Era uma vez um dia como qualquer outro. Eu estava sentado na frente do computador, trabalhando em alguma coisa. Minha namorada estava sentada atrás de mim, ao meu teclado, tocando Let it Be, dos Beatles.
Ela fazia o acompanhamento direitinho na mão esquerda. A direita já tocava a melodia de forma limpa e no tempo. Mas ela ainda não conseguia fazer as duas mãos tocarem como uma só. Sempre que tentava articular melodia e harmonia, errava. O que é normal.
Independência de mãos é uma das coisas mais difíceis de fazer quando se está começando no piano. É uma habilidade que demora algum tempo para amadurecer. Na época, ela devia contabilizar umas duas ou três aulas de piano. Quase nada.
A cada erro, ela ficava mais tensa, nervosa e frustrada. A irritação travava suas mãos, fazendo com que errasse cada vez mais, e que ficasse ainda mais chateada.
Aquilo que poderia ser o começo de uma “sing along night” estava virando, sem querer, uma espiral crescente de aborrecimento.
Um bilhão de vezes eu já estive no lugar dela, lutando contra o meu instrumento. Dessa vez, porém, era alguém muito especial que estava calçando meus sapatos.
Paradoxo
Por que, então, nós transformamos uma fonte de alegria e de crescimento pessoal numa fonte de aporrinhação? A impressão que fica é de que gostamos de investir nosso pouco tempo e nosso suado dinheirinho em frustração.
Colecionamos experiências sofridas enquanto vamos aprendemos coisas. Não que isso seja um pecado, mas revela muito do espírito com o qual nos engajamos em nosso treinamento. Repetimos a nós mesmos que crescer e amadurecer é difícil. No pain, no gain. Que é preciso fazer o dever de casa antes de assistir televisão. Que precisamos treinar por 10.000 horas se quisermos ser experts em algo.
Deixamos para associar boas experiências às amizades, aos amores e a momentos de diversão que vivemos. Sem querer, criamos uma profecia autocumprida sinistra, na qual toda frustração que imaginamos se concretiza pelo nosso próprio esforço. Agimos sobre algo antes mesmo de acontecer.
A minha suspeita é que o principal motivador do nosso aprendizado é o medo.
Aprendemos porque temos medo do mundo diante de nós e do que pode acontecer. Construímos nossa cultura, sociedade e nossos métodos de ensino baseados na opressão e na intimidação. Ensinamos nossas crianças a sentir medo desde cedo, fazendo com que acreditem que consequências terríveis acontecerão se as notas no boletim forem baixas.
Nos mexemos para aprender o que é necessário para proteger nossos empregos e nossos relacionamentos. Aprendemos códigos, comportamentos e valores que supomos que vão nos colocar numa zona de segurança, onde nada pode nos ameaçar.
Por medo, trocamos experimentação por validação e aprovação, não nos permitindo aprender com nossos próprios erros. Por medo, tentamos proteger nossos egos do fracasso. Não é à toa que ficamos tão irritados quando nosso desempenho não corresponde às nossas expectativas ou às (supostas) expectativas dos outros.
Por medo, queremos acreditar que é possível ir mais rápido que a nossa capacidade cognitiva. Não praticamos nada com cuidado e nem damos o devido tempo para amadurecermos nossas habilidades. Queremos virtuosismo sem comprometimento, e fazer o que é mais difícil sem dominar o básico.
Ironicamente, por medo, sabotamos o nosso próprio treinamento, ao criarmos tensões e ansiedades desnecessárias. Aumentamos a carga de stress a que nos submetemos, juntamente com o tempo que levaríamos para aprender algo simplesmente porque somos incapazes de relaxar. Criamos uma relação burocrática com o nosso aprendizado, esquecendo de relaxar e aproveitar o que nos é oferecido. Transformamos um passeio em potencial numa via crúcis.
Aliás, errar é isso também: andar sem rumo e sem destino. Se aventurar por aí.
Quero outra forma de aprender
Em tempos ancestrais, em outros contextos culturais, talvez o medo fosse o único agente capaz de motivar um ser humano a desenvolver técnicas e habilidades de sobrevivência. Afinal, era preciso proteger a entrada da caverna de possíveis predadores, e cercar o povoado com muralhas para impedir que roubassem nossas colheitas.
A impressão que fica é que, de lá para cá – estou chutando uns 40 mil anos de civilização – pouca coisa mudou nesse sentido. Não estou dizendo para destrancarmos nossas portas à noite, mas será que a única maneira possível para fazer um ser humano se educar é por medo de uma perda, do futuro desconhecido ou de qualquer outra coisa?
Satanizamos nossos erros, como se eles fossem abortos da natureza que jamais deveriam ter acontecido. Coisas que mancham o nosso nome (olha o ego aí de novo) e nos fazem passar por incompetentes. Ignoramos seu valor em nos informar o quanto que precisamos melhorar. Esquecemos que erros são um testemunho de nosso empenho em mudar.
Eu sinto vontade de ter aprendizados assim, movido sem medo de fazer errado embarcando num processo sem muito controle, mas com direcionamento. Vagar sem saber exatamente aonde nossas explorações nos levarão – até porque uma experimentação, por definição, pressupõe falta de controle de resultados. Sinto falta de um aprender mais livre, vivo e interessante. Sem medo.
P.S.: Este texto foi e voltou da revisão, até ficar no ponto. O que você está lendo é o final da jornada, ainda que não seja um fim em si mesmo. Foi um belo exercício de tentativa e erro. Principalmente erro.
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