Depois que tive meu primeiro filho, sempre lembro dele quando vejo outras crianças. E quando vejo crianças maiores ou adolescentes, penso em como ele vai ser quando tiver aquela idade.

Hoje, no metrô, tinha um garoto de uns dez ou doze anos, pele muito branca e cabelos cacheados (o meu filho também tem cabelos cacheados), sentado sozinho no banco do trem. Observava distraído as pessoas que entravam no vagão. Parecia tão desprotegido…

Na verdade, ele está protegido por umacultura de paz.

Pode sair de casa sozinho e ir à escola ou à casa de um amigo somente porque vivemos numa sociedade estruturada. Mesmo com alguns problemas, ela existe e funciona.

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“Não, não é bem isso que vou te deixar como herança.”

Nossa independência é ilusória. A roupa que eu uso, não fui eu quem fez. O alimento de hoje, não fui eu quem plantou. Eu nem mesmo preparei o meu almoço! Outras pessoas fizeram isso por mim. Existe uma cultura de paz que organiza os nossos esforços, para o bem coletivo. Constrói ruas, escolas, hospitais. Nós a recebemos dos nossos antepassados.

Nascemos todos muito frágeis e dependentes. Precisamos do cuidado dos pais, precisamos ser acolhidos pelo grupo social. Depois, ao crescer, aprendemos a contribuir de alguma forma com a coletividade que nos acolheu. Aprendemos a gerar benefícios para outras pessoas.

O engenheiro não constrói as casas somente para ele e sua família. Ele utiliza sua força de trabalho para suprir as necessidades de outras pessoas. Da mesma forma, outras pessoas trabalham para que ele tenha um carro, o combustível esteja acessível, o celular e o computador funcionem. Somos todos amparados pela coletividade, os seres humanos não sobrevivem sem isso.

Eu não sei quanto tempo vou viver, até quando vou poder dar apoio e proteção ao meu filho. Mesmo agora, eu não posso estar junto dele o tempo todo, ninguém pode. Depois que eu me for, e a mãe dele também, ele vai ser amparado por uma cultura de paz. A maior proteção que podemos dar aos nossos filhos é conservar, ampliar, melhorar essa cultura. É a única proteção possível.

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Sem uma cultura de paz, mesmo que eu ficasse 24 horas ao lado do meu filho, não seria capaz de protegê-lo. Se mísseis desabassem sobre as nossas cabeças, se exércitos invadissem as nossas ruas, o que eu poderia fazer? Nem se fosse um super-herói e tivesse poderes sobrenaturais, não teria condições de salvá-lo.

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Há um modo de ser mais poderoso do que os super-heróis…

Outro dia, também no metrô, vi um rapaz conversando no celular com o pai dele. Era um cara alto, com barba curta, cabelo preto, liso, idade entre vinte a trinta anos. Carregava uma mochila vermelha nas costas. Tinha um olhar sonolento, apático. De repente, o celular tocou e ele atendeu:

— Alô, pai, arrumei trabalho.

Ele conta rapidamente que arrumou um trabalho, freelance, de uma semana. Falava com o pai de forma muito doce. Sentado ao lado, viajei para o futuro e imaginei meu filho me ligando para contar coisas de sua vida. “Pai, arrumei um emprego”, ao ouvir aquela frase, foi como se estivesse ouvindo meu filho. Magicamente, eu me alegrei com a felicidade de uma pessoa que eu nunca vi antes. É como se eu tivesse virado pai de todo mundo, e me alegrasse com a felicidade de todos.

Raros, estes momentos existem. Porque a felicidade não conhece fronteiras, os sentimentos são contagiosos. E esta capacidade de se alegrar com a felicidade alheia é o que torna possível uma cultura de paz. Não somente para mim, nem somente para meu filho, mas para todos nós.

O melhor presente que podemos deixar para nossos filhos, netos e descendentes, é um ambiente limpo e sadio, uma sociedade mais livre (de injustiças e preconceitos) e menos violenta, um espaço fértil para nossas potencialidades.

Se você tem filhos, ou pretende tê-los, invista em cultura de paz.

É a melhor herança que podemos deixar.

Rogério Guimarães

<strong>Rogério Guimarães</strong> é advogado e pai de primeira viagem. Gosta de ler, tocar violão e praticar tai chi chuan. Escreve no blog <a>Bodisatva</a>."