1. Anatomia de um crime

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“O texto tá finalizado. Se tiver 5 curtidas e 2 comentários, vai ser muito. Pelo menos ninguém pode reclamar que o Papo de Homem não puxa casca de ferida.”

Foi assim que apresentei ao Jader, meu editor no Papo de Homem, o artigo “A vida tem sentido?“. E eu estava sendo franco em relação à baixa expectativa de curtidas/comentários, afinal, o que podia esperar de um texto que fala do sentido da vida sem pretensões religiosas e sob a perspectiva de um personagem neurastênico?

Por isso fiquei incrédulo quando, na manhã da publicação, recebi uma mensagem do Jader avisando que o texto estava bombando nos comentários.

Mais ainda, eu não estava preparado para a excelência daquelas conversas. Foi uma polifonia de testemunhos e referências, em que se harmonizaram vários instrumentos e ritmos. De metal sinfônico à MPB; de curta-metragens à cenas de longa-metragens; de citações de mestres orientais à confissões de romancistas russos: todos convergentes na formação de uma visão única, embora plural, sobre o sentido da vida humana.

Mas algo que me incomodou, por estarem absolutamente certos, foram os comentários de Vinicius Domenes e Frederico Vilela. Segundo eles, faltou, ao final do texto, uma proposta de sentido da vida. A verdade é que assumi a posição confortável de não me expor e, por outro lado, não me sentia a vontade com nenhuma das propostas apresentadas usualmente, principalmente pelas religiões, a respeito do tema.

Ocorre que, após ver a excelência de todos aqueles comentários, não havia mais desculpas — a busca por uma proposição do sentido da vida havia se tornado uma atividade coletiva com todos os leitores que participaram.

Como o seriado True Detective, que inspirou o texto, os comentários tornaram-se uma verdadeira investigação. Mas não uma averiguação criminal, e sim uma busca por pistas que possam desvendar outro tipo de delito: aquele que nos privou do sentimento de integração com o universo, de completude com o mundo circundante, aquele que nos faz perguntar se a vida tem um sentido.

2. A cena do crime

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Começamos por Sergiuss, um dos comentadores/investigadores que, para comprometer-se unicamente com a verdade, decidiu permanecer anônimo.

Ele descreveu a cena do crime de forma quase poética:

“A maior angústia do homem origina-se no seu inconformismo, por ter sido compelido a uma condição artificial, distante da natureza, mãe que o gerou incapaz.
Como sempre acontece na seleção natural, esse ser imperfeito foi desprezado, e seus instintos exigiram incomumente do seu cérebro, para que encontrasse formas de subsistir, mesmo agindo contra suas origens. Perdido e hostilizado, devia evitar o próprio meio onde nasceu. Mas como, sem se frustrar, sem ódio de si mesmo?
Nesta ambiguidade existencialista, fez surgir o bem e o mal, descobriu a dialética, o amor e o ódio, o domínio e a submissão, deuses e demônios, agressão e carinho. E ainda agora se debate melancolicamente entre artificialismos delirantes e a simplicidade do que realmente quer.
Sua imaginação voa, pois não tem asas. Seus sentimentos o sustentam, pois não tem garras. Caminha pelos confusos labirintos do existencialismo, porque não tem patas hábeis.
No entanto, sua consciência mais íntima sabe em qual sentido ir, pois deseja ardentemente depor as armas que a engenhosidade do seu cérebro construiu e voltar para casa. Ele deseja voltar para a natureza, tal qual o filho pródigo que sua nostalgia inventou, e desfrutar, finalmente em paz, do paraíso, de onde foi expulso.”

Segundo relata, a humanidade tornou-se uma espécie anômala, pois dotada de um excesso de consciência que a diferencia das demais (ainda que já esteja provada a presença de consciência em outros animais). Deixando de se identificar com a natureza, a vítima sentiu como se fosse rejeitada pelo próprio mundo — como um verdadeiro desviante do reino animal.

E reagiu a essa situação inventando um outro mundo, fora da natureza, povoado de anjos e demônios; um universo fantástico que desse conta de seu excesso de consciência, de seu anseio pela imortalidade.

Para Sergiuss, a solução seria o retorno à natureza. Afinal, no fundo, nossa briga é justo essa: como na lenda de Adão e Eva, fomos expulsos do paraíso natural da irreflexão, da atenção total ao momento presente, da integração ecológica com os outros animais, e a esse paraíso queremos voltar nem que seja na marra.

Essa é, na verdade, a primeira pista que encontramos na investigação.

Mas isso é possível? Podemos retornar àquela sensação de eterno presente na qual vivem os outros animais? Podemos retornar àquele sentimento de pertencimento, de integração com a natureza?

Bom, se imaginamos esse retorno como um projeto de abandonarmos as cidades e irmos viver nas florestas e savanas, ou nos unirmos em comunidades hippies sem energia elétrica, provavelmente não. Mas há uma outra forma de retornarmos a natureza, desde que compreendamos exatamente o que a natureza quer da gente.

Porém, antes de analisarmos essa questão, continuemos com a investigação.

3. A Vítima e seu depoimento

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A vítima é a própria condição humana. Todos nós, de alguma forma, somos afetados pelo questionamento sobre o sentido da vida.

Testemunhando em nome de todos, uma das vítimas preferiu o anonimato. Loyal Freckes assim depôs a respeito dos fatos ocorridos:

“Comecei a fazer essas perguntas difíceis para tentar encontrar um sentido no roteiro criado para as nossas vidas, e decidi que a melhor coisa que eu deveria fazer era rasgar o roteiro e tentar encontrar meu próprio caminho.
Não foi fácil perceber minha própria ignorância em relação à vida e à realidade que me cerca. Descobrir que meu ego sequestrou minha consciência e vem mentindo para mim durante toda minha vida. Isso quase me levou à depressão. Para uma pessoa que sempre buscou ferozmente a estabilidade, sentir na pele que todas as estruturas criadas pelos seres humanos são inerentemente instáveis e eventualmente cairão é desesperador.”

Essa é a regra em nossa sociedade: herdeiros das escolhas de nossos antepassados, fomos ensinados a empurrar para debaixo do tapete todas as verdades incômodas a respeito de nossa condição. Contudo, tais verdades acumulam-se a ponto de se tornarem um monturo maior do que o próprio tapete. Em algum momento, nosso projeto de negação falha.

É quando somos vítimas de depressão, de ansiedade, de transtornos compulsivos ou de ataques do pânico. São manobras desesperadas e emergenciais de nossa mente, quando ela pressente que está diante de um conjunto de verdades que é superior a sua capacidade de assimilação e aceitação.

Muitos, a seguir, buscam socorro em medicamentos que aplacam os sintomas mas deixam intocadas a causa original, o crime perpetrado contra a condição humana.

4. O principal suspeito e seu interrogatório

O principal suspeito é o homem moderno. Seu interrogatório ficou ao encargo de Wanessa Achkar, que colheu o depoimento e gravou as palavras do indiciado para posterior análise. No curta metragem , roteirizado por Wanessa e dirigido e produzido por ela e Carlos César, o suspeito apresenta sua versão dos fatos.

São 14 minutos e 30 segundos de um visceral depoimento. Imperdível:

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5. O que encontraram os policiais

evidencias

Cristhyano de Paula foi o primeiro a chegar na cena do crime. Como policial acostumado a ver tais atrocidades no seu dia a dia, ele adota a postura sóbria e pessimista de todo aquele conhece a natureza humana e sua propensão para o mal:

“A evolução é um emaranhado de acertos e erros onde as circunstâncias para sua ascensão, no caso dos seres humanos, não funciona mais da mesma forma que na natureza. Afinal, ninguém precisa ser o mais rápido, o mais forte ou ter três braços para sobreviver.
O que presenciamos atualmente é que a distração é algo em constante e rápido crescimento. Nós nem estamos mais negando a realidade, simplesmente a ofuscamos totalmente. Não há como negar algo que, para nós, não existe.
Então, de certa forma, não estamos fazendo uma “seleção natural” de nós mesmos? Não seria sempre um passo a frente e dois para trás?
Não querendo soar arrogante, mas é tarefa impossível. Pegue um texto sobre futebol e um texto como esse, onde a massa vai se deliciar mais?
Como evoluir em um coletivo que continua puxando tudo pra trás e se deliciando com isso? É como ficar de mão dadas com um grupo de pessoas que ficam te puxando enquanto você tenta seguir em frente.
Você tem duas opções. Ou se solta do bolo e segue sozinho ou acaba sendo arrastado com eles.
Então arrisco dizer que a consciência humana atual está nesse ponto entre o primata e o superior ao atual, mas não vejo como ela, coletivamente, consiga sair disso.”

Em uma coisa Cristhytano tem total razão: não há uma lei universal que determine o progresso humano, não há nada que justifique um “pensamento mágico” a respeito de nosso futuro, como a crença de que alguma força metafísica venha a jogar os dados do destino trapaceando-os a nosso favor. Somos nós, são nossas escolhas coletivas e individuais, que determinarão se o nosso futuro será uma distopia ou uma utopia.

E é tão delicada a situação que não temos o direito de ser pessimistas. Pois se a situação é péssima, o pessimismo só garantirá, pela omissão, que ela piore. Logo, justamente sob a ótica do pessimismo, um grande esforço otimista é exigido para que, no mínimo, as coisas não piorem, para que permaneçam como estão.

Conforme a receita de Noberto Bobbio, convém que pensemos como pessimistas, para antevermos os obstáculos adiante com lucidez, mas que atuemos como otimistas.

6. O que as interceptações telefônicas registraram

telefone

Os comentadores Pedro Paulo e Vinícius Marçall foram responsáveis pelos grampos durante as investigações. Graças a eles, o leitor pode escolher dois tipos distintos de diálogos musicais capturados durante a interceptação telefônica.

O primeiro é o de Pedro Paulo. Segundo nosso investigador, a música “The Phantom Agony“, da banda de metal sinfônico Epica, resume os anseios e agonias de nossa existência, com uma melodia e harmonia muito bem trabalhadas.

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Pedi ao Paulo uma transcrição da gravação ambiental, e o seguinte trecho da letra composta por Mark Jansen e Yves Huts chamou minha atenção, por traduzir com exatidão o crime que estamos investigando:

“O ancestral desenvolvimento da consciência
Afastou-nos da essência da vida.
Pensamos tanto que nossos instintos
Desvanecerão, eles desvanecerão.”

Mas se o leitor prefere algo menos grandioso e sinfônico, o investigador Vinícius Marçall apresentou outra captura ambiental, em que Caetano Veloso, poeticamente, faz a pergunta que algo em todos nós continuamente faz:

“Existirmos: a que será que se destina?”

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7. A testemunha ocular

testemunha-ocular
Trem da Vida
Train de Vie

O investigador Diego Santos colheu o depoimento da testemunha ocular Schlomo, prestado no ótimo filme ():

Além do saboroso humor da interpretação final que os dois homens fazem das palavras de Schlomo, há algo de verdadeiro na frase “o homem criou Deus para conseguir se inventar”. E entenda-se por “Deus” qualquer referencial de uma totalidade integradora que possamos conceber.

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Ainda tratarei disso com mais detalhes num texto futuro. Mas, por ora, basta registrar que, independentemente da questão sobre se alguma divindade existe fora do homem, Deus, enquanto referencial de totalidade, “existe” ao menos dentro de nossas mentes, como um conceito a partir do qual podermos nos compreender enquanto seres humanos.

Em outras palavras, ainda que Deus não exista, a ideia de Deus, a ideia de que algo totalizante seja capaz de unir o finito ao infinito, conferindo sentido a vida humana, existe dentro de nós, como forma de referenciarmos nossa identidade em relação ao mundo.

Claro, é possível vivermos sem um referencial de totalidade, sem mirarmos num horizonte maior que nossas vidas finitas e supormos que nossos atos individuais integram um todo maior. Porém, isso não afasta o fato de que negar a validade interna da ideia de Deus é dar mais um passo na direção da angústia existencial.

Temos aí, graças a descoberta de um de nossos investigadores, mais uma pista das duas já encontradas, e que podem solucionar o mistério desse crime: a necessidade de retornarmos à natureza e a necessidade de vivermos para além de nós, considerando nossos atos e nossas vidas segundo a ideia de algo que sirva como referencial transcendente de totalidade e de integração de nossas individualidades com o mundo, até mesmo com o universo.

8 –  O corpo de delito

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Nosso legista Vitor Torga Lobardi identificou e descreveu a ferida causada na vítima: ela é pura carne viva, absolutamente exposta, sem qualquer pele ou outro tecido a recobrindo, deixando o coração da vítima totalmente desprotegido. Mas, surpreendentemente, essa ferida produz, além de dor, também ternura. E ela própria é o caminho para a salvação da vítima e recuperação do próprio criminoso.

Mas que tipo de ferida é essa, que é caminho e resposta? No relatório pericial, Vitor Torga transcreveu as palavras do especialista Chögyam Trungpa, mestre de uma das minhas autoras budistas prediletas, a Pema Chodron:

“Quando acordamos desse modo o nosso coração, descobrimos com surpresa que ele está vazio. Temos a impressão de olhar o espaço sideral. O que somos nós? Quem somos nós? Onde está nosso coração?
Se olharmos com atenção, nada veremos de tangível ou sólido. Claro, é possível encontrar algo muito sólido, se tivermos rancor contra alguém ou se estivermos possessivamente apaixonados. Esse, porém, não é um coração desperto. Se procuramos o coração desperto, se colocamos a mão no peito para senti-lo, nada encontramos – a não ser ternura.
Sentimo-nos doloridos e ternos, e se abrimos os olhos para o mundo, reconhecemos em nós uma profunda tristeza. Uma tristeza que não vem de termos sido maltratados. Não estamos tristes porque nos insultaram ou porque nos consideramos pobres. Não. Essa experiência de tristeza é incondicional. Ela se manifesta porque nosso coração está absolutamente exposto.
Nenhuma pele ou tecido o recobre – é pura carne viva. Mesmo que nele pousasse apenas um mosquito, nós nos sentiríamos terrivelmente tocados. Nossa experiência é crua; nossa experiência é terna e absolutamente pessoal.
O autêntico coração da tristeza provém da sensação de que o nosso inexistente coração está repleto. Estaríamos prontos para derramar o sangue desse coração, prontos para oferecê-lo aos outros. Para um guerreiro, é a experiência do coração triste e terno que dá origem ao destemor, à coragem.
Convencionalmente “ser destemido” significa não ter medo, significa revidar um murro, dar o troco. Aqui, entretanto, não estamos falando do destemor das brigas de rua. O verdadeiro destemor é produto da ternura e sobrevém quando deixamos o mundo roçar nosso coração, nosso belo e despido coração.
Estamos dispostos a nos abrir, sem resistência ou timidez, e a encarar o mundo. Estamos dispostos a compartilhar nosso coração.”

Segundo nosso perito, a ferida produzida pelo crime não é um mal, mas um antes uma solução, um caminho na direção do destemor. Ela é nosso próprio coração desperto e sensível, que tentamos proteger temendo que o mundo o machuque, que tentamos esconder receando que seja interpretado como um sinal de fragilidade.

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Mas, ao contrário, expor nosso coração ao mundo é um ato de coragem, é o pressuposto para olharmos a condição humana de forma amorosa.

Apenas a compaixão por nós mesmos e pelos outros seres, apenas a capacidade de compreendermos ternamente, amorosamente, que todos nós, humanos e não-humanos, comungamos da mesma experiência dolorosa neste mundo de impermanência, apenas isso é o que nos permitirá prosseguir na busca por um despertar não individual, mas coletivo, de nossas consciências. A consciência com coração desperto: essa é a terceira pista de nossa investigação.

9 – O que dizem os precedentes judiciais

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Lucas Valadão Xavier indicou um precedente sobre caso semelhante, elaborado por ninguém menos que Liev Tolstói.

Aos 50 anos, Tolstói decidiu ponderar sobre o sentido da vida. Estamos falando de um homem não só extraordinariamente inteligente e experiente, mas de um artista que, naquela idade, já conhecera a fama e a admiração de seu povo, escrevera obras fundamentais para a literatura universal, constituíra uma família sólida com esposa e 14 filhos e que, ainda por cima, estava livre de grandes preocupações financeiras.

Não estamos, em resumo, falando de alguém sem autoridade, cuja opinião podemos descartar com um punhado de frases prontas, sem cometermos o pecado da leviandade.

Caindo em crise emocional, Tolstói registrou em um pequeno livro, o Uma Confissão,  todas as fases de sua angústia e de seu questionamento a respeito do sentido da vida (a versão em inglês pode ser lida aqui). Podemos, claro, pular todas as idas e voltas de suas reflexões (há um resumo aqui) e chegar a sua conclusão final: o que dá sentido à vida é a fé, mas não necessariamente a fé em um Deus.

“Olhando os povos de outras terras, meus contemporâneos e seus predecessores, eu sempre via a mesma coisa. Onde quer que exista vida, ali a fé desde o princípio fez a vida possível ao homem, e as linhas principais dessa fé são sempre e em qualquer lugar idênticas.
Seja o que for a fé, e sejam quais forem as repostas que ela possa dar, e a quem ela as dá, suas respostas atribuem à existência finita de um homem um sentido infinito, um sentido que não é destruído por sofrimentos, privações ou morte. Isso significa que apenas na fé nós podemos encontrar um significado e uma possibilidade para a vida.
O que, então, é a fé? Do modo como compreendo, fé não é só a “a crença em coisas que não vemos”, não é uma revelação (que define apenas uma das indicações da fé), não é a relação do homem com Deus (alguém precisa primeiro definir “fé” e depois “Deus”, e não o contrário), não é apenas a aceitação do que foi dito por outra pessoa (como supostamente costuma ser), fé é um conhecimento do significado da vida humana em consequência do qual o ser humano não se destrói, mas vive; fé é a força da vida.
Se um ser humano vive, ele acredita em algo. Se ele não acredita que se deve viver por alguma coisa, ele não consegue viver. Se ele não vê e reconhece a natureza ilusória do finito, ele acredita no finto; se ele compreende a natureza ilusória do finito, ele deve acreditar no infinito. Sem fé, um homem não pode viver.”

Até agora, conseguimos quatro pistas para desvendar esse mistério. O ser humano, desenraizado da natureza, necessita reconciliar-se com ela. Precisa também encontrar uma forma de viver mirando em um horizonte que vá além de sua própria vida, por meio de um referencial de totalidade representativo da ideia de Deus.

Nesse caminho, ele não pode esconder de si mesmo a sua verdadeira condição finita e frágil: ele tem de expor seu coração, jamais ocultá-lo, até chegar a um coração desperto. Por fim, encontramos a quarta pista: a fé, enquanto conhecimento de que a vida tem ou precisa ter um significado que transcenda a finitude de nossa individualidade.

Mas ainda falta um elemento que concretize essas pistas e forme uma solução para nossa investigação. Dito em outras palavras: como nos reconciliarmos com a natureza e em que referencial de totalidade podemos depositar a nossa fé? Como fazer isso com o coração desperto, isto é, sem nos protegermos em crenças que ocultem nossa fragilidade e finitude?

10 – A última peça do quebra-cabeça

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Quem nos dá a peça final desse quebra-cabeças sãos os leitores Ygor e Marcelo. O primeiro comentou:

“O sentido da vida, ou propósito melhor dizendo (já que o sentido ou o real significado é continuo, assim como a evolução) é, desde a criação do universo, a autoconsciência. Pense no Universo como uma flor. O polinizador dessa flor é a consciência, da espécie e do individuo.”

Já o Marcelo apresentou a segunda parte da solução do enigma (se por “altruísmo” podemos entender a compaixão de um coração desperto, que não se fecha, mas se abre a um objetivo maior do que o indivíduo):

“(…) sou uma pessoa que achava que o altruísmo genuíno não existia, que até quando doamos ao próximo é para nos sentirmos melhores, mas se importar com a evolução da sociedade e tentar fazer parte disso, sabendo que vamos morrer e que nem poderemos desfrutar disso, por mais que tenhamos (ou não) filhos, me parece um altruísmo muito genuíno, porque essa necessidade que tu comentaste só é nossa porque nos importamos com isso.”

A proposição pode ser apresentada, assim, de forma simples e direta: somos parte da natureza, e ela caminha no sentido de tornar-se consciente de si própria, como se a natureza fosse um grande organismo e estivéssemos encarregados de constituir, através da evolução de uma sociedade formada por corações despertos, essa consciência coletiva que, em última instância, seria a consciência da própria natureza sobre si mesma e sobre o universo circundante.

Um sentido possível para a vida individual seria a adesão a esse sentido coletivo, aceitando que a natureza caminha a milênios na direção da formação de uma consciência coletiva — e que nossa “missão” é a efetiva implementação desse projeto, de forma a nos tornamos o instrumento através do qual a natureza adquire autoconsciência. Correndo o risco de ser um pouco mais ousado, seríamos também os polinizadores dessa consciência para além do planeta Terra.

Mas, é claro, essa proposição pode ser verdadeira ou não. Pode ser, em suma, só uma ideia, sem respaldo nos fatos.

A favor de sua veracidade, há algumas evidências. O biólogo James Shapiro demonstrou que as bactérias, as formas mais primitivas de vida e organismos unicelulares e que acreditávamos viver de forma isolada, tendem a formar coletividades espontaneamente. Como fazem isso é algo que permaneceu um mistério até que os biólogos V. Norris e G. J. Hyland descobriram que a comunicação entre as bactérias ocorre por meio de campos eletromagnéticos.

Esse sistema de comunicação forma uma verdadeira rede de inteligência coletiva que permite aos organismos unicelulares sobreviverem comunitariamente. É algo muito primitivo, mas que se supõe estar presente já nas primeiras formas de vida que apareceram na Terra, como propõe o pesquisador Eshel Ben Jacob, em relação aos primeiros organismos formados nos estromatólitos da era pré-cambriana: um movimento para a emergência de redes de comunicação cooperativas, formando coletividades.

E os biólogos evolucionários William Hamilton e David Sloan Wilson, o primatologista Hans Kummer e o zoólogo Vero C. Wynne-Edwards, são alguns dos nomes que acreditam que a seleção natural se move no sentido da sobrevivência da coletividade e não do indivíduo.

É como se a natureza operasse de forma a unir indivíduos em sistemas cada vez maiores e mais complexos. É como se todos nós estivéssemos programados para realizar essa finalidade, enquanto membros da raça humana, por meio do mais ancestral recurso inventado pela natureza: a comunicação.

E, em relação a comunicação humana, o biólogo molecular Joël de Rosnay, o doutor em física teórica Gottfried Mayer-Kress, o especialista em evolução da inteligência Francis Heylighen, o cientista de computação e cibernética Valentin Tuchin e o divulgador científico Howard Bloom, todos eles especulam se o desenvolvimento da internet não estaria fazendo emergir em uma forma de consciência coletiva. Há, inclusive um instituto formado por uma comunidade internacional de cientistas e pesquisadores, o Global Brain Institute, destinado compreender esse fenômeno.

Atender a esse chamado da natureza, direcionando nossos projetos de vida individual ao trabalho coletivo de criarmos uma sociedade que se transforme na consciência da natureza, pode nos restituir aquele sentimento de completude e de pertencimento que a sociedade moderna, fragmentária e individualista, obstaculiza.

E essa proposição, além de verdadeira, pode ser genuíno ainda em dois sentidos. Em um primeiro, a busca pela consciência coletiva pode ser um “movimento cego da natureza” — como o movimento cego que fazem os cupins africanos construírem gigantescas e elaboradas obras de engenharia (eles não sabem o que estão fazendo, mas um impulso instintivo faz com que construam edifícios formidáveis). Nesse caso, apenas estamos obedecendo a uma programação que, embora poderosa, é desprovida de intencionalidade.

Contudo, em um segundo sentido podemos supor que esse movimento tem uma origem voluntária: Deus ou alguma supraconsciência equivalente incutiu, nos organismos vivos e, particularmente, naqueles dotados de consciência individual, que se organizem e façam emergir, após milhões de anos de evolução, uma consciência coletiva.

Afinal, aquela proposição inicial pode ser formulada da seguinte forma: o universo caminha no sentido de tornar-se consciente de si próprio, como se ele mesmo fosse uma grande entidade e estivéssemos encarregados de constituir, através de nossa sociedade, a consciência coletiva que, em última instância, é a consciência do universo.

Essa ideia não é nada estranha aos leitores de ficção científica: O Fim da Infância, um dos livros mais célebres do renomado autor de Sci-fi Arthur C. Clarke (roteirista de 2001, Uma Odisseia no Espaço) trata exatamente desse tema.

Mas nada disso pode ser verdade. Tudo pode ser apenas o que o livro de Arthur C. Clarke é: mera ficção.

Mas é justo nesse caso que a fé da qual falava Tolstói mostra-se mais importante. Lembre-se de que tal fé não consiste em aceitar como verdade algo dito por alguém ou a existência de algo que não podemos ver, mas em aceitarmos que precisamos confiar em alguma coisa que possa transcender a nossa individualidade e que nos permita viver.

Portanto, ainda que aquela proposição não seja verdadeira (e a natureza não caminhe para a emergência de sua consciência através de nós), ainda assim parece interessante que a consideremos como um projeto a ser criado e implementado pela humanidade.

Como disse Tolstói, “para viver, um ser humano precisa ser capaz ou de ignorar o infinito ou de encontrar uma explicação para o sentido da vida que conecte o finito ao infinito”. Ou seja, precisa atuar em sua vida individual e finita tendo em vista um objetivo que transcenda essa individualidade e finitude.

E tal fé, que não pode estar baseada em considerações individuais mas deve mirar num objetivo que una toda a coletividade, torna convidativa a ideia de que adotemos, como referencial de totalidade, um objetivo comum a realizar, ainda que o consideremos como criado por nós, como resultado da inventividade humana, e não como algo preexistente.

Resumindo as pistas encontradas nessa investigação, o sentido coletivo da vida é  depositarmos a nossa fé num referencial de totalidade consistente na emergência de uma consciência coletiva, composta por corações despertos, de modo a prosseguirmos intencionalmente e organizadamente com um processo que, até agora, parece ser um movimento desintencional, mas poderoso, da natureza.

Como lembrou o escritor Alan Moore, os antigos alquimistas tinham um princípio, chamado “solve et coagula”. Para eles, o processo de desenvolvimento passava dualisticamente por períodos de “solve” (fragmentação da sociedade, individualização, especialização, separação) e outro de “coagula” (unificação, integração, harmonização dos elementos separados). A sociedade moderna culminou uma grande fase de “solve”: países separados, religiões rivais, conhecimentos especializados, individualismo exarcebado – várias formas de fragmentação do espírito humano, tempo de partidos e de homens partidos.

Talvez esse sentido coletivo para nossas vidas possa inaugurar uma nova etapa do desenvolvimento humano, com nossos esforços individuais voltados para uma mesma meta que transcende nossas individualidades, nossas famílias, nossos países. E, quem sabe, possamos compreender, então, que há um significado mais profundo naquilo que o psicólogo C. G. Jung escreveu, quando tentou resumir o sentido da vida humana em uma única frase:

“Até onde podemos perceber, o único propósito da vida humana é acender uma luz nas trevas do mero existir”.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."