Lugar de criança é na escola! Será?

Você conhece esse garoto?

Karpar Hauser foi um garoto com uma história bem curiosa. Reza a lenda que ele passou os primeiros anos de sua vida aprisionado em uma cela escura, alimentado apenas por pão e água. Nesse primeiro período, ele não tinha contato nenhum com qualquer pessoa e, menos ainda, com todo o mundo que cercava as paredes que o prendiam.

Num determinado momento, o garoto foi solto e, pelos anos de reclusão forçada, conheceu o mundo sem nenhum tipo de conhecimento. Sem experiência de vida e sem possuir ao menos uma língua para poder se comunicar, o garoto aprendeu suas primeiras palavras e, posteriormente, começou a falar, assim como uma criança que começa a viver.

Sua aparição se deu em Nuremberg, na Alemanha, supostamente com 15 anos de idade, com uma carta endereçada ao capitão da cidade, pedindo para ser um cavaleiro, como seu pai. Mais à frente, Kaspar se mostra uma pessoa muito inteligente, com excelentes aptidões para música, tricô e jardinagem.

Mas isso não impediu que o garoto fosse tido como estranho e selvagem, tudo pelo simples fato de não conseguir entender e participar das convenções sociais da época (Sua aparição em Nuremberg aconteceu em 1828). Havia, na época, relatos de que ele seria membro da nobreza alemã. Kaspar tinha talento, um suposto sangue nobre, mas nada disso o ajudou a superar anos de isolamento.

Aprender as coisas da vida vivendo a própria vida. Soa como absurdo ou faz todo o sentido?

Escolas vêm nos mais variados tamanhos e formatos. Você pode ter frequentado uma instituição tradicional, humanista, democrática ou construtivista. Uma escola de rico ou de pobre. Pode ter adorado ou detestado – se você tem filhos, ou quando os tiver, gostaria que estudassem na mesma escola? Não é disso, porém – do que faz uma escola boa ou ruim – que trata este texto.

Pouco interessa, nesse contexto, comparar as diferentes abordagens pedagógicas – e sim um fundamento tão central do atual modelo de Educação, quanto raramente colocado em questão: a própria existência de escolas.

Precisamos mesmo delas?

A tarefa da Educação

Escola e educação são coisas diferentes. As gerações mais novas são recebidas pelo povo que já está por aí há mais tempo e é nossa tarefa apresentar-lhes a vida e o mundo, procurar oferecer uma boa ideia de como as coisas funcionam e do que esperar das manhãs de domingo.

Afinal, não nascemos humanos. Dependemos de ambientes humanos, das relações sociais e dos vínculos afetivos culturalmente organizados para nos humanizarmos. Sem isso, somos Kaspar Hauser. O processo de formação integral de um ser humano, em suas variadas dimensões, isso é Educação.

A invenção da Escola

Sendo essa a tarefa maior, em contrapartida, a Escola surge como estratégia. Só muito recentemente na história da civilização, inclusive, o processo de ensino-aprendizagem passa a contar com um lugar específico para isso – uma instituição fechada, cujo objetivo é manter os jovens exclusivamente dedicados aos estudos. Ao longo da maior parte da História, as pessoas aprendiam as coisas da vida na própria vida, no “mundão”, onde as coisas aconteciam e entre as pessoas que faziam as coisas acontecerem.

Disse o Mario Sergio Cortella (provavelmente inspirado em Foucault):

Há lugares que têm portas para as pessoas não entrarem – como os cinemas, teatros e estádios de futebol; e há lugares que têm porta para as pessoas não saírem: como as penitenciárias, os hospícios e as escolas.

Se a Educação é “o que devemos aprender” e a Escola é o “como devemos aprender”, apresento um argumento central: trata-se de uma péssima estratégia para a Educação tirar pessoas do lugar exato que deveriam aprender (o mundo) e colocá-los num ambiente distente, virtual (a escola). Examinemos a lógica fundamental do sistema.

  • Retiramos as crianças e jovens do mundo para que possam estudar… o mundo?
  • Privamos nossos filhos da vida cotidiana como forma de prepará-los para… a vida?

Isso equivale a treinar um nadador procurando mantê-lo afastado da piscina.

Galera, essa é a nossa nova escola. O nome dela é Alcatraz e a gente vai aprender, lá, tudo o que vamos fazer aqui pelo resto de nossas vidas

Dificuldades inerentes

A Educação escolarizada, portanto, embaralha meios e fins. Isso não é dizer que não há boas escolas. O problema é a lógica da coisa.

Ainda que haja boas escolas, elas não podem se livrar desta contradição de base e acabam tendo de lidar com dificuldades geradas pelo próprio sistema.

Por exemplo: as crianças estão sendo entupidas de remédios porque não param quietas. O que deveríamos nos perguntar: será que, para o bem delas, elas deveriam mesmo aprender a ficar quietas por horas a fio, dias, semanas, meses, anos, encerradas em salas de aulas procurando absorver uma infinidade de conteúdos que em geral não fazem sentido (por terem pouco a ver com sua realidade imediata e por não terem muita utilidade) – enquanto a vida acontece lá fora? Isso é sinal de saúde?

Sendo a educação um fenômeno mais amplo, entendemos a escolarização como a institucionalização, a burocratização e a massificação dos processos vitais ligados à descoberta do mundo. É pegar alguma coisa viva, fluida e pulsante e encaixotá-la.

À semelhança de mosteiros e laboratórios, as salas de aula são criadas para serem ambientes assépticos, planejados para manter os alunos concentrados, livres de distração. Mas este é apenas um jeito de se pensar a educação – e um jeito bem ruinzinho, inclusive. Podemos inventar outras maneiras.

Derrubando os muros

O que acontece se abrirmos os portões, se derrubarmos os muros? A sala de aula será o mundo. A cidade, a comunidade e as redes (físicas ou digitais) serão a escola. Ao invés de um caminho único para todos, cada pessoa poderá tomar a vida nas próprias mãos e empreender sua formação no próprio ritmo, impulsionada fundamentalmente por seus interesses e inclinações. Para que possa escrever e viver a própria vida, e não a vida que alguém planejou para ela.

Transformar a educação num processo mecânico é um baita tiro no pé

Utopia? Vejamos:

Cidade-escola

Nunca antes contamos com tantos recursos para viabilizar esse modelo descentralizado de Educação. Uma cidade como São Paulo, por exemplo, oferece oportunidades de aprendizagem extraordinárias. É o mote de um trabalho como o Catraca Livre: o site publica, a cada dia, uma relação de serviços oferecidos gratuitamente ou a preços populares. Cursos e palestras, exposições, cinema, teatro, shows, mostras, performances, intervenções urbanas. Tudo de graça ou baratinho.

O Sistema Municipal de Bibliotecas, outro exemplo, conta com uma rica programação cultural. De graça. Participei de uma oficina de Escrita Criativa e de duas de Contação de Histórias e gostei bastante. Descobri, numa delas, a Biblioteca de São Paulo, construída sobre as ruínas do Carandiru – uma das bibliotecas mais bacanas que já vi. Em cerca de 5 minutos, fiz minha carteirinha e obtive acesso ao acervo de livros, filmes, áudio-livros e computadores com conexão Wi-fi.

Você sabia, por exemplo, que existe uma universidade aberta no Parque Ibirapuera? A UMAPAZ (Universidade Aberta do Meio-Ambiente e da Cultura de Paz) opera por meio de uma rede de parcerias para oferecer oficinas, vivências e cursos ligados à educação socioambiental. Imagine só, estudar no Ibirapuera!

Podemos incluir na lista os Centros Culturais do Itaú, do Banco do Brasil, o Masp, o MAM, a Fiesp, os SESCS e sua maravilhosa infra-estrutura e programação. Só para ficar nos mais conhecidos.

Contrastes

Retomando e reforçando: é de se convencer que o modelo atual de educação (que foi concebido ao longo de um período histórico de características radicalmente distintas) entrou em colapso. Os sinais provenientes dos ambientes escolares são inequívocos: sofrimento, adoecimento, licenças psiquiátricas dos educadores, bullying, explosões de violência, transtornos inventados e medicação em larga escala.

Link YouTube | Porra, pode falar do clichê que for, mas esse vídeo se faz muito pertinente nessa exata parte do texto

Se, todavia, as pessoas nas escolas estão literalmente enlouquecendo pela falta de sentido do sistema, o mundo fora das escolas nunca foi tão rico em oportunidades de aprendizagem.

Internet-escola

Além dos recursos físicos, talvez o mais impressionante seja o potencial de desenvolvimento e de transformação pessoal disponível a quem tenha acesso à internet.

Não é exagero afirmar a quantidade e qualidade dos materiais à disposição online.

São cursos livres, universidades abertas, documentários e filmes de ficção, livros digitais, enciclopédias, mapas e documentos históricos, aulas e demonstrações, fotos, músicas, além das interações em redes sociais, os processos colaborativos e a emergência de inteligências coletivas. Enfim, não é exagerado afirmar que, quem possui acesso a banda larga, já dispõe de um volume de conteúdo de alta qualidade, boa parte dele gratuita, em quantidade maior do que será capaz de esgotar até o final da vida, ainda que disponha de bastante tempo só para isso. Sem contar o que vai sendo acrescentado à rede a cada dia.

É um desperdício manter crianças e adolescentes confinados quando poderiam usufruir do que a cidade e a rede oferecem. As pessoas não têm tempo de explorar a própria cidade, ou o universo inesgotável da rede mundial de computadores, porque precisam estudar para a próxima prova, terminar a lição de casa ou responder à chamada em algum lugar.

Em contrapartida, aí estão a Wikipedia, o MIT Open Course Ware, o TED (e o recente TED Ed), a Khan Academy e o Portal V-educa (para citar apenas alguns). São reservatórios de experiências de crescimento e aprendizagem impossíveis de serem exploradas nos limites estreitos das salas de aula, em grupos que precisam funcionar de modo homogêneo, conduzidos por professores sobrecarregados e desestimulados. Ficar na escola é perda de tempo e as crianças (e especialmente os adolescentes) têm consciência cada vez mais aguda disso.

De volta ao mundo

Por que não deixá-los assumir a responsabilidade de escolher guiarem-se pelo coração? Ao invés de (pré) julgá-los incapazes, não será possível sonhar um modelo singularizado, desinstitucionalizado, aberto e flexível, usando os recursos que a sociedade já oferece, inclusive reorganizando, para recebê-los, os locais de trabalho, produção e prestação de serviços?

Link YouTube | “Estamos produzindo indivíduos desprovidos de criatividade”. E isso já é dito com pouco mais de cinco minutos

A Educação não precisa acontecer em um mundo à parte.

Precisamos gerar condições adequadas para acolher as crianças e adolescentes – os aprendizes – nos nossos ambientes, ao invés de retirá-los do cotidiano e congelá-los em estado de preparação para um futuro hipotético. Parte essencial das condições necessárias para libertar as pessoas da escolarização envolve a transformação do lugar e da função do educador(a).

Um novo profissional: o educador curador

Em um modelo aberto, de agente do sistema, dedicado à reprodução do status quo, o profissional da educação passa à função criativa de mentor, curador ou inspirador de processos de amadurecimento e formação. Uma vez que, nos dias de hoje, o problema deixa de ser o acesso ao saber e passa a ser o excesso de opções, a função do educador (ou da educadora) envolve, fundamentalmente, as habilidades:

  • De parteira: ajudar o aprendiz a entrar em contato com suas inclinações (com seu coração, com sua verdade, com sua interioridade), apropriando-se de seus anseios, conflitos e contradições. Dar nascimento à individualidade.
  • De guia de viagem: apontar as trilhas acidentadas, os terrenos escorregadios e os becos sem saída e selecionar, dentre o vasto oceano de possibilidades, direções favoráveis para a realização de seu potencial único e de suas aspirações mais profundas.

O educador(a) companheiro de jornada, portanto, deverá estabelecer com o aprendiz uma relação mais próxima, autêntica e pessoal em comparação com as relações professor-aluno institucionalizadas, fragmentadas e autoritárias das séries e disciplinas escolares no sistema atual.

Esse modelo que relativiza a hegemonia do sistema formal de educação e busca alternativas consistentes de formação humana (e não apenas cognitiva-intelectual), que insere na vida e na cultura (e não apenas na academia e no mercado de trabalho), é uma realidade emergente, está borbulhando, e será desenhado pelas pessoas ousadas que enxergarem e tomarem as primeiras iniciativas. A hora é agora.

Se a ideia interessou, o nosso autor vai participar da HUB-ESCOLA de Outono, com a oficina “Fim das escolas: empreendedorismo e desescolarização”.

Dia 19 de abril, quinta-feira, às 14h00.

Andre Camargo Costa

André Camargo é Mestre em Psicologia pela USP e já trabalhou como professor universitário de graduação e pós. Hoje se dedica a apoiar e inspirar pessoas inquietas que querem fazer a diferença no mundo. Seu site é <a>andrecamargo.com</a>."

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