Certa vez perguntaram ao filósofo Rudolf Steiner sobre o que seria mais importante em toda sua obra. Ele falou que poderiam descartar tudo, mas que ficassem apenas com “A Filosofia da Liberdade“.

Esta obra seminal de seu pensamento é um mergulho na busca da individualidade, na expressão de vida que está ligada ao íntimo de cada um.

Por John Holcroft

Aprendi algo sobre isso no curso Jornada de Liderança pela Antroposofia, depois de um dia estudando “A Filosofia da Liberdade” em uma aula do professor Rogerio Calia, da USP, que estuda há mais de 20 anos esta obra. Aqui vai minha ousadia de tentar explicar uma obra complexa a partir de 8 horas de aula.

Austríaco, Steiner é bastante conhecido por ser o criador do método de ensino Waldorf e também pela Antroposofia, uma maneira de olhar para o ser humano de um jeito mais completo, definido pelo filósofo como: “um caminho de conhecimento para guiar o espiritual do ser humano ao espiritual do universo”.

Nascido no final do século 19, Steiner foi uma referência filosófica importante no início do século 20, no período entreguerras. A Filosofia da Liberdade é um tratado em busca da liberdade de ação de cada ser humano. Sua obra de um pensamento original cristalino, como a de gênios a frente de seu tempo, encontrou pouco eco na Academia.

Além da Pedagogia Waldorf, Steiner ainda trouxe os conceitos de Agricultura Biodinâmica e Medicina Antroposófica (a marca Welleda é um produto deste pensamento).

Foi contemporâneo de Friederich Nietzche e amplificador da obra de Johann Wolfgang Goethe (a ponto de criar um ‘templo’ do pensamento antroposófico chamado Goetheanum, em Dornach, na Suíça).

Steiner falava, naquela época, do colapso do sistema, principalmente porque acreditava que a espiritualidade estava à margem do pensamento vigente, materialista e racionalista. Steiner trazia uma abordagem lúcida da espiritualidade, sem escorregar para o misticismo ou espiritismo, embora tivesse seu caminho de acesso ao que chamava de mundos superiores. Enfim, uma personalidade entusiasmante, rica e absolutamente contemporânea.

Rudolf Steiner

Começando a explorar “A filosofia da liberdade”

Uma das proposições centrais de Steiner é: pensar sobre o pensar. E faço aqui algumas perguntas para ajudar a entender esta linha de raciocínio.

  • Você já parou para pensar sobre o que estava pensando?

  • Por que tomamos nossas decisões baseadas em imagens mentais pré-concebidas? Imagens que estão alimentando nosso cérebro há muitos e muitos anos.

  • O que é a verdade por trás de um comportamento?

  • Por que tomar determinadas ações frente a um determinado comportamento? De onde vêm estes comandos?

Em nossos padrões de comportamento, costumamos agir conforme nossos impulsos. Nosso cérebro dispara um comando e nosso corpo reage na hora ou falamos algo de bate-pronto. Uma vez feito, é uma energia que está no ar – que pode demorar muito tempo a se reorganizar ou se dissipar. E se  — a cada vez que fôssemos agir sobre determinada questão —  conseguíssemos parar e observar o que está acontecendo com o objetivo de tomar uma ação mais consciente sobre nossos atos? Se conseguíssemos olhar para dentro para inspirar nossa ação exterior?

Determinadas coisas que acontecem em nossa vida provocam um mesmo comportamento. Um padrão que se repete. É possível reconhecer quando este estímulo surge para então conseguir tomar uma ação que venha de um lugar de reflexão, de consciência — e não simplesmente um lampejo de emoção?

Como separar esta ação espelhada em padrões comportamentais de uma ação genuína, aquela que tem “a cara” da pessoa que está realizando?

Por John Holcroft

Para Steiner, a ação genuína se manifesta a partir da essência pura de cada indivíduo – é um passo importante na jornada em busca da liberdade. De certa maneira, o propósito da nossa existência é a busca pela manifestação pura de nosso ser. Vale algumas linhas para explicar isso.

Quando uma ação é reflexo de um pensar intuitivo — e não de normas ou imagens pré-concebidas — , ela é mais livre. O pensar intuitivo desperta a ação genuína e a realização deles leva a um prazer muito especial — o prazer espiritual. Uma ação genuína, quando se manifesta, irradia pela biografia do indivíduo. Ela é tão forte, tão marcante, que tem a possibilidade de transformar uma vida.

Um passo importante no caminho da realização das ações genuínas é compreender o motivo de uma ação, identificar a ideia que está por trás de um determinado motivo. Há duas maneiras básicas de compreender os motivos de uma ação:

1. Compreensão racional — realizada pelo pensar convencional (aquele que é influenciado por normas e por padrões de comportamento);

2. Compreensão aprofundada — realizada pelo pensar intuitivo.

O pensar intuitivo é uma espécie de ouro da consciência. Não está na superfície e é difícil de encontrar. Quem se direciona para o pensar com essência (pleno de ser), encontrará neste pensar tanto o sentimento como a vontade, numa realidade profunda de cada um deles.

A compreensão de cada fato pode ser mais superficial ou mais aprofundada. A observação pura é a maneira pela qual se pode acessar dimensões profundas do entendimento da realidade. Por observação pura se entende o olhar limpo de qualquer imagem mental que carregamos.

Por exemplo, antes de conhecer um colega de trabalho alguém vai lá e diz para você que tal pessoa é difícil. Na primeira interação, você pode carregar esta impresão e isso tem o poder de influenciar a sua interação com o novo colega. Ou você pode desconsiderar esta opinião na primeira conversa. Conseguir fazer isso é a observação pura.

O principal obstáculo da compreensão aprofundada dos fatos são representações mentais ou imagens mentais contextualizadas. Isso porque de maneira geral, observamos os fatos por meio de imagens mentais que guardamos de experiências exteriores. Um artigo do Papo de Homem já abordou os chamados vieses cognitivos.

Raul Seixas já dizia:

“Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”

Para entender melhor, em outras palavras, vale pensar no olhar fresco de um viajante em uma cultura nova, que consegue observar situações de maneira totalmente nova. O que este viajante percebe de uma cultura antes que o pensar entre em atividade é resultado da observação pura. As crianças tem esta habilidade nata.

Como a impagável Mafalda, de Quino:

A meditação é uma ferramenta que ajuda no estado de observação pura. O exercício de atenção plena ajuda a afastar as imagens pré-concebidas do pensamento. Afasta os “cadáveres vivos do pensar”, como definiu Steiner.

A dificuldade de compreender a essência do pensar diante de uma tentativa de observação é porque a essência escapa facilmente da mente quando a mente pretende voltar a atenção ao pensar. Quando a atenção é intensa, é possível observar a essência do pensar: e aí vem a percepção de que existe um pensar vivo.

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A reflexão sobre o pensar tem o objetivo de formar um conceito sobre os acontecimentos. Em geral, o pensar enxerga um problema, um conceito, traz uma reação, mas não consegue se enxergar. O pensar é o elemento não observado da nossa atividade mental costumeira. Daí vem uma dificuldade e um reforço de padrões estabelecidos. Afinal, se você não pensar sobre o seu pensar, alguém pensará por você e no final das contas você apenas reproduzirá comportamentos sem qualquer tipo de reflexão. Como,  por exemplo, encher a escova de dentes com pasta como sugerem propagandas em vez de colocar apenas o suficiente para limpar os dentes.

O pensar cognitivo é a capacidade de unir a observação exterior com a observação interior. É um esforço de olhar para o lado objetivo da realidade, sem filtros de moralidade ou padrões de comportamento. Com a intenção de deixar emergir o conhecimento, criar a partir do nada. A partir de um vazio concreto do presente com a intenção de desenvolver o futuro. Este espaço livre para a construção do futuro é a própria liberdade.

“A verdadeira individualidade será aquela que, com seus sentimentos, se elevará o máximo possível à região das ideias”, diz Calia.

É a ponte entre o cérebro (pensar) e o coração (sentir). Falando em coração, Steiner pouco falava de amor em sua obra, mas sempre falava de maneira profunda. Como nesta frase: “A essência do eu está no tu”. Há quem diga que a direção do gesto da filosofia da liberdade é o encontro. A busca do pensar com o coração.

Existe uma dimensão existencial profunda na Teoria da Liberdade.

Para Steiner, o sentimento é o meio pelo qual um conceito obtém vida concreta. Numa visão de autoconhecimento, em primeiro lugar nós nos sentimos como entes existentes. No decorrer da evolução gradativa, investimos tempo, energia e suor no nosso desenvolvimento até o ponto no qual sensação vaga da nossa própria existência se transforma em conceito claro do nosso eu.

Este reconhecimento é fundamental para a ação individual. Isso porque ao se ter um conceito claro do seu eu, um indivíduo deixa de considerar a vontade ética como algo estranho, que surge a partir de uma imposição de fora e começa a sentir a ética como algo íntimo e intrínseco ao seu próprio ser. Aí, a moral deixa de ser uma lista de certo e errado.

Vale um aprofundamento no amor

Por John Holcroft

E nunca é demais falar de amor. Aqui não vamos falar da visão romântica de amor, mas de uma visão ampla, conforme entendimento da Grécia Antiga, que o dividia em pelo menos seis variedades:

1. Eros — ligado ao prazer sexual e ao desejo

2. Philia — ligado à amizade ou mesmo ao amor entre pais e filhos

3. Ludus — ligado à afeição divertida entre crianças ou jovens amantes

4. Agape — amor abnegado, estendido à varias pessoas (foi traduzido para o latim como caritas)

5. Pragma — amor maduro entre casais de longo casamento

6. Philautia — auto-amor, dividida entre narcisismo (não saudável) e uma versão mais ligada a segurança. “Se você gosta de si mesmo e sente seguro em si mesmo, você terá amor suficiente para dar aos outros.“Todos os sentimentos amigáveis por outros são uma extensão dos sentimentos do homem por si mesmo.”

Nesta visão ampla, uma ação genuína — que tem a ver com a vontade individual, despertada por um pensar intuitivo a partir da observação pura — se transforma em um transbordamento de amor.

“Amar é um recipiente que quanto mais você esvazia, mais ele se enche.” (anônimo)

Numa relação, é importante observar o outro como uma extensão do eu. Sem o outro, não há um eu. Isso abre um portal de entendimento e diálogo poderoso, pois para compreender você, tenho que absorver os conceitos que  usa para se autodeterminar. Preciso me despir, tirar o filtro, o véu, o piche, até chegar nas ideias comuns. Uma individualidade só é possível se cada individualidade sabe da outra por meio da observação individual.

“A garantia única é que nasci.

Tu és uma forma de ser eu.

E eu uma forma de te ser.

Eis os limites da minha possibilidade.”

(Clarice Lispector)

No limite, o que Steiner propõe é que a liberdade só pode emergir quando o indivíduo se manifesta na sua plenitude.

Toda nossa tradição e passado nos traz amarras: nossa família, país, grupo étnico, religião, trabalho, amigos etc, causam impressões mentais que moldam nosso comportamento. Agir de acordo com este comportamento inconsciente é o oposto da liberdade.

Qual a sua manifestação individual? Qual sua ação genuína no mundo? Somente quando realizamos nosso potencial como indivíduos únicos é que seremos livres. É uma (bela) busca que leva uma vida. E só quando vamos em busca da liberdade é que podemos de fato chegar perto desta liberdade. Meio óbvio. Mas tão óbvio quanto seria a gente parar para pensar no nosso pensar.

No fundo, a busca pela individualidade dentro do todo, é a manifestação da essência do eu. Uma essência buscando a manifestação livre do espírito. Um voo em busca da manifestação genuína e pura num mundo repleto de pensamentos e vontades milenares. O espaço livre do “um” que se manifesta no exterior só emerge a partir do interior. Então, a liberdade é um pulsar infinito de dentro para fora e de fora para dentro.

Para se aprofundar na obra de Rudolf Steiner:


Nota do autor: a obra de Steiner tem desdobramentos magníficos. Há aplicações da “Antroposofia no mundo das empresas”. O livro “O Capital Espiritual da Empresa”, de Jair Moggi e Daniel Burkhard, é um belo jeito de olhar para esta questão no mundo corporativo. De tão surpreendente, é quase uma dissonância cognitiva. Mas acredite, isso existe em alguns lugares.

Rodrigo Vieira da Cunha

Estuda movimentos contemporâneos de evolução da humanidade para interpretar e compartilhar conteúdos em diferentes formas: palestras, textos, apresentações, artigos e conversas. Rodrigo é embaixador-sênior do TED no Brasil e sócio das agências de comunicação LiveAD e ProfilePR. Também organiza retiros sobre desenvolvimento de consciência com líderes de diversos países, está escrevendo o livro Humanos de Negócios" e organizando o "Flow" – um festival para trazer ferramentas e aumentar o nível de consciência das nossas relações. "