Sou um amante de música. Ouço Vivaldi, Tonico e Tinoco, Anitta, Racionais, Revelação, Falamansa. Também tem aqueles instrumentais, artistas solos e bandas que você provavelmente nunca ouviu falar (e nem ouvirá). Por passar uma grande parte do meu dia ouvindo música, muitas vezes ela entra no automático e vira só um plano de fundo pra alguma outra atividade qualquer.
Mas um dia desses eu parei. Parei e foi triste.
Sentei pra escutar de verdade uma música que eu sempre adorei, desde a infância: Cartão Postal – Exaltasamba.
“Como sempre distraída/ te filmei, você não viu/ é a coisa mais bonita/ o seu corpo de perfil”
A coisa já começa errada: o cara tira foto de uma mulher nua (e sem consentimento), jogando pro alto qualquer conceito de privacidade. A música segue, inclusive dizendo que não há o intuito de fazer chantagem, afinal de contas foi apenas um momento de fraqueza. O cara se sentiu seduzido e não viu outra saída a não ser seguir o tal do “impulso infantil”.
A próxima estrofe é o ápice da canalhice: “Te proponho amor, um trato/ que tal se render?/ Eu te dou o seu retrato/ mas quero você”, seguido pelo refrão. A gente entende claramente que ele quer trocar a foto por uma foda.
Essa música é de 1998. Naquela época ainda estávamos sobre os espetaculares domínios tecnológicos das câmeras de filme, e precisávamos pagar uns 10 reais pra revelar as fotos. Mas trocando em miúdos, essa história toda é sobre um cara que faz a foto de uma garota pelada e diz: “Se você não der pra mim, vou enviar pra todo mundo no grupo do WhatsApp”.
A música acabou.
Tirei meu celular da bolsa, fechei a playlist e não ouvi mais nada o dia inteiro.
Ainda anestesiado pela decepção musical da semana, fiquei pensando no quanto a gente cresce sendo incentivado a deixar de lado a ignorância: leia bons livros, leia maus livros, veja jornais, busque conhecimento, faça um curso de línguas, preste atenção na aula.
Todas essas coisas nos acompanham desde a mais tenra idade até a hora da morte. Vão construindo uma bagagem que acaba nos levando para situações como essa que passei. A gente começa a enxergar coisas que antes estavam escondidas por um filtro imaginário. E a música é só uma fatia de tudo que é afetado.
É claro que algumas delas são consagradas pelas besteiras que falam: One in a Million do Guns N’ Roses, que explicita uma xenofobia e homofobia absurda (“Immigrants and faggots/ they make no sense to me/ they come to our country/ and think they’ll do as they please”);
Fricote do Luiz Caldas, gênese do Axé Music, mostrando um preconceito racial com a negra do cabelo “duro” que não gosta de se maquiar, como se fosse obrigatório aos negros se maquiarem e alisarem os cabelos (“Nega do cabelo duro/ que não gosta de pentear/ quando passa na praça do tubo/ o negão começa a gritar/ pega ela aí/ pega ela aí/ pra que?/ pra passar batom”);
Me lambe dos Raimundos, que é um óbvio incentivo à pedofilia (“O que que essa criança tá fazendo aí toda mocinha?/ Vê, já sabe rebolar, e hoje em dia quem não sabe?”);
Trepadeira do Emicida que, entre diversas coisas, incita a violência doméstica (“E tu vem, meu coração parte e grita assim/ ‘arrasa biscate’/ Merece era uma surra, de espada de São Jorge/ chá de comigo ninguém pode”).
Acho que daria pra fazer um Billboard Hot 100 só de música tosca.
Obviamente eu não pretendo aqui dizer qual a melhor ou pior letra, qual tipo de conhecimento importa ou qual você deve buscar. Pelo contrário. Acredito que toda forma de saber deve ser aproveitada, inclusive aquelas que fazem parte do time rival. Isso ajuda na hora de saber argumentar, seja defendendo sua causa, seja apontando os erros de outras.
Só que essa busca pelo saber gera uma infelicidade absurda.
Por exemplo, se eu não tivesse lido minimamente sobre o sistema político em que vivemos, raras vezes me sentiria mal por não conseguir fazer algo concreto pra mudar a porra toda. A partir do momento em que eu começo a me interessar e me informar sobre, a sensação de ser um inútil que, a curto prazo, não mudará absolutamente nada, faz com que eu me sinta um bosta até nas rodas de bar com os amigos mais efusivos.
As decepções musicais também seriam evitadas se eu tivesse hesitado em seguir os conselhos sobre ser uma pessoa melhor. Nada teria acontecido. A reflexão não viria, o semblante continuaria alegre e este texto sequer seria cogitado.
É. A ignorância é uma benção.
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