Semana passada, falei do mito de que a AIDS seria doença de gay. Infelizmente, existe também outro mito: de que seria doença geneticamente desenvolvida para matar afrodescendentes.

No começo da década de oitenta, apesar de ainda atingir desproporcionalmente os homossexuais, fora de grandes centros como São Francisco e Paris já era possível encontrar heterossexuais com recém-descoberto HIV. Especialmente imigrantes africanos recém-chegados.

Arma racista de extermínio em massa que saiu de controle? Humm… não. O entendimento da origem do vírus estava contido neles, e quem revelou esta informação foi o DNA. O mesmo DNA que nos mostra que o HIV não é um organismo artificial.

A princípio, observando seres tão distintos quanto plantas, lagartas e bactérias, pode até parecer que são muito diferentes. Mas a vida tem muito em comum, em especial o material genético. Todos os seres vivos são compostos do mesmo tipo de moléculas orgânicas, como lipídios (gorduras), aminoácidos (proteínas) e carboidratos (açúcares), e a receita de como eles serão produzidos e organizados está toda contida no ácido nucléico, o DNA. Alguns vírus, que não são seres vivos nem possuem células, tem a liberdade de usar como material genético outro ácido nucléico, o RNA.

Campanha da organização francesa AIDES, de 2004. Legenda: “Sem preservativo, é como se você estivesse fazendo amor com a própria AIDS. Proteja-se.”
Campanha da organização francesa AIDES, de 2004. Legenda: "Sem preservativo, é como se você estivesse fazendo amor com a própria AIDS. Proteja-se."

Assim como o material genético (DNA ou RNA) está contido em todos organismos, ele também compartilha informações. Nós e os chimpanzés, nossos primos peludos, compartilhamos entre 90% e 98% de material genético idêntico (dependendo da porção dele que comparamos). E, mesmo a parte que não é idêntica, pode ser reconhecida como compartilhada, embora um pouco diferente.

Pouco depois que o HIV foi isolado de pacientes com AIDS, seu DNA começou a ser sequenciado. O vírus do HIV possui um genoma de RNA, e é um dos poucos que o traduz em DNA, caminho contrário do que normalmente fazemos. Daí seu nome, retrovírus. Este DNA que ele produz se integra no nosso genoma, de onde produz novas partículas que vão invadir outras células. Este DNA do HIV, que foi sequenciado e pode ser comparado, é o que nos permite saber quem ele é e de onde veio.

Grande parte dos genomas de HIV sequenciados estão disponíveis na internet para quem quiser estudá-los. Meu doutorado depende disso: assim como eu, milhares de outros cientistas mexem e fuçam essas sequências todos os dias. Seria impossível fazer com que esta multidão continuasse calada se visse algo de errado.

Ainda não acreditou? Então faça o teste você mesmo. Escolha o tipo de vírus, localidade, paciente de origem e o que mais você quiser do vírus, baixe a sequência (sugiro o HXB2, primeiro vírus isolado ainda na França) e utilize este site que compara o que você tem com todas as sequências que já foram disponibilizadas, de qualquer organismo (é só marcar Others no tipo de organismo do banco de dados).

Sabe com o que o genoma do HIV se parece? Com outros retrovírus, em especial o SIV, vírus da imunodeficiência símia. O que nos leva para a África.

Deste processo de sequenciar e comparar a variabilidade genética de isolados do HIV, se percebeu que os imigrantes africanos possuíam uma diversidade muito maior de sequências. Enquanto os isolados da Europa e dos EUA eram muito parecidos, indicativo de uma epidemia de mesma origem, os isolados africanos eram extremamente diversos. Vírus de indivíduos de um mesmo país, de uma mesma região, podiam ser mais distintos do que todos os isolados americanos juntos. E este é o sinal de uma epidemia muito antiga.

Esta diversidade genética acionou os alertas dos pesquisadores, indicando que se quisessem saber de onde aquele novo vírus se originara teriam que ir para o berço da humanidade. Foi lá que descobriram que não existe apenas um tipo de HIV, exitem dois, o HIV-1 e o HIV-2. Apenas o primeiro circula regularmente fora da África. E o HIV-1 também não é uma coisa só, existem vários grupos de HIV-1, o principal chama-se M, de main, e é o responsável por quase todos os casos fora da África (os outros receberam as letras N, O e P, na ordem de descoberta).

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Mesmo o grupo principal de HIV-1, o M, possui uma diversidade genética tão grande que foi dividido em subtipos, classificados por letras, de A a K. Um mapa bem completo dos tipos e subtipos do HIV e onde se encontram está aqui. Repare, de novo, que o único lugar que contém todas as variantes é a África. Já dá para saber de onde veio, não? Mas como ele surgiu?

Campanha da organização francesa AIDES, de 2004. Legenda: “Sem preservativo, é como se você estivesse fazendo amor com a própria AIDS. Proteja-se.”
Campanha da organização francesa AIDES, de 2004. Legenda: "Sem preservativo, é como se você estivesse fazendo amor com a própria AIDS. Proteja-se."

A revelação veio da descoberta de outros retrovírus em primatas próximos, em especial os chimpanzés. Comparando o genoma do HIV com seu primo SIV de chimpanzés, foi possível descobrir que ele saltou diversas vezes do chimpanzé para humanos. Curiosamente, a maior diversidade de HIV é encontrada hoje em dia em Uganda, em uma região que era rota de venda de carne de caça, especialmente carne de primatas. E, como sabe qualquer um que já viu o tamanho dos dentes de um chimpanzé adulto, se cortar e entrar em contato com o sangue deles não é algo lá muito difícil.

Com base em uma conta bem simples, dado que o vírus acumula mutações em seu genoma em uma taxa constante x, e dado que o HIV-1 tem z mutações de diferença do SIV, ele precisa ter surgido há pelo menos y anos, seguindo uma formulinha x.y=z. O resultado desta conta, feita de maneira um pouco mais científica, dá algo em torno de 100 anos. Ou seja, o HIV moderno precisou ter circulado entre humanos há pelo menos 100 anos para ser tão diferente do dos chimpanzés. E quem avaliou isso e chegou a estes resultados foi aquela multidão de cientistas que gosta de fuçar em sequências. Não é um grupo fácil de enganar e manipular. Pergunte ao reitor de uma universidade que faz pesquisa.

A confirmação veio de algumas amostras de sangue antigas, de pessoas que estavam contaminadas com o HIV. Especificamente, uma amostra de Kinshasa, Uganda, em 1960, e outra do Haiti, em 1959, lugar bastante visitado por imigrantes africanos e foco de uma segunda epidemia. A diferença genética entre elas só ajuda a reforçar a idéia de que o HIV veio da África e já circulava bem antes de ser descoberto. Estas sequências são de um período onde mal havíamos descoberto o DNA, longe de podermos criar algo tão complexo, muito menos de fazer com que fizesse algum sentido para quem encontrasse este material mais de 40 anos depois.

Como várias outras infecções recentes, vide influenza e SARS, o HIV é uma zoonose, ou seja, um vírus de outros animais que saltou para os humanos. Durante muito tempo, sua circulação ficou restrita à região africana onde se originou, mas assim que as condições de transporte e relações entre pessoas de países diferentes permitiram, ele se espalhou pelo mundo, facilitado pelas pessoas mais conectadas que já vimos antes.

A série “AIDS desconstruída”

Nosso objetivo é desmistificar um tema ainda espinhoso pra muita gente. O primeiro artigo aborda o mito da AIDS ter sido criada para acabar com os gays e o segundo, com os afrodescendentes. No terceiro artigo, explora a lenda urbana de que existe uma vacina ou tratamento para AIDS sendo escondido pelas autoridades. Vale a pena ler.

Atila Iamarino

Doutorando pela USP, biólogo viciado em informação e ciência. Autor do excelente blog <a>Rainha Vermelha</a> e editor do <a href="http://scienceblogs.com.br/">Science Blogs Brasil</a>