É comum acreditar que o mundo – para ser o que é – precisa ser separado em dois níveis, um superior e outro inferior. Para cada um deles nos condicionamos a eleger características aparentemente antagônicas: as que agimos acreditando serem as melhores e que nos diferenciam, e outras opostas as quais evitamos fortemente por acreditar não terem sentido com o “eu” que somos.
Porém, essa dualidade oscila com tanta facilidade que podemos ser enganados pelas nossas próprias convicções. E pior, tendemos a nos agarrar em um dos lados com tanta força, que nem notamos que essas características são inconstantes e agem em nossa personalidade a todo o momento.
Haveria algo mais estável acima de tudo isso? Qualidades verdadeiras que pudéssemos reconhecer para aflorar o potencial humano em nossos relacionamentos quotidianos: nas empresas, na academia, numa mesa de bar?
Agora vou dar uma pausa para contar a história de uma fase importante da minha vida. Se achá-la convincente, ou se existir algum ponto de coincidência com sua própria história, aqui pode estar uma chave para a percepção de que estamos juntos nesse processo.
Tudo começou em Outubro de 2004
Era o meu primeiro mês de trabalho em uma nova empresa. Essencialmente, minha função era projetar um software que integrasse os setores de marketing e vendas. Desde o meu primeiro dia, foi preciso um longo tempo me relacionando entre estas duas áreas para que o sistema começasse a ganhar forma.
Como eu me achava importante para a empresa, assim que desenvolvia uma nova funcionalidade no sistema, ia de imediato ao meu chefe mostrar o quanto ela funcionava bem, o quanto era prática, e blablabla.
No íntimo, hoje eu sei: queria elevar minha autoestima e mostrar a mim mesmo que eu era capaz – por isso que buscava tanto a aprovação do chefe. Pura ilusão.
A compreensão que vem do silêncio
Algumas boas semanas depois eu me sentia cansado daquele vai e vem a sala do diretor. Para ser sincero, me sentia exausto de como eu estava desperdiçando a minha energia com aquela busca repetida por autovalorização. Talvez eu tenha sido vencido pelo cansaço, ou inspirado por alguma autocompaixão. Talvez os dois.
Assim, parei com qualquer ação que insinuasse destacar o meu trabalho. Como um experimento sutil, onde eu era ao mesmo tempo o objeto de estudo e o pesquisador, fui dissecando cada ação que brotava por impulso e drenava minha energia. Para isto, foi preciso silenciar e me observar mais. E como consequência, ouvir mais o que cada pessoa tinham a dizer, da moça do cafezinho à outros colegas, incluindo o chefe.
Depois de um tempo persistindo nesta “simples” prática, eu comecei a me sentir mais conectado às pessoas ao redor. Principalmente, engajado ao propósito que me direcionava a fazer um bom trabalho ali, e que não precisava de qualquer autovalorização para ter o valor percebido.
“Apenas pare. Parar é um ato radical de amor próprio.” – diz Jon Kabat-Zinn – médico, escritor e criador da MBSR, ou “Mindfulness-Based Stress Reduction” (Redução de Estresse Baseada em Atenção Plena), método que desenvolveu e aplica em sua prática médica nos Estados Unidos.
Isso é vital para sairmos do nosso próprio caminho e seguirmos ao encontro do que nos destinamos a oferecer. Kabat-Zinn complementa:
“Somos a única espécie que se mete no próprio caminho. (…) Então parar é um ato radical, e é, em essência, um ato incrível de autocompaixão e sabedoria.”
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A marca das qualidades que oferecemos
Ao pensar sobre o que deixa marcas significantes na minha vida, cheguei à conclusão que realmente sou transformado quando alguém compartilha espontaneamente comigo o que tem de melhor. Cada qualidade que me é oferecida age como um estímulo para que eu reconheça as minhas próprias, servindo de motivação para que eu as ofereça de volta ao mundo – como nesta máxima de Benjamin Franklin:
"Diga-me eu esquecerei, ensina-me e eu poderei lembrar, envolva-me e eu aprenderei.”
As palavras, de fato, ganham força quando se conectam a atitudes consistentes. Reconhecer as próprias qualidades não é atitude exclusiva de ”super-heróis”, mas um comportamento natural que já existe em nossa própria natureza humana. Deixa eu mostrar alguns exemplos que ilustram isto.
Num dado momento da minha vida eu estava aborrecido com algumas questões que havia trabalhado duro para conquistar, mas havia chegado num ponto em que não dependiam mais de mim para se concretizarem – uma promoção no trabalho que não saia, um contrato de aluguel que não era aprovado, relacionamentos profissionais e pessoais que não vingavam etc. Frustrado, conversando com um colega durante o almoço, o tom indignado da minha voz foi vencido pelo que ele me disse:
“Toda essa revolta não serve de nada. Canalize a sua indignação para mudar a sua própria situação, não em mudar o resto”.
Tempo depois, numa viagem à Chapada dos Veadeiros em Goiás, fiquei hospedado na chácara de um homem que me sensibilizou profundamente pelas qualidades que oferecia com tanta generosidade à todos ao redor. "Seu Geraldo”, como é conhecido, é um ativo divulgador da permacultura e técnicas sustentáveis na comunidade em que vive.
Suas ações por si só ensinavam que para fazer a diferença no mundo não é preciso fama ou grande patrimônio.
Geraldo também gostava de uma boa prosa. Nas histórias que contava havia sempre um ensinamento por trás, como cuidar da natureza e acolher as diferenças dos outros é uma fonte de energia e felicidade a si próprio.
Esses dois exemplos demonstram que estamos prontos para compartilhar as nossas qualidades independente do momento, e que não é preciso muito quando o que temos a oferecer é o suficiente para quem recebe.
As nossas reais qualidades precisam de um terroir
Lê-se "terroar" em francês, termo muito usado por produtores e amantes de vinho para se referir ao terreno mais favorável no cultivo de determinada variedade de uva. Encontrar o terroir mais adequado para cada espécie propicia as melhores condições para produzir vinhos de excelente qualidade.
No nosso contexto, o terroir é o lugar ideal onde podemos cultivar as nossas qualidades, o terreno perfeito para elevar o nosso potencial.
“O homem precisa encontrar seu terroir, mesmo que, como para o nômade, o terroir seja o caminho. O que não dá é para não pertencer, não interagir, não conviver e não melhorar. Se o lugar onde você está tem tudo isso, então tem poesia. E não é mais apenas um lugar. É seu terroir.” – Eugênio Mussak (Revista Vida Simples, edição 25, 10/04/2013)
Mas, acima de tudo, para encontrar o terroir é preciso reconhecer-se a si mesmo antes de qualquer outra coisa. Caso contrário, sempre nos perderemos em lugares errados – ilusões criadas por nós mesmos que enfraquecem a expressão das nossas qualidades e nos afastam do propósito que estamos determinados.
Somos continuamente testados
É um grande estímulo saber que não estamos na mesma transformação sozinhos. Enquanto escrevo e você lê este texto, há tantas pessoas no mundo afora oferecendo espontaneamente o que reconheceram de melhor em si mesmas:
"Vocês precisam fortalecer as suas próprias qualidades e oferecê-las. Vocês realmente precisam ter confiança em suas qualidades. Pode ser apenas uma qualidade, mas ter aquela confiança que diz: 'muito bem, quando tudo ficar realmente difícil, pelo menos eu posso oferecer isso'. Isso é uma confiança." –Chagdud Khadro
Nossas qualidades não são fixas ou estáticas, mas enérgicas e dinâmicas. Elas são transformadas a cada novo momento: experiências, emoções, epifanias etc. Mas, a nossa maior fragilidade é nos identificarmos demais com elas, alimentando a fantasia de que somos superiores e indispensáveis. Lembra da postura inicial de autovalorização que tanto me iludiu na história inicial?
É na transformação constante das nossas qualidades que somos continuamente testados.
Mas assim seguiremos, e que nosso processo de reconhecimento interior não se perca em pretextos para expressar as qualidades que não precisam de pretexto. Como escreveu Hermann Hesse em seu maravilhoso livro “Demian”:
“Ser é ousar ser.”
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