A braçadeira #OneLove
No Qatar, a homossexualidade é crime, sob pena de até 10 anos de prisão.A partir desse contexto, a ação de protesto dos times que mais repercutiu tratava-se da decisão de que 10 capitães de times europeus: Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Noruega, Suécia, Suíça e Holanda, usariam uma braçadeira escrito #OneLove, com as cores do arco-íris, em apoio à comunidade LGBTQIA+ que é criminalizada no Qatar. Mas a FIFA ameaçou punições com cartão amarelo para os jogadores que insistissem nessa ideia. Isso fez com que as federações desistissem de usar a braçadeira.
Outras discussões, como a posição da mulher dentro da cultura do Qatar, movimentaram postagens e mais postagens nas redes sociais. Entretanto, parte dos comentários realizados nessas publicações eram carregados de xenofobia e racismo contra os povos árabes, produzindo generalizações e estereótipos de uma cultura que é plural.
Se pensamos em ser homens aliados, precisamos estar atentos a como podemos fazer isso de forma responsável. Nesse texto vamos tentar encontrar caminhos de reflexão para entendermos melhor as camadas que envolvem todos esses assuntos no contexto da Copa do Mundo no Qatar.
Interseccionalidade na discussão
Essa situação traz um bom exemplo sobre a importância de conversarmos sobre interseccionalidade – o cruzamento de marcadores sociais que atravessam cada pessoa, situação ou contexto.
De um lado, críticas à homofobia e machismo, do outro lado, críticas ao racismo e xenofobia. Nesse contexto é importante entender que ambas as críticas são válidas e necessárias, que uma não anula e nem é menos importante que a outra. São situações complexas com nuances e fatores que se somam e se cruzam.
O preconceito contra os povos árabes não é recente
Conversamos com a pesquisadora Muna Omran, cofundadora e pesquisadora sênior do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio, para entendermos esse contexto de estereotipação tão enraizada dos povos árabes.
Muna Omran nos contou que esse preconceito começa a ser visto, de forma mais evidente, a partir dos séculos XVIII e XIX na Europa, através de pinturas e da literatura nas quais os povos árabes eram retratados como um povo extremamente bárbaro.
O autor Edward Said, em sua obra “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” mostra como durante séculos o Ocidente representou os países do Oriente como atrasados, exóticos e violentos. As mulheres, em especial, eram retratadas de forma fetichista e exótica, exageradamente sedutoras e misteriosas. Isso tudo ocorreu como fruto de um desejo ocidental em dominar o Oriente e seus costumes, além de ser uma tentativa de controlar o que as pessoas podiam pensar acerca da cultura dos países compreendidos como orientais.
O próprio termo “Oriente Médio” é uma invenção do ocidente. É mais uma forma de representar todos esses países como sendo uma mesma coisa, anulando sua diversidade e suas especificidades. E, assim, dominando as definições dessa cultura a partir de uma perspectiva ocidental, ou seja, a partir de um olhar que idealiza e estereotipa aquela cultura, sem vivenciá-la.
É como se a Europa quisesse dizer: “Nós ocidentais somos desenvolvidos e civilizados. E eles os orientais, são monstros, violentos e parados no tempo!”. Esse pensamento desumaniza todos esses povos, apaga suas histórias e riquezas de conhecimento, de contribuição cultural, científica, filosófica, criando justificativas para que os povos árabes sejam combatidos, mal tratados, discriminados e até mortos.
Hollywood também foi responsável pela construção dessa imagem racista e inferiorizada dos povos árabes. Através das narrativas ocidentais e coloniais de seus filmes, que colocavam (e colocam) personagens árabes como vilões, a manutenção do estereótipo, reproduzido por séculos contra a cultura árabe ,era (e ainda é) realizada e exportada para o mundo todo por meio do mercado cinematográfico.
O atentado contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, e a guerra estadunidense ao terrorismo, é um dos marcos que mais propagou desinformação sobre o islamismo e o Oriente Médio no mundo.
Segundo a professora Omran, a grande responsabilidade acerca disso foi da mídia e dos meios de comunicação que dificilmente chamaram ou chamam pessoas árabes, pesquisadores ou especialistas para construir um olhar mais aprofundado e menos dividido enquanto “bem e mal” quando estamos falando de culturas de países ocidentais ou dos que são compreendidos, por nós, como orientais.
“Muitas vezes o ocidente levanta uma bandeira para camuflar outra…”
Essa frase da professora Muna Omran nos ajuda a pensar sobre as contradições e, talvez, até mesmo hipocrisia em relação aos nossos comentários e ao nosso olhar para o Qatar.
Segundo dados do Grupo Gay da Bahia e do Relatório do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQIA+, o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. E, segundo o relatório Mapa de Violências, é o 5º que mais mata mulheres. A ONU também aponta que a América Latina é o lugar, fora de zona de guerra, mais letal para mulheres.
Sem contar os países europeus, que também estão reivindicando respeito e atenção aos Direitos Humanos, como a França, que já aprovou uma lei de proibição ao uso do véu islâmico integral (burca e niqab), nos espaços públicos e instituições de ensino no país, desrespeitando todo um funcionamento cultural e religioso do islamismo. Ou também as diversas situações de maus tratos, xenofobia e racismo contra os refugiados em 2015 e 2016 na Europa.
A partir disso, podemos refletir se a nossa comoção não tem sido seletiva e talvez simplificada, inflada por uma movimentação de redes sociais e meios de comunicação por determinado momento, para depois cair no esquecimento coletivo, como tantas outras questões.
Geralmente não nos questionamos sobre o por quê nos engajamos tanto a criticar o oriente e não nos engajamos da mesma forma nas questões graves de Direitos Humanos nos países ocidentais, como a influência do discurso cristão na violência contra mulheres e LGBTQIA+ no ocidente, e as condições de trabalho análogas à escravidão em diversos países, inclusive no Brasil.
A professora Muna Omran pontua que todos os protestos e reivindicações que têm acontecido são legítimos e necessários. Mas houve um problema anterior: a FIFA sempre soube das condições graves em relação aos Direitos Humanos no Qatar. E não fez nada em relação a isso.
“A partir do momento em que se aceita que um país muçulmano vai sediar uma copa, se aceita o pacote completo. A bandeira da FIFA, nesta decisão, foi o dinheiro.”
Na visão da professora, é a FIFA que deve ser, primeiramente, responsabilizada por tornar questões de Direitos Humanos uma pauta totalmente ignorada no processo de escolha da sede da Copa do Mundo.
Assim como foram em outras edições, quando se decide por aquele país, como foi o caso da Rússia, acusada até de ter campos de concentração de homens gays e possuir leis discriminatórias contra a comunidade LGBTQIA+, compra-se o pacote todo, suas contradições e problemáticas sociais e culturais.
Existe ainda um fator histórico muito pouco difundido que devemos considerar. Por exemplo, parte dos 69 países que criminalizam a homossexualidade até os dias de hoje, são ex – colônias britânicas. Tais leis foram impostas a estes países colonizados durante o processo colonial. Vemos assim como todas essas questões são muito mais complexas.
Além disso, a professora Muna Omran aponta que há uma diversidade imensa nas culturas árabes, inclusive de religiões. E o próprio islamismo não é uma coisa só, ele também é plural e diverge dessa figura estereotipada e demonizada que temos no ocidente. Apesar das leis e do fundamentalismo em determinadas vertentes religiosas, é importante lembrar que nem todas as pessoas árabes concordam com essas leis ou acham que ser LGBT+ é errado ou merece ser crime.
Outros protestos que valem a pena entender:
Também aconteceram outras manifestações que não ganharam tanto destaque como os dos times europeus:
Os jogadores do Irã, por exemplo, que não cantaram o hino nacional em sua estreia na Copa. O silêncio foi em apoio aos protestos que acontecem no Irã, iniciados após a jovem Mahsa Amini ser morta por não estar usando o véu corretamente.
Contrariando também as indicações da FIFA, que geralmente tenta impedir que jogadores e torcidas se manifestem politicamente, nas arquibancadas do jogo Austrália x Tunísia se levantou, pelos torcedores tunisianos, a faixa “Palestina Livre”.
E, por fim, torcedores árabes ironizaram os protestos alemães relembrando o racismo que o Ozil viveu dentro do time da Alemanha.
E por que não estamos falando da Kafala?
Essa é a pergunta de um dos textos da professora Muna Omran questionando o fato dessa discussão ter saído de foco:
“Se é para falar de Qatar vamos falar da Kafala. O que seria esse sistema? A Kafala originalmente se refere a um contrato em que um fiador assume a responsabilidade por essa pessoa em várias situações, como garantir o pagamento pelo trabalho. […]
O grande problema desse trabalho são suas características análogas ao escravo, pois os trabalhadores não podem mudar de emprego ou deixar o país sem autorização do seu empregador, assim que chegam muitas vezes têm seus documentos confiscados sem direito ao uso de celular, inclusive.
O Qatar foi denunciado por ter usado esse sistema para a construção de estádios, o número de mortos pelas péssimas condições e a Pandemia expuseram o problema. […] Que essa Copa, marcada pelo autoritarismo apoiado pelo capitalismo ocidental, sirva para mudar a triste realidade desses trabalhadores do Golfo”.
A partir disso, podemos refletir como os times têm buscado se manifestar, seletivamente, sobre pautas (ainda que importantes) que vão gerar engajamento, boa imagem, os deixando “bem na fita”, se mostrando, talvez, como salvadores das mulheres e LGBTQIA+ do Oriente Médio.
Entretanto, quase não se teve coragem de mexer em uma temática de Direitos Humanos que coloca o dedo em uma ferida de exploração capitalista em condições análogas à escravidão. Também vale refletir como, em certa medida, os países europeus e capitalistas chegam a se beneficiar das opções capitalistas que essa exploração gera.
Então devemos parar de protestar ou criticar a homofobia e o machismo no Qatar?
Não! Podemos e devemos continuar nos manifestando contra as violações dos Direitos Humanos no Qatar. Mas mediados pela construção de um pensamento crítico, para que a gente não simplifique essas questões em apenas bonzinhos e maus. É pensar a crítica sem nos colocar como os salvadores, moralmente mais evoluídos, ou aqueles que podem ser exemplo civilizatório para algum povo.
Um caminho seria entender e dar destaque para as demandas e lutas pautadas por ativistas árabes do território ou de territórios adjacentes. A solução deve florescer de dentro, do próprio povo, e não dos “estrangeiros salvadores”.
Precisamos compreender as contradições éticas, econômicas e sociais que envolvem um evento mundial como a Copa. E também entendermos as bases e os limites de nossas opiniões, que podem estar enviesadas, reforçando a imagem de “monstro” do oriente médio, que a cultura europeia trouxe para o Brasil no processo de colonização.
Se você viu um post relacionado ao assunto, se pergunte: Quem está falando? Como está falando? Está trazendo perspectivas de pessoas árabes que vivem na pele e que entendem a complexidade do problema? O post tem intenção de viralizar usando tom alarmista ou sensacionalista?
Se você vai fazer um comentário ou um post sobre: pesquise, leia e estabeleça contato com pessoas árabes. Destaque que o povo árabe é plural e que sua crença também está para além de fundamentalistas, não generalize um povo que já é historicamente desumanizado pelo ocidente.
Dicas para começar…
Conheça o trabalho e a pesquisa da professora Muna Omran sobre o Oriente Médio:
Acompanhe o trabalho da Francirosy Campos Barbosa antropóloga e docente da USP que discute sobre a islamofobia no Brasil:
Confira o artigo: “Uma das mil histórias do Šahrāzādo Baiano – A descoberta da América pelos Turcos” – Muna Omron
Pesquise os livros:
“Brimos – Imigração sírio-libanesa no Brasil e seus caminhos para a Política” – Diogo Bercito
“Vou sumir quando a vela se apagar”, um romance LGBTQIA+ que aborda as questões da imigração sírio-libanesa no Brasil – Diogo Bercito
“Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente” – Edward Said
“As cruzadas vista pelos árabes” – Amin Maalouf
Procure diferentes perspectivas, pesquisadores do tema e pessoas árabes que usam os seus perfis em redes sociais para falar de sua cultura, religião, mitos e verdades sobre o islamismo, por exemplo. E compartilhe esse conteúdo, ao invés de dar visibilidade a uma fonte tendenciosa e superficial que está mais preocupada em viralizar do que informar.
Assista filmes e leia livros de autores árabes, amplie as suas referências culturais de mundo para que o seu ponto de vista possa ser formulado a partir de um lugar mais responsável.
Essas são todas ações e reflexões que nos auxiliam no processo de nos colocarmos enquanto homens aliados das causas, dentro de uma perspectiva de uma masculinidade engajada e responsável, que se atenta às complexidades sociais e não entra na roda de reproduzir apenas senso comum. O nosso compromisso, enquanto aliados, vai além.
Seguimos refletindo!
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