“This is my rifle
This is my gun
This is for fighting
This is for fun”

(do filme “Nascido para Matar”, 1987)

Em 7 de maio, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que altera o Estatuto do Desarmamento e facilita o porte de armas em mais de dez situações, incluindo jornalistas cobrindo ocorrências policiais, conselheiros tutelares e residentes de áreas rurais, no perímetro de sua propriedade. Deputados e senadores já se mobilizaram para derrubar o decreto e o Ministério Público Federal pediu à Justiça sua suspensão integral e imediata.

No texto de hoje, vamos participar desse debate falando sobre como o maior acesso às armas de fogo pode afetar a saúde dos homens brasileiros.

Por que ter uma arma?

O argumento mais imediato para o porte de uma arma de fogo é, sem dúvida, a defesa pessoal, dos próximos e da propriedade. A partir de uma compreensão de que a segurança pública é ineficiente ou insuficiente para proteger a vida e o direito à propriedade privada – especialmente das pessoas mais visadas por sua riqueza ou ocupação –, conclui-se que o cidadão deve ter o direito de defender-se por conta própria.

Armas também são peças de engenharia interessantíssimas. A alimentação de uma pistola automática, a simplicidade do septuagenário fuzil AK-47 e o alcance de um rifle de precisão podem ser encantadores, e certamente tiveram papel importante na história humana.

Mas as armas também simbolizam muitas coisas no imaginário coletivo, como coragem, poder, força e agressividade – valores constituintes de nossa conhecida masculinidade hegemônica.

Crianças aprendem isso muito cedo: nas brincadeiras de polícia e ladrão, as meninas raramente participam; nas brincadeiras de cowboy e índio, as meninas são as donzelas em apuros esperando ser salvas. Nos anos 90, meninas brincavam de bonecas, meninos brincavam de Comandos em Ação; hoje, de princesas e Ben 10.

Arma é coisa de homem; ter uma arma torna alguém mais homem – ainda mais se for para proteger sua família, reafirmando o papel clássico de provedor e “homem da casa”.

Quem aperta o gatilho é a pessoa, mas quem morre tem idade e cor

Muitos entusiastas das armas de fogo respondem às críticas que recebem dizendo que armas não atiram sozinhas, mas são manejadas por pessoas, sendo cada uma delas responsável por seu uso seguro e “justo”.

Prova disso seria que as pessoas já têm diversas armas à sua disposição, como facas, tesouras, martelos, porretes, venenos, fogos de artifício, e não saem por aí dando facadas, tesouradas etc. Em outras palavras, a culpa por acidentes, ataques passionais, revanches fatais e homicídios em escolas é das pessoas que disparam o gatilho, não das armas, e tampouco da sociedade.

No entanto, a história mostra como as pessoas são falhas, e os indicadores mostram como as armas de fogo têm destaque nas mortes dos homens. Segundo o DATASUS/TabNet, dos 56.438 homens que morreram por agressão em 2016, 42.102 foram vítimas de armas de fogo, sendo 18.102 jovens de 15 a 24 anos.

Em outras palavras, 3 em cada 4 homens mortos por agressão levaram um tiro e metade dos que morreram de tiro tinha entre 15 e 24 anos. Para comparação, no mesmo ano, 55.617 homens morreram de infarto do miocárdio e 14.926 do temido câncer de próstata. Morrem mais homens de agressão do que de infarto. E morrem mais jovens de 15 a 24 anos de tiro do que homens de câncer de próstata.

As balas (ou aqueles que apertam o gatilho) não escolhem apenas idade, mas também raça/cor. Daqueles 42.102 homens que morreram vítimas de arma de fogo, 3.468 são pretos e 27.764 são pardos; dos 18.102 jovens de 15 a 24 anos que morrem pela mesma causa, 1.546 são pretos e 12.539, pardos.

Simplificando, três em cada quatro homens que morrem de tiro no Brasil são pretos ou pardos.

Os Estados Unidos da América como exemplo

A Segunda Emenda à Constituição Americana, de 1791, é citada por muitos para defender o direito a ter armas de fogo, mas nem todos que o fazem devem conhecer o conteúdo ou o contexto histórico da emenda. Seu texto é breve:

“Sendo necessária uma milícia bem regulamentada para defender a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido.”

Os estadunidenses haviam declarado independência do Império Britânico apenas 15 anos antes, e uma nova invasão das ex-colônias era uma ameaça real; em cujo caso, seria preciso que os cidadãos “pegassem em armas” para defender seu país. Hoje, há cerca de uma arma de fogo civil para cada cidadão estadunidense, em média.

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Segundo a BBC News Brasil, armas de fogo são a segunda maior causa de morte de crianças nos Estados Unidos, com quase três mil mortes anuais – superando as mortes por câncer e problemas cardíacos juntas. A mortalidade é duas vezes maior em regiões com legislação mais flexível do que naquelas em que o porte de armas é mais restrito.

Certa vez, durante um curso que fiz, houve uma dinâmica na qual os participantes deveriam contar seus hobbies. Um médico era atirador esportivo, e nos contou por que não guardava mais sua arma em casa, e sim no clube, mais ou menos com essas palavras: “um dia eu peguei minha filha pequena mexendo na arma. Felizmente eu guardava descarregada. Eu a deixava sempre numa caixa trancada, escondida em uma parte alta dentro do armário, e ainda assim ela conseguiu pegar. Não adianta o que você faça: eles dão dar um jeito de pegar”.

Um estudo de 2009 na Filadélfia mostrou que pessoas portando uma arma tinham um risco 4,46 vezes maior de levarem um tiro em uma situação de agressão que aqueles que não portavam. Entre as situações em que a vítima teve pelo menos alguma chance de resistir, o risco era 5,45 vezes maior.

A conclusão dos pesquisadores é que armas não protegem quem as possui de levarem um tiro em um ataque, e a chance de sucesso é baixa entre usuários civis de armas em regiões urbanas.

Semelhantemente, uma revisão estadunidense de 16 estudos publicada 2014 mostrou que ter acesso a uma arma em casa aumenta o risco de homicídio e de suicídio.

Finalmente, dados de 2012 mostram que os Estados Unidos tem o maior número de mortes por arma de fogo por habitante entre todos os países desenvolvidos, com 29,7 homicídios a cada milhão de habitantes.

Nenhum desses mortos deve ter sido um britânico querendo retomar as colônias de além-mar.

Hey Joe, where you goin' with that gun of yours?

Hey Joe, I said where you goin' with that gun in your hand, oh
I'm goin' down to shoot my old lady
You know I caught her messin' 'round with another man

(“Hey Joe”, Billy Roberts, 1962)

Apesar de nosso foco nesse texto ter sido a saúde dos homens, não se pode discutir o maior acesso armas de fogo sem pelo menos citar o feminicídio – os assassinatos de mulheres em circunstâncias relacionadas a gênero. De acordo com as Diretrizes Nacionais: Feminicídio, de 2016, as desigualdades de gênero nas mortes violentas têm como razões o sentimento de posse sobre a mulher; o controle sobre seu corpo, desejo e autonomia; a limitação da emancipação profissional, econômica, social ou intelectual da mulher; o tratamento da mulher como objeto sexual; e a manifestação de desprezo pela mulher e pelo feminismo.

O “homem da casa” é um homem que mata quando esse papel é desafiado e uma sociedade patriarcal tende a ver as vítimas como merecedoras ou “corresponsáveis” por sua morte, ao mesmo tempo em que não intervém durante a escalada de violência que acontece em muitos lares brasileiros.

Segundo o mesmo documento, quase metade das mortes de mulheres no Brasil são produzidas por armas de fogo.

* * *

O porte de armas é comumente associado a segurança e proteção, mas tudo indica que cidadãos que as têm e seus parentes estão sob um risco maior de serem alvejados que a população desarmada.

Com a flexibilização do acesso a armas, os homicídios, suicídios e feminicídios devem aumentar paralelamente às ações da Taurus, fabricante brasileira de armas que ocupa o quarto lugar no mercado estadunidense e já se prepara para o aumento da demanda por seus produtos. Ganharemos em impostos, perderemos em vidas e há uma boa chance de que aumentaremos os gastos do Sistema Único de Saúde com o atendimento das vítimas.

Você quer mesmo ter uma coisa dessas por perto?

Antônio Modesto

Médico de Família e Comunidade e doutor em Medicina Preventiva pela USP. Professor na Faculdade de Medicina da Unicid. Carioca de sotaque e paulistano de coração, toca cinco instrumentos mas nenhum bem. Tem estudado gênero, saúde dos homens e medicalização da vida.