“Faça o que você ama” é o mantra do trabalhador atual. Por que devemos reivindicar nossos interesses de classe se, de acordo com elites do FOQVA (Faça O Que Você Ama) como Steve Jobs, não existe algo como trabalho?

“Faça o que você ama. Ame o que você faz.”

As ordens são emolduradas e penduradas na sala de estar do que somente pode ser chamada de sala com uma boa curadoria. Uma imagem dessa sala apareceu pela primeira vez num popular blog de design e foi compartilhada no Pinterest, no Tumblr, e curtida milhares de vezes até o momento.

Iluminada e fotografada carinhosamente, essa sala foi decorada para inspirar Sehnsucht, grosseiramente traduzido do alemão como um anseio agradável por alguma coisa ou lugar utópicos.

Além do fato de introduzir exortações ao trabalho como um espaço de lazer, a sala do “faça o que você ama” – onde abundam bugigangas hype decorativas e trabalho não é labuta, mas amor – é exatamente o lugar onde todas essas pessoas que compartilham essa imagem ou a curtem, desejam estar. O arranjo díptico sugere uma versão secular de um altar de casa medieval.

Há pouquíssima duvida de que o FOQVA é o mantra de trabalho não oficial do nosso tempo. O problema é que ele não leva à salvação, mas à desvalorização do trabalho real, incluindo o mesmo trabalho que se pretende elevar e – mais importante, a desumanização da vasta maioria dos trabalhadores.

 

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“Faça o que você ama”

Superficialmente, FOQVA é um conselho motivador, exortando-nos a ponderar o que nós mais gostamos de fazer e então, transformar essa atividade em uma empreitada que gere renda. Mas por que nosso prazer deve ser lucrativo? Para qual público é esse ditado? Para qual não é?

Mantendo-nos focados em nós mesmos e em nossa felicidade individual, o FOQVA nos distrai das condições de trabalho dos outros enquanto valida nossas próprias escolhas e nos descompromete de obrigações para todos que trabalham, independente se amam ou não suas profissões. É o cumprimento secreto dos privilegiados e uma visão de mundo que dissimula seu elitismo como nobre auto-aperfeiçoamento.

De acordo com esse tipo de pensamento, trabalho não é algo que se faz para ser compensado, mas um ato de amor próprio. Se acontecer de não haver ganho, é porque a paixão e determinação do trabalhador não foram suficientes. A verdadeira façanha desse pensamento é fazer com que os trabalhadores acreditem que o trabalho serve a si mesmo e não ao mercado.

Aforismos têm inúmeras origens e reencarnações, porém a natureza genérica e banal do FOQVA carece de uma atribuição mais precisa. A Referência de Oxford liga a frase e suas variantes à Martina Navratilova e François Rabelais, entre outros. Já a internet frequentemente atribui o “Faça o que você ama” a Confúcio, situando-a em um passado místico e oriental. Oprah Winfrey e outros aduladores da positividade incluíram a frase em seus repertórios por décadas, mas o mais importante pregador recente do credo do FOQVA é o falecido CEO Steve Jobs.

Sua palestra de gradução na Universidade Stanford em 2005 fornece um mito de origem tão bom quanto outros especialmente porque Jobs já havia sido beatificado como o santo padroeiro do trabalho estetizado bem antes de sua morte precoce. No discurso, Jobs narra a criação da Apple, e insere esta reflexão:

“Você tem que encontrar o que ama. E isso é uma verdade tanto para seu trabalho quanto para seus amantes. Seu trabalho vai preencher uma grande parte da sua vida, e a única maneira de estar verdadeiramente satisfeito é fazendo o que você acredita ser um ótimo trabalho. E a única maneira de fazer um ótimo trabalho é amando o que você faz.”

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Nessas quatro frases, as palavras “você” e “ seu” aparecem oito vezes. O foco no individual não é uma surpresa vinda de Jobs, que cultivou uma imagem muito especifica de si próprio como um empregado inspirado, casual e apaixonado – todos os estados coincidentes com o ideal de amor romântico. Jobs telegrafou a fusão do seu eu obsessivo por trabalho com a sua empresa tão bem que sua camiseta preta e calça jeans se tornaram metonímias para todos da Apple e do trabalho que a mantém.

Mas ao retratar a Apple como trabalho do seu amor individual, Jobs omite o trabalho de incontáveis pessoas nas fábricas da Apple, escondendo-os convenientemente da vista de todos, no outro lado do planeta – o mesmo trabalho que permitiu Jobs concretizar seu amor.

A violência dessa omissão precisa ser exposta. Enquanto o “Faça o que você ama” soa inofensivo e precioso, é em ultima analise autocentrado, beirando o narcisismo. A formulação de Jobs do “Faça o que você ama” é a antítese depressiva à visão utópica de trabalho de Henry David Thoreau.

Em “Vida sem Princípio”, Thoreau escreveu:

“…seria uma boa economia para a cidade pagar aos seus trabalhadores tão bem que eles não sentissem que estivessem trabalhando para fins banais, meramente pela sobrevivência, mas para fins científicos, até mesmo morais. Não contrate um homem que faz seu trabalho pelo dinheiro, mas aquele que trabalha pelo amor a isso.”

Thoreau admitia não ter muita consideração pelo proletariado (é difícil imaginar alguém lavando fraldas para fins “científicos e até morais”, não importa o quão bem pago). Mas ele, no entanto, afirma que a sociedade tem responsabilidade ao proporcionar um trabalho bem compensado e significante. Contrariando as demandas de Jobs do século XXI que todos nós interiorizamos. Esse mantra nos absolve de qualquer obrigação ou reconhecimento de um mundo maior, destacando a traição fundamental com todos os trabalhadores, independentemente se eles abraçam isso conscientemente ou não.

Uma consequência desse isolamento é a divisão que o FOQVA cria entre trabalhadores, em duas classes principalmente. O trabalho torna-se dividido em duas classes opostas: aquele que é adorável (criativo, intelectual, socialmente prestigioso) e aquele que não é (repetitivo, não intelectual, sem distinção).

Aqueles que pertencem às áreas de trabalho adoráveis são vastamente mais privilegiados em termos de riqueza, status social, educação, preconceitos raciais, influência política; enquanto compreendem uma pequena minoria da força de trabalho.

Para os que são empurrados para o trabalho pouco atraente, a história é outra. Sob o credo do FOQVA, trabalho que é feito por motivos ou necessidades outras que não amor (o que, na verdade, é a maioria dos trabalhos) não é somente rebaixado, mas apagado. Como na palestra de Jobs em Stanford, trabalhos nada adoráveis, porém necessários socialmente, são todos banidos do espectro de consciência.

Pense na grande variedade de trabalho que permitiu a Jobs passar um dia como CEO: sua comida colhida nos campos, depois o transporte dela em longas distâncias. Os produtos da sua companhia montados, empacotados e transportados. As propagandas da Apple roteirizadas, com elenco produzido e filmadas. Ações judiciais processadas. Lixeiras de escritório vazias e cartuchos de tinta cheios. A criação de emprego vai aos dois sentidos.

No entanto, com a grande maioria dos trabalhadores efetivamente invisíveis para elites ocupadas com suas adoráveis funções, como se surpreender que um dos maiores esforços ​​enfrentados pelos trabalhadores atuais (salários absurdos, enormes custos de cuidados infantis etc) mal se registra isso como uma questão política, mesmo entre os grupos liberais das classes dominantes?

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Ilustração de Leslie A. Wood

Ao ignorar a maioria dos trabalhos e reclassificar o resto como “amor”, o FOQVA talvez seja a ideologia anti-trabalhista mais elegante da atualidade. Por que os trabalhadores devem se organizar e fazer valer seus interesses de classe, se não há tal coisa como o trabalho?

“Faça o que você ama” encobre o fato de que poder escolher uma carreira primariamente para reconhecimento pessoal é um privilegio não merecido, pois é um sinal da classe socioeconômica da pessoa.

Mesmo se um designer gráfico freelancer teve pais que puderam pagar pela sua faculdade de arte (ou sustentá-lo enquanto ele fazia seu curso integral numa universidade pública) e manter o aluguel de um apartamento num bairro bacana; ele pode hipocritamente oferecer o FOQVA como conselho de carreira para os que cobiçam seu sucesso.

Se nós acreditarmos que trabalhar como empresário no Vale do Silício ou um publicitário de museu ou um consultor de uma instituição não lucrativa é essencial para sermos verdadeiros conosco – na verdade, amarmos nós mesmos – o que achamos das vidas e esperanças daqueles que limpam quartos de hotéis e preenchem as prateleiras em grandes lojas de varejo? A resposta é: nada.

Ainda assim, trabalho árduo e de baixa remuneração é o que a maior parte dos Americanos fazem e sempre irão fazer. De acordo com o escritório de Estatísticas do Trabalho dos EUA, as duas profissões que mais crescem projetadas até 2020 são “Auxiliares de Cuidados Pessoais” e “ Auxiliar Doméstico de Cuidados”, com salários médios de US$ 19.640,00 anuais e US$ 20.560,00 em 2010, respectivamente. (aproximadamente US$ 1.600,00 por mês).

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Elevar alguns tipos de profissões a algo digno de amor necessariamente denigre o trabalho daqueles que tem profissões nada glamorosas que mantém a sociedade funcionando, especialmente o trabalho crucial dos auxiliares de cuidados, enfermeiros particulares etc.

Se o FOQVA denigre ou perigosamente torna invisíveis vastas áreas de trabalho que permitem que nós vivamos em conforto e façamos o que amamos; ele também tem causado um grande prejuízo às profissões que pretende celebrar, principalmente nos empregos existentes dentro de estruturas institucionais. Em nenhum lugar o mantra FOQVA tem sido mais devastador aos seus adeptos do que na Academia. O estudante médio de doutorado no meio dos anos 2000 renunciou ao dinheiro fácil da Administração ou do Direito (agora não tão fácil) para viver de uma bolsa escassa, a fim de prosseguir a sua paixão pela mitologia nórdica ou a história da música afro-cubana.

A recompensa por atender esse alto chamado é um mercado de emprego acadêmico no qual cerca de 41% do corpo docente é composto de professores adjuntos – instrutores contratados que normalmente recebem pouco, nenhum benefício, não tem escritório, nenhuma segurança e não possuem plano de carreira nas faculdades onde trabalham.

Há muitos fatores que mantem doutores realizando um trabalho de alta especialização em troca de salários tão baixos, incluindo um caminho de dependência e os custos absurdos de se conseguir um Doutorado; mas um dos mais fortes motivos é como a doutrina do FOQVA penetrou perversamente na Academia.

Poucas outras profissões fundem a identidade pessoal de seus ocupantes tão intimamente com a produção do trabalho. Essa identificação intensa explica parcialmente porque tantos docentes esquerdistas continuam estranhamente calados sobre as condições de trabalho de seus semelhantes. Porque a pesquisa acadêmica deve ser feita por puro amor, as condições atuais e as compensações por essa ocupação tornam-se “pensamentos para depois”, quando se quer são considerados.

Típico poster "Faça o que você ama"
Típico poster “Faça o que você ama”

Em “Trabalho Acadêmico, a Estética da Administração e a Promessa do Trabalho Autônomo” (Academic Labor, the Aesthetics of Management, and the Promise of Autonomous Work), Sarah Brouillette escreve sobre o corpo docente:

“… nossa crença de que o trabalho oferece recompensas não materiais, e é mais integrante da nossa identidade que um trabalho ‘comum’, nos torna empregados ideias quando o objetivo da administração é extrair o máximo de valor do nosso trabalho a mínimo custo.”

Muitos acadêmicos gostam de pensar que eles evitaram o ambiente do trabalho corporativo e seus valores concomitantes, mas Marc Bousquet nota em seu artigo “Nós trabalhamos” (We Work) que a academia que na verdade fornece um modelo para a gestão corporativa.

“Como simular o local de trabalho acadêmico e fazer com que as pessoas trabalhem em um alto nível intelectual e intensidade emocional nas cinquenta ou sessenta horas por semana por salários de barman ou até menores? Há alguma maneira de conseguirmos fazer com que os funcionários desmaiem sobre suas mesas, murmurando “Eu amo o que faço” em resposta a maiores cargas de trabalho e salários menores?
Como fazemos para que nossos funcionários sejam como um corpo docente, negando que se quer trabalham? Como adaptamos nossa cultura corporativa para que se pareça mais a cultura de um campus, para que assim nossa força de trabalho também se apaixone pelo que faz?”

Ninguém está argumentando que um trabalho prazeroso deva ser menos prazeroso. Mas trabalho emocionalmente satisfatório é também trabalho, e conscientizar-se disso não o enfraquece de maneira alguma. Recusar-se a admitir isso, por outro lado, abre portas para a exploração mais perversa, prejudicando todos os trabalhadores.

Ironicamente, o FOQVA reforça a exploração até nas profissões ditas criativas, onde trabalho em hora extra, mal pago, ou mesmo não pago é a nova norma: exige-se que jornalistas façam o trabalho de fotógrafos demitidos, publicitários usem seu Twitter e Pinterest nos fins de semana, é esperado que 46% da força de trabalho cheque seu email de trabalho quando estão doentes, em casa. Nada faz com que a exploração seja engolida mais fácil do que convencer seus empregados que eles estão fazendo o que amam.

Em vez de construir uma nação realizada, trabalhadores felizes, nossa era do FOQVA tem visto a ascensão de professores adjuntos e estagiários não remunerados – pessoas convencidas a trabalhar por pouco, de graça ou mesmo a desembolsar para trabalhar. Esse certamente tem sido o caso de todos os estagiários com créditos de bolsas escolares a quitar ou aqueles que na verdade adquirem estágios “leiloados” em ultra disputadas empresas de moda (Valentino e Balenciaga estão entre as várias empresas que leiloaram estágios mensais. Por caridade, claro). Recentemente, a exploração do trabalhador chegou ao extremo, como uma investigação em andamento da Pro Publica revela, estágios não remunerados têm uma presença maior na força de trabalho americana do que se imaginava.

Não deveria ser surpresa que estágios não remunerados abundam em áreas que são muito desejáveis socialmente; incluindo moda, mídia e artes. Essas indústrias habituaram-se a massas de empregados dispostos a trabalhar pela moeda “social” corrente em vez de salários reais, tudo em nome do amor. Excluída dessas oportunidades, claro, está a imensa maioria da população: aqueles que precisam trabalhar por salários. Essa exclusão não somente engessa a economia e a imobilidade profissional, mas isola essas indústrias de toda a diversidade de vozes que uma sociedade pode oferecer.

E não é coincidência que as indústrias que se apoiam fortemente nos estagiários – moda, mídia e artes são as feminizadas, como Madeleine Schwartz escreveu na “Dissent”.

Outra consequência danosa do FOQVA é o quão implacável ele se esforça para obter o trabalho das mulheres por pouca ou nenhuma compensação. As mulheres compreendem a maioria dos menores salários ou da força de trabalho mal paga; como cuidadoras, professoras adjuntas, e estagiárias não remuneradas, elas ultrapassam em número os homens.

O que une todos essas profissões, sejam doutores ou educadores, é a crença de que os salários não devem ser o principal motivo para realizar um trabalho. As mulheres devem fazer o trabalho pois são naturalmente criadoras e estão sempre ansiosas para agradar; afinal de contas tudo que elas fazem é cuidar de crianças sem remuneração, cuidar de idosos e serviços de casa desde os tempos primórdios. E falar sobre dinheiro não é algo que uma dama faria, de qualquer maneira.

O sonho do FOQVA é, de acordo com a mitologia Americana, superficialmente democrático. Doutores pode fazer o que amam, construir carreiras que saciem seu amor pelo romance Vitoriano e escrever artigos profundos no New York Review of Books. Alunos do ensino médio também podem fazer isso, construindo impérios de comida pronta a partir da receita de geléia da Aunt Pearl’s. O caminho sagrado do empresário sempre oferece inícios desvantajosos, isentando o resto de nós por deixarmos que esses começos sejam tão miseráveis como são. Nos EUA, todo mundo tem a oportunidade de fazer o que ama e ficar rico.

Faça o que você ama e você nunca trabalhará um dia em sua vida! Antes de sucumbir ao intoxicante entusiasmo dessa promessa, é crucial perguntar:

“Quem, exatamente, se beneficia ao fazer o trabalho parecer não ser trabalho? Por que os trabalhadores devem se sentir como se não estivessem trabalhando quando estão?”

O historiador Mario Liverani nos lembra que “a ideologia tem a função de apresentar a exploração sob uma luz favorável ao explorado, como algo vantajoso aos mais desfavorecidos”.

Ao mascarar os próprios mecanismos de exploração do trabalho que ele mesmo alimenta, o FOQVA é, na realidade, a ferramenta ideológica mais perfeita do capitalismo. Joga de lado o trabalho dos outros e dissimula o nosso trabalho de nós mesmos. Esconde o fato de que se reconhecêssemos todo o nosso trabalho como propriamente trabalho, poderíamos traçar limites apropriados para isso, exigindo uma compensação justa e horários mais humanos que nos permitissem dedicação à família e ao lazer.

E se fizéssemos isso, uma maior parte de nós poderia conseguir fazer o que realmente ama.

Nota do Editor: Este texto foi originalmente publicado no jacobinmag.com e traduzido por Ludmila Naves, roteirista, com autorização da autora.

Miya Tokumitsu

Miya Tokumitsu é PhD em História da Arte pela Universidade da Pensilvânia.