É o fim do mito do "macho alfa"

Cientista que criou o termo 'lobo alfa' que inspirou os princípios do 'macho alfa' se retrata e afirma que essa história, na verdade, nunca teve validade científica

Em 1968, um cientista chamado Dr. L. David Mech escreveu um livro que entraria para a história. Publicado pela primeira vez em 1970 – e depois republicado várias outras vezes – o livro The Wolf: The Ecology and Behavior of an Endangered Species (em tradução livre O lobo: a ecologia e o comportamento de uma espécie em extinção) foi considerado durante décadas um verdadeiro tratado sobre os hábitos desse animal em ambientes naturais.

Acontece, porém, que anos mais tarde, a própria comunidade científica (como é bem comum) reparou que o livro continha um erro. O conceito de lobo alfa que Mech apresentava na obra caiu por terra quando os cientistas perceberam que o indivíduo que se mostrava líder da alcateia e que supostamente tinha um comportamento agressivo e dominador era na verdade, apenas, um lobo pai e, na verdade, apresentava muitas características opostas a estas como amabilidade e espírito colaborativo.

Mas se o equívoco foi corrigido cientificamente, o mesmo não se pode dizer sobre a apropriação cultural que a sociedade fez daquela ideia de lobo alfa. Dr. Mech descobriu da pior forma que uma retratação nunca alcança o mesmo status da obra original.

Link Youtube – O vídeo tem apenas closed caption em inglês, se ficar difícil de entender, me desculpe, mas você vai ter que confiar em mim, hehe.

"Uma das informações desatualizadas neste livro é o conceito do lobo alfa. 'Alpha' implica competir com os outros e se tornar líder ganhando um concurso ou uma batalha. No entanto, a maioria dos lobos que lideram as alcateias alcançaram sua posição simplesmente por acasalar e produzir filhotes, que então se tornaram sua própria alcateia. Em outras palavras, eles são meramente criadores ou pais, e isso é tudo pelo que nós os chamamos hoje, o 'macho reprodutor', 'fêmea reprodutora' ou 'macho adulto' ou 'fêmea adulta'. Nos pacotes raros que incluem mais de um animal reprodutor, o 'criador dominante' pode ser chamado disso e qualquer filha reprodutora pode ser chamada de "criadora subordinada", mas isso é tudo.

Dr. L. David Mech, autor de "The Wolf: The Ecology and Behavior of an Endangered Species"

Reflexos Sociais

O livro virou um best-seller, vendeu mais de um milhão de cópias no mundo inteiro, nos mais diversos idiomas e inspirou criações, interpretações e deturpações. De uma hora pra outra, o lobo alfa - que hoje sabemos que não existe - virou símbolo do macha alfa - este alguns ainda acreditam que existe.

Aplicando isso aos humanos, basta fazer uma busca rápida na internet para encontrar todo tipo de cartilha de como se tornar um macho alfa. São dicas (na verdade, eles chamam de mandamentos) como: "lembrar-se todos os dias das suas qualidades e virtudes", "amar a si próprio acima de todas as mulheres", "acordar todos os dias com amor pela vida" e "jamais se envergonhar dos seus instintos de homem".

Indo mais a fundo, o termo 'macho alfa' passou a representar o homem que domina os espaços que ocupa, de preferência com comportamentos agressivos, unilaterais. O 'macho alfa' é um líder por natureza, está sempre decidido e confiante, não se submete a vontade das mulheres, a menos que seja sexo já que isso ele não pode negar jamais. Ele também não demonstra fraqueza, nem culpa, nem remorso, ele está sempre em posição de poder, ainda que isso tenha que ser conquistado com violência e agressividade, afinal de contas, "é culpa da natureza e não dele."

Acontece, porém, que antes mesmo da retratação pública do cientista, já era possível dizer que o mito do macho alfa não tinha fundamento. Pelo menos não com base nessas características listadas acima.

“A principal característica de um lobo macho alfa é uma discreta confiança e segurança sobre si mesmo. Sabe o que tem de fazer; sabe o que é melhor para sua alcateia. Dá exemplo. Sente-se à vontade. Exerce um efeito calmante. Pense em um homem confiante ou em um grande campeão; já provou tudo o que tinha de provar. Imagine isto: pense em duas alcateias de lobos, ou duas tribos humanas. Qual tem mais probabilidade de sobreviver e se reproduzir, o grupo cujos membros cooperam, compartilham e se tratam com menos violência ou o grupo cujos membros estão se atacando e competindo entre si?”.

Rick McIntyre, guarda florestal e estudioso veterano dos lobos

É preciso que se diga que a confusão que resultou na criação desse termo tem lá seus fundos de verdade. No que diz respeito ao comportamento social e, sobretudo, da criação dos filhos, há poucas espécies mais parecidas com os humanos do que o lobos. Assim como nós, os lobos geram, alimentam e cuidam de seus filhos até que eles cheguem na idade adulta e estejam prontos para 'se virar sozinhos'. Isso, porém, também significa (pelo menos no caso dos lobos) que eles tem apenas uma parceira durante a vida e são extremamente fieis a elas.

Se você quiser ser um líder, rapaz, é melhor ser fiel, responsável e carinhoso como eu.

Possíveis Desdobramentos

Os problemas por trás desse falso mito são muitos. Alguns bastante óbvios, como o comportamento agressivo e submissivo que ele impõem às mulheres. Outros menos, como a própria pressão interna e social imposta aos homens para que eles alcancem este 'padrão'. Mas há um desdobramento específico que vale a pena ser esmiuçado: um dos grandes problemas de assumir que existe um 'macho alfa' é categorizar todos aqueles que não se encaixam nesses padrões como 'machos betas'.

Fazendo um exercício rápido aqui, se todas as características masculinas ligadas ao poder, à agressividade e à dominância estão ligadas ao conceito 'alfa', o que sobra pro 'beta'?

Àqueles que não se encaixam no alto padrão estabelecido para se tornar um macho alfa, ou pelo menos àqueles que não conseguem disfarçar publicamente, sobram características opostas como fraqueza, submissão, frustração sexual, fracasso profissional, características ora atribuídas às mulheres, ora atribuídas a covardes ou derrotados mesmo.

Link Youtube – este vídeo excelente vai ajudar a esclarecer o que nós estamos falando (legendas em inglês).

De qualquer forma, classificar a multidimensionalidade da masculinidade em 'alfa' e 'beta' vem trazendo transtornos não só para os 'machos' atuais como para os futuros.

Se a ansiedade de tentar se enquadrar neste padrão nos causa transtornos, quando impomos ao mundo esta crença por décadas a fio estamos confundindo os jovens que vão passar a agir de certas formas e reproduzir determinado comportamentos equivocados já que desejam alcançar os frutos prometidos aos machos alfa como relacionamentos saudáveis, sucesso com o sexo oposto ou mesmo na carreira profissional, alimentando, com isso, um ciclo vicioso.

É preciso que se diga que existem inúmeras formas de se comportar numa mesma situação. Muitas delas igualmente úteis.

É preciso que se diga que não existe só o tipo A e o B, o preto e o branco, o alfa e o beta. Existe muito mais e as coisas são bem mais complexas do que isso.

É preciso que se diga que não importa qual cartilha te derem, não existe garantia de sucesso. Nem com as carreiras. Nem com as pessoas. Nem com a vida.

É preciso que se diga que o mito do macho alfa chegou ao fim. E este é só o começo.

Mecenas: Natura Homem

Nem alfa nem beta. Natura Homem acredita que existem tantas maneiras de exercer as masculinidades quanto o número de homens no mundo.

Ao ressignificar as crenças que temos sobre poder, agressividade e dominância, temos a chance também de repensar a nossa presença no mundo — experimentando uma vida com mais parceria, afeto e sem a pressão de liderar a qualquer custo.

Ser homem é muito maior do que ser "macho".


publicado em 13 de Setembro de 2017, 00:05
Breno franca jpg

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura