A famosa escola dos sofistas surgiu na antiguidade, com base no abandono do recurso ao extraordinário e do mito para explicação dos fenômenos e a utilização do logos, isto é, da razão, como fundamento das explicações. Com isso, o fantástico e o sobrenatural perdem força, enquanto a lógica dos argumentos ganha cada vez mais relevância.
No entanto, como os sofistas eram extremamente relativistas, sendo célebre a frase de Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas”, não tardou para as críticas aparecerem, especialmente por parte daqueles que, como Sócrates, defendiam a verdade absoluta e as verdades de valor universal.
Aristóteles escreveu uma obra inteira voltada à refutação dos sofistas e, logo no início de sua obra “Refutações Sofísticas” (Aristóteles, 2010, p. 545), assevera:
“Tratemos agora das refutações sofísticas, isto é, argumentos que parecem ser refutações (contestações), porém são realmente falácias, e não refutações”.
A principal acusação feita aos sofistas pelos filósofos era que aqueles não ensinavam um conhecimento verdadeiro aos seus alunos, mas apenas técnicas de discurso com o objetivo de persuadir os ouvintes.
Inclusive, em suas Memórias, Marco Aurélio agradece aos deuses o fato de não ter caído nas mãos de um sofista quando se enamorou pela filosofia (Marco Aurélio, 2014, p.20).
Infelizmente, essas técnicas persistiram no tempo e até hoje é muito comum nos depararmos com diversas artimanhas que debatedores utilizam com o intuito de “vencer o debate”, ainda que tenham que recorrer a medidas pouco éticas ou simplesmente afirmações falsas.
O principal problema dos sofismas é que, justamente por se assemelharem ao silogismo pela utilização de premissas verdadeiras para construção de argumentos, é difícil identificar que aquele argumento, ou a conclusão do argumento é, na verdade, falso. E quanto mais sofisticado o argumento e mais habilidoso seu autor, mais difícil é identificar a falácia.
A diferença entre o silogismo e o sofisma é bastante sutil, posto que o primeiro apresenta premissas verdadeiras às quais é aplicada uma lógica perfeita para se alcançar a conclusão, que também é verdadeira. No caso do sofisma, as premissas podem até ser verdadeiras, a lógica que as relaciona, no entanto, não é perfeita e, portanto, a conclusão é falsa.
Feita essa breve introdução, não pretendemos nos alongar muito nas falácias em espécie, posto que existem inúmeros sites e artigos já explorando o assunto, inclusive aqui mesmo no PdH.
Por fim, vale destacar que nem todas as desonestidades intelectuais são produtos de malícia e má-fé, havendo aquelas que são feitas por erro ou ignorância, muitas vezes até de forma inconsciente. Dito isso, pretendo discorrer sobre alguns pontos que considero essenciais para um debate honesto e saudável.
1. Faça uma leitura focada, atenta
Dentro do gênero desonestidade intelectual, creio que as falácias mais comuns decorrem de uma leitura desatenta.
É extremamente comum, especialmente em leituras realizadas em monitores, que algo se perca no meio do caminho.
Outro ponto que precisamos destacar é que textos na internet não são artigos científicos e nem leituras profissionais para a maioria das pessoas, então é natural que não se dedique a mesma atenção e concentração que seria dedicada a um texto profissional, por exemplo.
Eu, por exemplo, não consigo ler muito bem em monitores ou dispositivos eletrônicos como telefone celular ou tablet, a iluminação de fundo cansa e meus olhos começam arder, a rolagem do texto me faz perder o fio da meada e tudo isso me impede de manter a atenção focada exclusivamente no texto por muito tempo. O único dispositivo eletrônico no qual consigo ler com atenção é o Kindle, mas só porque este dispositivo não tem retro iluminação.
Assim, para mim é muito comum pular palavras, engolir letras e pequenos erros de grafia em um texto lido na tela do computador. Posso revisar um texto mil vezes, mas depois de impresso sempre encontro algum erro que passou batido.
Além disso, há a competição pela nossa atenção. Um texto na internet geralmente tem cores, luzes, imagens, as vezes vídeos e sons, além de propagandas competindo com o texto pela nossa atenção.
É bastante difícil uma leitura totalmente focada diante dessa miríade de distrações.
Por fim, muitos aproveitam aquela brecha na agenda para dar uma navegada pelos sites de interesse e acabam fazendo uma leitura apressada por estarem no período de intervalo.
Então, é possível concluir que a principal desonestidade intelectual é decorrente dessa leitura apressada e desatenta, que nos leva a desconsiderar, não entender ou tirar conclusões precipitadas porque não lemos a ideia principal do texto, nos fazendo incorrer, muitas vezes de forma involuntária, em falácias.
Quantas vezes você leu um texto e teve um entendimento, mas depois de uma releitura atenta, constatou que aquele seu primeiro entendimento estava equivocado?
Para evitar esse tipo de erro, o ideal é sempre ler com atenção, seja o texto, sejam as opiniões contrárias e ter certeza que entendeu o argumento, antes de oferecer seu contraponto.
2. Evite o Efeito Einstellung
É bastante comum observarmos que os debates na internet misturam diversas pessoas com formações, conhecimentos e experiências diferentes e que, por tais motivos, não conhecem e nem conseguem compreender exatamente o sentido do que é dito pelo outro.
Isso é bastante comum quando verificamos a existência de várias palavras cujo significado muda de acordo com a área em que ela é aplicada. Os famosos jargões ou termos técnicos.
A mesma palavra pode ter um sentido diferente se aplicado ao direito, à filosofia, à engenharia, à psicologia ou à medicina.
Então, não é de se estranhar que um jurista e um médico não consigam se entender a respeito de um determinado assunto, porque suas mentes estão condicionadas a interpretar determinadas palavras e expressões sempre de uma mesma maneira, o que acaba dificultando o processo de comunicação.
Esse condicionamento mental já é conhecido da ciência e recebeu até um nome, Efeito Einstellung.
Resumidamente, o Efeito Einstellung é conhecido como um modo de agir ou pensar sempre de uma mesma forma pré-determinada pelo nossa mente e isso ocorre porque em algum momento de nossa vida, nosso cérebro foi condicionado a pensar ou agir daquela maneira.
Em parte esse efeito é explicado pelo fato de o cérebro humano ser extremamente focado em economizar energia e, para tanto, internaliza e automatiza processos inteiros, para que não precise gastar tempo e energia analisando todos os passos de algo repetitivo.
Todo mundo que aprendeu a andar de bicicleta ou que dirige consegue entender o que estou dizendo. Quando estávamos aprendendo a dirigir, a rotina era: entrar no veículo, colocar a chave no contato, ajustar o banco, passar o cinto de segurança, verificar se o carro estava desengatado, girar a chave, dar partida no motor, verificar o redor, ajustar os retrovisores, pisar na embreagem, engatar a marcha, soltar o freio de mão, soltar a embreagem devagar ao mesmo tempo em que acelera gradativamente para não deixar o motor “morrer” e, finalmente, começar a dirigir. Lembram como uma simples volta na quadra era exaustiva nas primeiras vezes? E hoje, como é o processo? A maioria de nós segue exatamente os mesmos passos que seguíamos quando estávamos aprendendo a dirigir, a diferença é que tudo que era feito de forma consciente no início, foi internalizado e automatizado, passando a ser feito de forma inconsciente depois de um tempo.
Isso acontece em todos os campos, seja no esporte, na música, nas profissões, tanto que é bastante conhecido o fato de que se você desenvolve um vício de postura no esporte ou no aprendizado de algum instrumento musical, é extremamente difícil corrigir esse vício.
O condicionamento mental não deve ser desprezado e pode estar interferindo negativamente em nossa forma de encarar as coisas. Vale a pena fazer uma reflexão se isso não está atrapalhando a comunicação com outras pessoas.
3. Tente não cair no famigerado viés de confirmação
Muito comum em qualquer debate, não apenas pela internet, mas em todas as plataformas (inclusive, presencialmente). E o que é mais desanimador, também é extremamente comum em trabalhos científicos.
A primeira vez que tive contato com esse assunto foi quando li o ótimo A Arte de Pensar Claramente. O autor, Rolf Dobelli dedica um capítulo inteiro ao viés de confirmação e como isso vicia a maneira de pensar de uma pessoa.
O viés de confirmação também é uma espécie de condicionamento mental, que faz a pessoa atribuir uma importância exagerada a qualquer argumento, fundamento ou referência que endossa sua própria opinião a respeito de um determinado assunto, ao passo que despreza, ignora ou desqualifica qualquer opinião contrária, por mais que esta opinião tenha ótimos argumentos, fundamentos ou referências.
O viés de confirmação é bastante deletério em qualquer debate, mas ainda pior no meio acadêmico, porque acaba fortalecendo uma posição que nem sempre é a correta.
Um exemplo de como o viés de confirmação é prejudicial para o desenvolvimento do pensamento é a falsa crença de que gema de ovo fazia mal que foi difundida e vigorou durante muitos anos no meio acadêmico e científico. Enquanto médicos e nutricionistas asseveraram de forma contundente que mais do que duas gemas de ovos por semana faria mal ao organismo, inúmeros fisiculturistas e atletas consumiam diversas unidades de ovos por dia, sem apresentar os males que os médicos tanto nos alertavam.
Há alguns anos a ciência ousou reconsiderar a posição anterior e, atualmente, é entendimento quase pacífico que o consumo de ovos, mesmo em uma base diária, não causa males à saúde.
O autor já citado acima recomenda que em vez de adotarmos um viés de confirmação para nossas opiniões, devemos adotar uma postura extremamente oposta, isto é, adotar um viés de refutação, atribuindo uma importância maior às opiniões, argumentos e fundamentos que nos refutam e analisar todos eles com muito cuidado, a fim de verificar se tais posições conseguem refutar nossas crenças.
O viés de confirmação não deixa de ser a atuação do Efeito Einstellung na prática, pois se trata de uma forma pré-condicionada de funcionamento da mente.
Desses dois fenômenos é que podemos observar a ocorrência da bola de neve, ladeira escorregadia ou derrapagem, por exemplo.
Essa falácia é velha conhecida, utilizada em questões polêmicas quando não se sabe com exatidão os efeitos que aquilo provocará na sociedade, então, se adota uma conclusão sem qualquer evidência concreta a comprovar que aqueles efeitos realmente sobrevirão.
Exemplos:
Se liberarmos que homossexuais adotem crianças, essas crianças se tornarão homossexuais quando adultas.
Se liberarmos o acesso a armas legalizadas, o número de homicídios irá aumentar.
Se restringirmos o acesso a armas automáticas, no futuro também se restringirá o acesso a todos os tipos de armas.
Essa falácia anda de mãos dadas com outras duas bastante conhecidas, sendo a da generalização apressada e do apelo à emoção.
A generalização apressada ocorre pela falta de cuidado em considerarmos todos os argumentos de um determinado assunto, mas atribuindo importância exagerada a argumentos de uma classe, enquanto ignoramos ou desprezamos os argumentos contrários.
Em geral, todos nós incorremos, em maior ou menor grau, nesse tipo de erro, posto que somos “leitores de manchetes”, em vez de críticos cuidadosos que analisam detidamente todo o texto antes de tirar alguma conclusão.
Atire a primeira pedra aquele que nunca leu uma manchete e tirou uma conclusão completamente divorciada do cerne do texto.
A outra falácia irmã é a do apelo à emoção, também muito presente em temas polêmicos e que envolve situações incertas ou que evocam sentimentos primitivos dos seres humanos como medo, raiva, aversão, nojo, justiça, dentre outros.
Um exemplo conhecido desse tipo de falácia é quando você está em um debate onde o assunto é um crime grave como, por exemplo, homicídio ou estupro, e alguém diz que você só defende uma opinião contrária à pena de morte ou castração química porque a vítima não foi alguém da sua família.
4. Cuidado com o Efeito Dunning-Kruger (ou: quando a pessoa acha que sabe muito mais que os outros sem de fato saber)
Outra situação muito comum que observamos em nossas interações é a do Efeito Dunning-Kruger, ou quando a pessoa que tem um conhecimento superficial sobre determinado assunto se acha um grande sábio.
Bem entendido, não estamos aqui defendendo o monopólio do conhecimento, a hegemonia do diploma ou o academicismo. Não defendemos que apenas pessoas diplomadas possam debater.
Muito pelo contrário, defendemos firmemente que verdade, sabedoria, lógica, bom senso e conhecimento estão ao alcance de todos.
Nunca na história da humanidade o conhecimento foi tão democrático e tão acessível. A internet realmente revolucionou o acesso à informação e quebrou diversos monopólios. Antes da popularização da rede mundial de computadores, se alguém quisesse ter acesso a conhecimentos científicos, estava refém das universidades e publicações científicas, se quisesse ter acesso a informações do cotidiano, era refém dos jornais impressos e televisionados, além das revistas e periódicos.
Hoje tudo mudou, e para melhor. Qualquer pessoa pode ter acesso instantâneo às notícias mais recentes, inclusive em tempo real, aos últimos avanços da ciência ou, ainda, estudar física quântica, engenharia espacial ou qualquer outra área de conhecimento com um simples clique.
Muitas universidades, tanto do Brasil quanto do exterior, fornecem diversos cursos online gratuitos, bastando ao interessado em obter ou ampliar seus conhecimentos ter um pouco de tempo disponível e dedicação para realizar os cursos ou ler os livros.
Diversos autores renomados das mais diversas áreas de conhecimento também compartilham esse conhecimento através de canais do Youtube ou em redes sociais.
Não poderíamos deixar de mencionar mais uma vez a praticidade e acessibilidade dos ebooks, com inúmeras obras ao alcance de todos, várias delas já de domínio público e, por isso mesmo, gratuitas.
Tudo isso só corrobora que o conhecimento e a informação nunca foram tão disponíveis quanto nesta época.
Mas mesmo assim, são muitos os que argumentam com base em um conhecimento raso da matéria, obtido a partir da leitura de um único artigo ou, pior ainda, através de um conhecimento terceirizado, isto é, por ouvir dizer de outra pessoa, sendo que, pessoalmente, nunca leu ou estudou um único autor sobre o assunto debatido.
Esses recorrem frequentemente à falácia da ignorância, a partir da qual os argumentos são desprezados simplesmente porque o debatedor desconhece as premissas ou raízes que suportam aquele argumento.
Por ser ignorante sobre o assunto, o debatedor refuta o argumento como inválido e recorre a outras falácias bem conhecidas para evitar reconhecer seu desconhecimento, sendo frequente o uso de ad hominem ou fuga do tema.
Por favor, não seja um desses.
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E vocês? Quais estratégias consideram produtivas para um bom debate? O que tomam como diretriz pra quando querem conversar por aí?
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.