Nota do autor: embora este texto utilize como referência um personagem de True Detectives, sua leitura não depende de o leitor ter assistido ao seriado; também não há, no texto, qualquer revelação sobre a trama. Sem spoilers.

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1. Entardecer: a viagem ao fim da noite

“Vi o fim de mil vidas, de jovens e velhos. E cada um deles estava tão seguro de sua realidade, de que sua experiência sensorial formava um indivíduo único, dotado de propósito, de significado, tão seguro de que era mais do que um fantoche orgânico. Bom, a verdade sempre aparece, e todo mundo percebe que, quando as cordas são cortadas, todos caímos.

Não importa se eles já estão mortos, você ainda consegue ler em seus olhos. E o que você vê? Que eles deram boas-vindas à morte. Não no início, mas exatamente no último instante.

Isso é um alívio inconfundível, pois antes eles estavam com medo e aí percebem pela primeira vez como é fácil simplesmente se entregar.

E eles percebem naquele último nanosegundo que eles, que você, você mesmo, que todo esse grande drama não passa de um ajuntamento de presunção e de tola vontade, e que você pode finalmente se deixar levar, agora que não precisa suportar tudo com tanta firmeza, e ver que sua vida, que todo seu amor, seu ódio, suas lembranças, sua dor, tudo isso foi uma mesma coisa: tudo o mesmo sonho, um sonho que você teve dentro de um quarto trancado em sua cabeça, um sonho sobre ser uma pessoa.”

Ao lermos essas palavras, ditas pelo personagem Rustin Cohle (interpretado pelo vencedor do Oscar, Matthew McConaughey) do seriado True Detectives, é quase impossível resistir à tentação de clicarmos em outra aba do navegador, consultarmos outra notícia qualquer ou qualquer atualização no Facebook.

Os mais descuidados em relação às suas próprias vidas, os menos interessantes dentre os seres humanos podem até esboçar uma frase padrão como “bobagem, o importante é deixar a vida me levar” e recorrer a alguma difusa lembrança sobre suas convicções espirituais — mas nada muito complicado ou sério porque cansa.

Trata-se de puro instinto de autopreservação.

As palavras do personagens são quase tóxicas, radioativas para nossos egos, ciosos que somos de nossa importância.

Porém, há uma desonestidade fundamental em lermos essas palavras e desviarmos nossos olhos delas sem ao menos uma detida reflexão. E se trata do pior tipo de desonestidade: aquela que cometemos contra nós mesmos.

É desonesto não porque as palavras de Rustin sejam necessariamente verdadeiras, mas porque só podemos ser francos diante de nós próprios após experimentarmos a visão de mundo que nos é duramente proposta por elas, encarando a questão sobre se tais palavras descrevem ou não uma verdade. Afinal, o personagem Rustin e todos aqueles pensadores e filósofos reais que ele representa não pretendem expressar uma opinião, mas descrever um fato.

Um fato que nos diz respeito. Intimamente.

Então, se a descrição feita for falsa, apenas perderemos um pouco de nosso tempo com uma bobagem. Mas se a descrição for real, então nossa desonestidade resultará em que só descobriremos a verdade sobre nossas próprias vidas quando esse conhecimento não for de utilidade alguma.

E acontece que mesmo uma verdade dura, amarga, é mais útil e preciosa para nossas vidas do que todas as ilusões coloridas que possamos ter a respeito dela, e acredito nisso pois tenho um lema que me guia: às vezes há uma grande potência em reconhecer o quão pouco se pode.

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Por isso, convido o leitor a uma longa viagem ao fim da noite. Proponho que, diante da tela do computador, tablet ou celular, ou mesmo imprimindo esse texto, tenha alguns minutos de coragem, respire fundo e escute aquela vozinha na sua cabeça que sussurra, que repete:

A vida tem sentido? Vou morrer mesmo? Algum dia vou me sentir realizado ou isso é uma ilusão?

2. Noite: somos um terrível acidente da natureza?

“A consciência humana foi um trágico passo em falso na evolução.

Nós nos tornamos autoconscientes demais. A natureza criou um aspecto distinto de si mesma. Somos criaturas que não deveriam existir segundo a lei natural. Somos coisas que operam sob a ilusão de possuírem uma identidade. Esse acréscimo de experiência sensorial e de sentimentos é programado com a total garantia de que somos alguém quando, na verdade, todo mundo é coisa nenhuma.”

Rustin Cohle é um detetive fictício criado por Nic Pizzolatto, que se inspirou no livro The Conspiracy against the Human Race (A Conspiração contra a Raça Humana) de Thomas Ligotti para criar a filosofia pessoal do personagem, como declarou em uma entrevista.

Thomas Ligotti é o mais recente pensador de uma longa tradição de intelectuais que, como Emil Cioran (escritor e filósofo romeno), enxergam a existência humana como um erro. E esse erro reside justo naquilo que nos distingue dos outros animais: a intensidade de nossa consciência.

É que, embora já esteja comprovado que os outros animais possuem, sim, consciência, a nossa é muito mais desenvolvida, e essa característica é considerada um defeito de fábrica replicado a cada nascimento humano por pensadores como Ligotti, Cioran, Edgar Saltus, Unamumo e Wessel Zapffe.

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A natureza do defeito seria que nossa consciência consegue sonhar com o eterno, com o impossível e com diversas formas de êxtase, mas o mundo orgânico só tem a nos oferecer a mortalidade, a insignificância e o desconforto (quando não a dor, muita dor). E uma das provas de que esse defeito de fábrica seria grave é o fato de que somos loucos o suficiente para criar armas nucleares e montar um arsenal capaz de destruir o planeta diversas vezes.

Segundo essa turma de pensadores, que eu jamais convidaria para animar uma festa, do ponto de vista de uma mente que procura sentido, que é capaz de conceber outras possibilidades e de sonhar até com o impossível, a vida nada mais é que um absurdo, uma espécie de condenação.

E a prova do quão profundamente esse absurdo nos abala e nos converte em organismos defeituosos é que somos capazes de fazer o que nenhum outro organismo do mundo sequer sonha em fazer, somos capazes de cometer o único pecado, o único crime da Mãe Natureza — ela, que perdoa absolutamente todos os outros crimes e pecados cometidos por seus filhos: somos capazes de cometer suicídio.

Ligotti resume bem essa perspectiva de que seríamos um erro da natureza no seguinte trecho de A Conspiração contra a Raça Humana (a tradução é minha):

“Para o restante dos organismos do planeta Terra, a existência é relativamente simples. Suas vidas giram em torno de três coisas: sobrevivência, reprodução e morte — e nada mais.

Mas nós, humanos, sabemos demais para nos contentar com sobreviver, reproduzir e morrer — e nada mais. Nós também sabemos que iremos sofrer durante nossas vidas mesmo antes de enfrentar o sofrimento (lento ou rápido) que provavelmente vamos vivenciar quando chegar o momento da morte.

Este é o conhecimento de que “desfrutamos” na posição de organismos mais inteligentes a brotar do seio da mãe natureza. E, sendo dessa forma, nós nos sentimos trapaceados se não houver nada mais para nós do que sobreviver, reproduzir e morrer. Queremos que exista algo mais do que isso, ou gostamos de pensar que existe.

Essa é a tragédia: a consciência nos forçou a ficar na paradoxal posição de nos esforçar a permanecer inconscientes sobre quem somos — nacos de carne em decomposição envolvendo ossos que se desintegrarão.”

Embora o filósofo existencialista Albert Camus não se filie aos pessimistas que flertam com a condenação da raça humana, só conseguiu afirmar a vontade de viver após enfrentar com honestidade uma questão delicada: diante de uma vida absurda, a única opção lógica não seria o suicídio? Camus ousou enfrentar essa pergunta e concluiu pela afirmação da vida. Teremos coragem, leitor, de enfrentá-la como Camus?

Vamos adiante, em direção à noite escura, de mãos virtualmente dadas, se necessário.

3. Meia-noite: a mentira é nossa vocação?

“Veja, temos dentro de nós o que chamo de armadilha da vida, esta certeza enraizada em nossos genes de que as coisas serão diferentes conosco, de que você mudará para outra cidade, conhecerá pessoas que se tornarão seus amigos pelo resto da vida, de que se apaixonará e se sentirá completo.”

Se essas outras palavras do personagem Rustin Cohle expressarem a verdade sobre a natureza humana, então a única força que nos faz seguir vivendo é uma espécie de programação genética que nos induz a ter esperanças, por mais que os fatos contradigam firmemente e reiteradamente nossas melhores esperanças.

Seria uma mecanismo simples, ainda que terrível, inserido dentro de cada indivíduo, iludindo-o, impedindo que ele cogite o suicídio.

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Mas quando pensamos sobre esse mecanismo de forma mais ampla, quando falamos de sua influência em nossa civilização, é aí que temos um verdadeiro abalo sísmico em nossa visão da sociedade.

Ernest Becker publicou seu devastador The Denial of Death (A Negação da Morte) em 1973. Ainda pretendo falar mais a respeito dessa obra. Mas o que nos importa agora é que, para Becker, o pavor humano diante da mortalidade faz com que nossa cultura seja uma grande máquina dedicada a impedir que os indivíduos  percebam a realidade sobre sua própria condição existencial.

Segundo essa concepção, uma enorme parte de nossa energia e de nossos recursos enquanto sistema social é destinado a mascarar a verdade.

Em outras palavras, a maior parte de nossas instituições, a maioria de nossos valores culturais, todas nossas ideologias ou doutrinas espirituais, e mesmo a maior parte do que nos é repassado como visão de mundo ideal na forma de publicidade e de mídia social não passaria de um conjunto de estruturas cuja funcionalidade principal é, essencialmente, distrair a todos nós sobre nossa verdadeira condição humana, desviando nossos olhos da percepção de que somos, como Ligotti falou, “meros nacos de carne”.

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Essas palavras do personagem Rustin Cohle resumem tudo perfeitamente:

“O que isso diz sobre a vida? Vocês precisam se reunir, contar a vocês próprios histórias que violam cada uma das leis do universo apenas para conseguir levar o maldito dia?”

E a conversão da civilização em uma máquina de distração que nos impede de percebermos nossa verdadeira natureza ocorre seja porque é a forma mais eficiente de nos manter operacionais e produtivos enquanto membros de uma sociedade, seja porque somos herdeiros das soluções equivocadas que nossos antepassados tiveram de improvisar quando esse problemão, o excesso de consciência, caiu em seus colos.

Sendo mais preciso sobre esse último ponto, o problema não é a verdade que não conseguimos ver, por estarmos distraídos graças a um sistema social produtor de ilusões coletivas. O embaraço está no fato de que nossos antepassados decidiram, equivocadamente (e precisamos respeitar o medo que motivou esse erro), lidar com essa verdade simplesmente por meio da sua negação, da cegueira, e assim construíram uma sociedade cujos valores e alicerces estão baseados na ilusão.

Como somos herdeiros dessas escolhas e vivemos em tal sociedade, desmontar a armadilha de negação e ilusões é, para nós (para nosso ego), uma experiência dolorosa e problemática, já que fomos educados e condicionados a acreditar e a sonhar com uma condição humana que não é verdadeira e que está tão afastada da realidade que ela, a realidade, nos parece amarga.

Perceba aqui o truque de ótica: a realidade que recusamos a ver não é essencialmente amarga (talvez fosse até doce), mas a sentimos assim porque somos vítimas da elementar regra de que quanto maior é o voo das ilusões, maior é a queda na realidade. Se todos nós tivéssemos nascido em uma sociedade cujos valores estivessem alicerçados não na ilusão, mas na realidade, tal como ela é, talvez nosso mundo produzisse menos sofrimento desnecessário e gastaríamos menos energia e recursos humanos alimentando engodos.

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E o sofrimento desnecessário teria origem no fato de que pagamos um preço alto demais para nos manter agarrados a ilusões. Quantas vidas já foram sacrificadas em nome de religiões, de ideologias, doutrinas que, no fundo, servem apenas para neuroticamente nos manter absortos e distraídos em relação à real condição humana?

4. Madrugada: nossos erros são eternos?

“É como se esse universo fosse processado por nós de forma linear e para frente. Mas fora de nosso espaço e tempo, no que seria uma perspectiva de quarta dimensão, o tempo não existiria, e desse ponto de vista, se pudéssemos atingi-lo, nosso espaço-tempo pareceria achatado, como uma simples escultura com a matéria em uma superposição de todos os lugares já ocupados, nossa consciência apenas circulando através de nossas vidas como carros em uma pista.

Entenda, tudo que há fora de nossa dimensão é eternidade, a eternidade olhando para nós.”

O objetivo deste artigo não é tratar de cosmologia ou da estrutura do espaço-tempo, e muito menos da filosofia do Eterno Retorno de Nietzsche — que até encontra, é verdade, algum apoio em certas especulações científicas. Mas ao menos é preciso lembrar que, sendo o tempo uma dimensão, então hipoteticamente haveria um ponto de vista fora do tempo, no qual todos os instantes são eternos: eles estariam lá para sempre, todos os momentos de nossas vidas.

É como se cada instante fosse um ponto arranjado ao lado de outros, numa superfície chamada Tempo. Nossa consciência, inserida em um universo entrópico, percebe apenas um ponto por vez, em uma sequência causal. Mas cada momento de nossas vidas está lá, eternamente presente.

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Tudo isso foi dito apenas para potencializar a entrada em cena, na nossa viagem ao mais fundo abismo da insignificância humana, de outro personagem, dessa vez literário.

Em um trecho da obra Irmãos Karamazov, o pessimista Ivan Karamazov conta-nos a história de uma menininha que foi barbaramente torturada por seus pais, que sujaram seu rosto de merda antes de trancá-la em uma latrina, sozinha, durante uma noite inteira. Ivan argumenta que se apenas uma vez em toda história do universo uma só criança foi submetida a tamanho sofrimento, isso é o suficiente para definir toda a Criação como um perfeito cataclismo, um desastre de proporções universais.

Para o mais atormentado dos Karamazovs (um cara que mantinha diálogos com o diabo em pessoa), diante das lágrimas de uma só criança inocente submetida ao terror, o mundo inteiro não tem qualquer valor. É como se aquele fato, mesmo que fosse o único, continuasse a existir, de alguma forma, para sempre.

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E hoje sabemos que todo fato, de certa forma, nunca deixa de acontecer. Ele está sempre ali, em seu lugar no tempo. A criança sempre chora no banheiro escuro, com sua máscara de fezes. Seu pranto sempre poderá ser ouvido.

Pior ainda, sabemos que não há apenas uma criança. Sabemos que incontáveis crianças foram e são agredidas, abusadas, violentadas e submetidas às mais diversas formas de injustiças e violências desde que o mundo é mundo. Não é nem preciso ser versado em história da humanidade. Basta abrir o jornal para ver que se trata de um coral sinistro de prantos e gritos infantis, ecoando pelo breve tempo em que o universo, silencioso e gracioso com suas rochas planetárias e bolas de gases incandescentes, testemunha a insignificante presença humana.

5. Madrugada clara: na noite é que nossos olhos resplandecem

Na 1º temporada de True Detectives, o personagem Rustin Cohle confronta-se em todos os episódios com um outro personagem. Na série, o detetive Marty (Woody Harrelson) representa, em diversos aspectos, o oposto de Rustin, até por ser alguém que alega acreditar no sentido da vida e na importância dos valores de nossa sociedade.

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E o que nos importa é que, quando uma terceira personagem, que conhecia bem os dois, tentou descrevê-los, disse o seguinte:

“Rust sabe exatamente quem ele é, e não há quem o convença do contrário. Já o único problema de Marty é que ele não conhece a si mesmo, então jamais soube o que quer.”

Segundo Rustin, a única diferença entre ele e Marty, sua contraparte, é a negação. Ou seja, Marty nega-se  a enxergar a verdadeira natureza da realidade. E assim ele tenta encobrir suas próprias incoerências emocionais e o modo descuidado como machuca quem o ama com desculpas para sua incapacidade de perceber o que realmente é importante nesta vida finita e cercada de incertezas.

Como ele próprio diz em determinado momento da série, seu maior pecado é não ter prestado atenção ao que importa. O que nos espanta, já que viveu negando sua real condição humana, submerso que estava na ilusão de que, no fundo, é imortal.

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Foi Carlos Drummond de Andrade, em “Os Ombros Suportam o Mundo“, que expressou toda a potência que encontramos durante essa nossa viagem pela noite escura, quando assumimos o risco de aceitar até mesmo o lado mais desagradável de nossa condição humana, a de que morreremos. O poeta, em meio a versos duros, de ferro, afirma que “na sombra, teus olhos resplandecem enormes”.

E é verdade. Quando aceitamos os aspectos mais indelicados, mais crus, da realidade humana, a luz que parece faltar ao nosso redor surge em nossos olhos, e percebemos que dia e noite são apenas uma questão de perspectiva. Pois se vermos nossa condição pessoal, enquanto seres humanos, tal como ela realmente é, significa lucidez (do latim lucidus, que significa “cheio de luz”) então não há momento de maior claridade do que esse.

Assim, a consciência de nossa mortalidade pode rearranjar nossas prioridades e nos encorajar a não protelar nosso comprometimento com a vida. A percepção da impermanência de tudo pode transformar a forma como nos relacionamos com os outros e com o mundo, além de reestruturar nossa escala pessoal de valores. A compreensão de que certa quota de sofrimento é parte inerente de nossa existência pode estimular o exercício da compaixão por todos os seres vivos, já que todos nós vivenciamos a mesma experiência fundamental de confusão e finitude.

É interessante que, quando lhe perguntam porque não desenvolveu seus outros talentos, como a pintura, e decidiu devotar-se totalmente à carreira de detetive, Rustin respondeu que a vida mal dura o suficiente para nos tornarmos bons em uma só coisa, isso quando dura, então é bom se cuidadoso com aquilo no qual você escolher ser bom.

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Como um banho de água fria, compreensão de que nossas vidas são finitas tem a vantagem de nos acordar e limpar a sujeira em nossos olhos, eliminando todos os obstáculos que nos impedem de ver o que realmente importa aqui e agora. A permanente consciência de que vamos morrer um dia é capaz de rearranjar nossos valores e prioridades de uma forma mais fiel a nossos princípios e caráter. Já não perdemos tempo nem nos distraímos com coisas que nos desviam do que realmente é importante em nossas vidas.

Como os antigos samurais que acordavam a cada manhã e pensavam que aquele podia ser seu último dia neste mundo, Rustin está sempre consciente de que a existência é breve, de que não temos muito tempo, de forma que é necessário escolher bem o que se deve fazer nesta vida.

6. Amanhecer

Consolar-se apenas nas preciosas vantagens de reconhecer a finitude da vida ainda é pouco. Não queremos apenas a madrugada consoladora, marcando a passagem da meia-noite. Queremos a manhã completa. Desejamos seguir na jornada ao fim da noite até seu verdadeiro final, até encontrar um sol.

Talvez (eu disse talvez) Rustin e os filósofos pessimistas, sujeitos que eu não convidaria para um bar de karaokê, estejam corretos em descrever a condição humana como finita, impotente, transitória, e nossa personalidade como mero resultado de funções essencialmente orgânicas. Talvez tenham razão em dizer que somos apenas um “fantasma” decorrente de uma tempestade elétrica que agita o cérebro humano, um acidente evolutivo imerso em um universo hostil e sem sentido.

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Porém, e por mais estranho que isso possa soar a muita gente, tal percepção dos fatos não é essencialmente trágica. Não há pessimismo inerente em nada disso.

Pois, como disse Fernando Pessoa, ninguém chora porque as pedras não são perfeitamente redondas. E isso ocorre porque sabemos que essa ideia é apenas isso, uma ideia em nossas cabeças, sobre a forma perfeitamente esférica, que poderiam ter as pedras.

Da mesma forma, apenas o fato de que fomos educados e condicionados a conceber algumas ideias (a eternidade da alma, a existência de uma razão para tudo, a importância fundamental de nossa individualidade) como descrições da realidade é o que nos faz “chorar” quando vemos que as pedras de nossa vida não são redondinhas como nos prometeram que seriam.

Portanto, ainda que talvez seja correta a descrição da vida feita por Rustin Cohle e por todos aqueles filósofos pessimistas que eu não espero ver cantando alegremente “Obladi Oblada” num domingo ensolarado, o fato é que essa descrição está equivocadamente pintada com cores emocionalmente negras, e não porque a realidade seja sombria, mas porque essas são as tintas escuras que nosso ego, decepcionado por ter caído do cavalo, decide utilizar.

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Pois a verdade é que não somos máquinas que meramente registram fatos, e sim seres vivos que reconstroem emocionalmente esses fatos ao mesmo tempo em que os observa, interpretando-os em um contexto específico.

E que contexto é esse? Invariavelmente é o contexto do ego. E o ego é aquela parte de nós que, desenvolvendo-se a partir do instinto de sobrevivência animal, fala sempre “eu, eu, eu, eu eu”. É aquela parte  em nós que mede todas as coisas do mundo segundo si próprio, que alimenta continuamente a ilusão sobre sua auto-importância, e que facilmente abraça a ideia de que se é alguém especial, um ser único, possivelmente eterno.

Quando o ego quer, nada é capaz de fazer com que ele compreenda e aceite as razões pelas quais seu querer não pode se converter em uma ordem para o universo. O ego é aquela parte de nós que vive todo dia como se a vida fosse um grande filme cujas câmeras estão todas focadas para sua própria história pessoal (qualquer semelhança com o Facebook não é mera coincidência). O ego é aquela parte em nós que nos conta, todo dia e para cada fato que nos ocorre, uma novelinha sobre quem somos e sobre o porquê de estarmos ali.

E é o ego humano que se desespera, ao despertar para a verdade de que sua noção de auto-importância é um tanto exagerada. É o ego humano que se deprime profundamente quando acorda e vê que sua novelinha no fundo é um arremedo de narrativa que mal encobre a verdadeira história, “cheia de som e fúria, significando nada”, que sua vida é finita.

E então o ego, portando-se como uma criança mimada, faz exatamente aquilo que o personagem Rustin Cohle faz: reage emocionalmente aos fatos. E aí estamos diante de uma pessoa como várias que conhecemos no mundo real, alguém que se torna quase uma caricatura.

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É o tipo de pessoa que, como um Hamlet fora de seu tempo, arma uma cara de quem está chupando limão, veste roupas rotas ou escuras, começa a amaldiçoar a vida, repete todos os dias a si mesmo que a existência é terrível, que o mundo é como o inferno, que nada vale alguma coisa, que todos somos carne condenada à infelicidade, que a solução é se entorpecer e não acreditar em nada, não esperar nada, não lutar por nada.

Isso tudo, no fundo, não passa de uma reação infantil, digna de um menino de dois anos.

E como fazemos para crescer? Não é nada simples, mas muito promissor: precisamos superar a perspectiva do ego.

7. O sol

Para questionar a visão dos pessimistas como Ligotti, Cioran, Edgar Saltus, Unamumo e Wessel Zapffe, caras que eu não convidaria para animar uma festa de aniversário,  não precisamos atacar seu pressuposto de que a consciência é meramente um produto do organismo humano, do cérebro. É que esses pensadores, que enxergam na consciência humana uma aberração da natureza diante da qual devemos reagir extinguindo a nós próprios, partem de uma ideia possivelmente errônea: a de que este momento em que a consciência humana se encontra é seu momento definitivo, estagnado, e não uma mera etapa de sua evolução.

Eles contradizem, de certo modo, o próprio pressuposto de sua teoria — a de que há um processo de desenvolvimento da consciência, que nos trouxe aqui, até esse momento que eles consideram terrível. Parecem sequer supor que esse processo pode estar em franco desenvolvimento, e deixam de cogitar que, em uma próxima etapas da evolução da consciência, poderemos superar alguns dos atuais dilemas da condição humana.

A esses pessimistas não ocorre que podemos ser apenas um malabarista na corda bamba que liga dois pontos: de um lado, no passado, o estado animal do qual viemos; do outro, no futuro, um estado de percepção da realidade em que não sofremos mais com o abismo que supostamente há entre as aspirações de nossa mente e os limites da realidade orgânica.

Wessel Zapffe, por exemplo, chegou a sugerir que a solução para o problema é “limitarmos” nossa consciência, é ficarmos mais alienados, mais idiotas. Parece sequer cogitar que a solução esteja, ao contrário, em expandir essa consciência.

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E aqui cabe a pergunta: se a consciência tem a capacidade paradoxal de julgar a própria natureza que a origina e mantém, não teria nossa consciência, atualmente, também a paradoxal capacidade de alterar a si mesma? Em outras palavras: a consciência, por meio não só da ciência mas também de outras ferramentas exploratórias, como a meditação (que nada tem de mística ou sobrenatural) não seria capaz de acelerar sua própria evolução? E qual o sentido dessa evolução?

As duas primeiras perguntas prefiro não responder. Mas arrisco a terceira: se eu pudesse apostar em uma direção, seria naquela em que nossa consciência se desenvolve ao ponto de relativizar a posição do ego em nossas vidas, mantendo-o fortalecido apenas nas funções para as quais ele ainda faz bem seu trabalho (afinal, precisamos sobreviver, nos alimentar, conseguir um emprego…), mas deslocado do centro de nossa percepção da vida e de nossa interpretação do mundo circundante.

Somente uma consciência que conseguiu sair para fora da caixinha do ego é capaz de fazer frente a um mundo que não corresponde às expectativas alimentadas por esse mesmo ego. Somente uma consciência que ampliou a si própria para além dos limites do ego é capaz de evitar que ele afunde na depressão e nas lamúrias de uma criança mimada que viu seu brinquedinho (as suas expectativas sobre como a vida deveria ser) cair no chão e se quebrar.

E então chegou o momento em que podemos conferir um outro sentido para aquela proposição que, embora já seja lugar-comum, não deixa de ser menos verdade: a de que cabe a humanidade construir um sentido coletivo para a vida. E só então percebemos a clarividência de Nietzsche, quando afirmou que a arte é a única coisa que redime a vida, que supera seus aspectos problemáticos e dolorosos.

Mas não arte apenas enquanto escultura, literatura, música, e sim arte como no radical de artífice, como a capacidade humana de utilizar seu poder criativo para esculpir sua própria identidade, inventar e narrar a si própria a evolução da própria consciência, cantar um sentido para sua própria vida.

Talvez esse impulso criador e criativo da mente humana seja a chama que resplandece em nossos olhos. Sim, porque temos olhos, enquanto as rochas planetárias e os gases incandescentes que povoam o universo são cegos para seu próprio brilho.

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Por trás de toda essa história apenas esteja a mais antiga de todas, sobre a batalha entre a escuridão de nossa ignorância e a luz em nossa consciência. Uma luz que, se não existe fora de nós, se não é dada abundantemente pela natureza, então precisamos alimentar e ampliar, pois talvez C. G. Jung esteja certo em dizer que o único propósito da existência humana é acender uma luz nas trevas do mero existir.

Mas prefiro não encerrar este artigo com a citação do Jung, e sim com os versos de uma música, uma exortação ao espírito humano:

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“Pássaro negro cantando na calada da noite,
Tome essas assas quebradas e aprenda a voar.
Em toda a sua vida,
Você apenas aguardava este momento para ascender.”

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."