"É só um jogo" e outras reações à derrota (na Copa e na vida)

Não, eu não vou falar dessa frase do Galvão Bueno ou da seleção brasileira na Copa do Mundo. Vou apenas aproveitar o evento para falar de rodopios comuns quando perdemos, erramos, decepcionamos, fracassamos na vida.

A derrota primeira: "Vamo lá time!"

Já entramos em campo derrotados. Nosso carrasco inicial é a esperança de vitória, o foco no sucesso, a expectativa, a necessidade de se dar bem. Olhar demasiado à frente que nos faz perder contato dos dedos com o chão. Ao menor obstáculo ao sucesso, seguem naturalmente ansiedade, desespero, confusão, cegueira. Sem um final feliz, é como se o jogo não tivesse sentido algum.

Ainda que se atinja alguma vitória, sempre somos perdedores nesse processo.

No entanto, para que o jogo se faça é preciso querer ganhar. Como então desfrutar do jogo e não ser escravo da vitória? Guardemos essa questão por enquanto. Antes, listo o que mais tende a acontecer quando nos damos mal.

 

Covardia: "É só um jogo"

 

Na vitória, é o seu país. Na derrota, é só tinta no rosto.

O cara se esforça para reconquistar a ex-namorada. Se ela voltasse, ele logo admitiria que nunca a esqueceu e que estava sofrendo dia a dia. Como ela não volta, ele mantém um contato meia-boca como se tudo estivesse bem. Entra no jogo apenas para ganhar e pula fora assim que a derrota mostra a cara. Fica no fogo para se aquecer e sai correndo quando queima.

Somos assim. Contamos nossa vitória aumentando o valor do jogo do mesmo modo com que diminuímos o significado ou até anulamos a aposta quando perdemos. "Ela nem era tudo isso", "É só um jogo", "Eu nem estava querendo isso mesmo"... Não conseguimos admitir a derrota e ficar, apenas ficar ali, dentro de campo.

 

Culpa: "Eu errei"

Além de tentar cancelar ou, pelo menos, apagar a intensidade do jogo no qual perdemos, uma das primeiras reações à derrota é a culpa. Apontamos para outras pessoas, condições externas e, principalmente, para nós mesmos. Se deu errado é porque alguém fez algo errado. Vivemos sob a crença de que errar não é natural: "Não era pra ser assim". Somos o Jack falando para a Kate, em Lost: "We have to go back!".

Errar é completamente natural. Dar merda também. Ou você esqueceu que estaremos todos mortos em breve?

Nosso desconforto com o erro se soma a uma auto-importância exagerada. O resultado é a culpa. Em vez de reconhecermos que falhamos porque operamos sob o efeito de alguma confusão, em vez de olhar para os fenômenos de modo impessoal, reificamos nosso senso de identidade ao olhar para o passado: "Eu errei, eu sou culpado por aquilo". Se há culpa, a possibilidade de um novo erro idêntico é maior, já que o padrão confuso ainda está presente, camuflado por um fator compensador, um auto-flagelo, uma dor na consciência.

Se não mais me identifico com a confusão ou com a aflição que gerou a falha, não há a necessidade de me punir, ou seja, eu não sinto culpa. Por consequência, paro de culpar os outros e exigir explicações constrangedoras quando tudo dá errado.

 

Experiência: "Vamos entender o que deu errado e onde precisamos melhorar"

Simultâneo à culpa, surge o hábito de listar os equívocos em nossa lista de "Fazer / Não fazer". Geramos espertezas que interpretamos como insights de elevada sabedoria. Contamos orgulhosos para os amigos: "Depois dessa, aprendi que...". Ganhamos experiência. Nas próximas vezes já saberemos o que fazer para dar tudo certo, não é mesmo? Pena que a vida é sacana e nunca repete um evento...

Não conseguimos lidar sequer com a perspectiva de um novo fracasso. Fazemos de tudo para criar uma identidade imbatível, infalível, perfeita, preparada, turbinada, com todas as defesas possíveis para qualquer situação imaginável. Queremos vencer, queremos nos sair bem. A grande ironia é que, mesmo quando fazemos tudo certo, muitas vezes dá tudo errado. Ou seja, o fracasso não é critério pra nada. ;-)

Quando mais uma derrota acontece, a maior causa do sofrimento não é a derrota em si, mas a frustração de nosso longo processo de preparação para a vitória. Não sofremos pelo jogo, não tanto quanto sofremos pelo colapso da identidade que tentávamos sustentar.

 

Necessidade de resolver: "Assim não dá mais"

Na verdade, a listagem de erros e melhorias é um efeito de nossa incapacidade de ficar parado. Sempre que algo dá errado em nossa vida, a primeira reação, antes mesmo de qualquer sofrimento ou confusão, é uma ansiedade em se mover, uma necessidade de resolver as coisas – seja demitir o técnico ou pedir divórcio.

Sentimos nitidamente que estamos diante de algo que não deveria acontecer e então nos esforçamos para consertar, para mover as coisas de volta ao "normal". Como a vida não está nem aí para nossos pedidos de mimos e confortos, sofremos de tempos em tempos, ao menor movimento contrário ao nosso.

A sensação de derrota vem justamente de querermos que as coisas sejam de um jeito diferente desse que se faz presente. Sem essa teimosia mimada, sem essa tentativa de controle, sem essa esperança infantil, nossas derrotas seriam bem menos sofridas. Ou melhor, seriam vividas como derrotas, erros, fracassos, falhas, sem nenhuma necessidade de justificativa, retoque, conserto, culpa ou promessa.

É por isso que quando uma pessoa me escreve listando mil problemas e pedindo uma saída, eu muitas vezes digo: "Por que você acha que é preciso mudar alguma coisa?". Tal insatisfação – necessidade de viver algo diferente da situação atual – é o que age por trás e  causa a maior parte da confusão. Não desconfiamos desse processo interno e apontamos com toda certeza mil elementos externos como sendo o verdadeiro problema, a causa de nossas aflições.

 

Outra possibilidade diante da derrota...

O padrão que descrevi acima é bem previsível e facilmente encontrado em todos nós. Nossa ação, porém, pode ser completamente diferente.

Para responder a pergunta do começo do texto, vamos analisar a qualidade sacana de qualquer jogo, ou seja, qualquer espaço no qual podemos viver algo. Sem entrar em um relacionamento amoroso, por exemplo, não é possível transar, casar, ter filhos e viver mil experiências que esse jogo torna possível. No entanto, esse mesmo jogo abre várias outras possibilidades ruins: traição, pensão, morte da mulher, morte do filho, ciúme...

Como somos sedentos por experiências positivas que movimentam nossa energia, entramos no jogo e fazemos de tudo para evitar as possibilidades negativas. Sem o jogo, não teríamos acesso a nada, então arriscamos. Sabemos o que fazer na vitória, mas viramos bebês na derrota.

Nosso equívoco, portanto, é achar que pode existir um jogo em que não haja derrota. Sem essa cegueira, é possível errar sem justificar, cair sem imediatamente levantar, falhar sem se culpar, perder sem reclamar ou sair de campo. É possível viver o desconforto da derrota sem tentar apagá-la e pular logo para a próxima vitória.

 

Como jogar com um pé dentro e outro fora de campo

 

Foto de como seria um jogo da Copa do Mundo sem a alucinação coletiva.

Podemos dar solidez e seriedade aos jogos a ponto de esquecermos que eles são jogos, brincadeiras, peças, filmes, sonhos, assim como acreditamos que a mulher que dorme na nossa cama é, de fato, nossa esposa. Ou podemos abdicar de jogar, não construir a aura de esposa em nenhuma mulher. Ambos são extremos: um exagera o jogo, outro o apaga por completo.

Um caminho além dos extremos é jogar com um pé dentro e outro fora. Jogar como se não fosse jogo e, ao mesmo tempo, sabendo que é um jogo. Um pé confere intensidade e nitidez, enquanto o outro pé fica responsável pela leveza, ludicidade e liberdade. Um joga pela taça, outro dribla como se fosse uma pelada qualquer. Um entende e respeita as regras, o outro enlouquece e anda livre no espaço além dos campos. Ao mesmo tempo em que pisamos como todos esperam, mantemos um sorriso misterioso como se estivéssemos em outro lugar.

Comparado com nossa condição atual (jogamos com um pé atrás, não fora), jogar assim é muito mais divertido porque tem um outro meta-jogo rolando sempre: além do jogo em si, há a experiência de estarmos sempre conscientes da loucura daquilo. É como fazer um filme no qual você interpreta você mesmo. Imagine, sua vida seria igualzinha, com a diferença de que você saberia que existe um ator por trás de cada cena. A consciência não diminui, pelo contrário, amplia o personagem e o jogo. Por estar além do jogo, você mergulha com os dois pés e explora muito mais suas possibilidades, como se virasse bilionário do dia pra noite e começasse a trabalhar sem o objetivo de ganhar dinheiro e sem medo de perder o emprego.

Perder assim é mais real porque (justamente por sabermos que a derrota é limitada ao horizonte de um jogo específico) podemos ficar e queimar, sem sair correndo. Ganhar assim é melhor porque sentimos a felicidade própria de cada jogo sem gerar orgulho ou qualquer outra complicação de achar que a vitória é absoluta e existe para além dos limites do jogo.

Assim, no momento mais angustiante do jogo, enquanto todos se desesperam temendo a derrota, você começa a brincar ainda mais, calmo, preciso, como se estivesse pirando em outro jogo. Avança sem medo com uma bomba surpresa no meio do peito. Aliás, isso é o melhor tipo de trapaça, caminho direto para a vitória. E mesmo quando vem a derrota você a recebe inteira em sua textura.

Ao ganhar, é possível que outros perguntem por que você não leva aquilo tão a sério. Ao perder, talvez alguém estranhe a ausência de culpa. Eles talvez confundam essa liberdade com indiferença, mas descartam essa opção assim que reparam no brilho dos seus olhos e na intensidade com que você dribla sem se preocupar tanto com o placar.

* Dedicado a Carlos Caetano Bledorn Verri e a todos nós, perdedores.


Nota editorial: texto originalmente escrito em 2010, que segue tão atual agora quanto há 8 anos.

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publicado em 03 de Julho de 2010, 12:33
Gustavo gitti julho 2015 200

Gustavo Gitti

Professor de TaKeTiNa, colunista da revista Vida Simples, autor do antigo Não2Não1 e coordenador do lugar. Interessado na transformação pelo ritmo e pelo silêncio. No Twitter, no Instagram e no Facebook. Seu site: www.gustavogitti.com


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