidade de gênero e cultura do estupro
Esse texto parte do princípio de que algumas premissas já estão dadas e entendidas por todos, mas esse nem sempre é o caso. Há pessoas que não conhecem o real significado de palavras como feminismo, abuso, misoginia. Pra quem não entendeu muito bem do que estou falando ou acha que o que estou falando não faz muito sentido, ficam algumas leituras como sugestão para os dispostos.
- Feminismo para leigos, por Clara Averbuck
- Como se sente uma mulher, por Claudia Regina
- Feminismo para homens, um curso rápido, por Alex Castro
- Masculinidade tóxica: comportamentos que matam os homens, por Guilherme Valadares
- Masculinidade e violência, por Camila Caringe
- Como agir ao ser chamado de machista, racista, homofóbico – um guia para todos nós, por Alex Castro
- 9 ações para contribuirmos com a igualdade de gênero, na prática, por Anna Haddad
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