Dos males, o menor

Sentiu uma gota de suor descendo pelo lado direito do rosto, em poucos minutos já eram muitas gotas e estavam frias, quase geladas. Não lembrava mais que roupa estava usando, mas a gola da camisa era apertada, talvez estivesse de gravata, não soube precisar.

Ele nunca havia estado tão perto da morte, para ele aquilo devia ser a morte, as sensações, o pânico, só podia ser a morte, ainda não estava entendendo direito. Ouvia vozes, tentava reconhecer as pessoas em volta, mas nada, os olhos estavam turvos e os pensamentos confusos, talvez já estivesse morto, mas ainda não tinha certeza.

Na confusão da memória começou a pensar que ainda era muito jovem para morrer, passou a sentir saudade de tudo que perderia após sua morte, aquele pequeno filme que imaginamos se passar na mente antes da morte começou a rodar.

Ele sentiu saudades da vida, simplesmente da vida, afinal, estando morto não poderia mais curtir o futebol como os amigos e esticar para um puteiro qualquer, não poderia mais curtir a feijoada com pagode no sábado à tarde, imaginou que não iria num samba nunca mais, não iria nunca mais numa festa do peão em Barretos, onde ele se acabava de beber e beijar a mulherada, nunca mais o carnaval na Bahia, o trio elétrico, o beija-beija, as alegrias generalizadas, nunca mais as micaretas em São Paulo e no inteiror, onde o ritual baiano se repetia quase todo mês.

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Sentiu uma saudade imensa do seu apartamento, onde morava sozinho e tantas vezes recebeu amigos para pizzas, fondues de queijo e vinho, e além disso, era um ótimo abatedouro para receber a mulherada. Lembrou como era bom viver sozinho, deixar a toalha molhada na cama, não levantar a tampa do vaso sanitário, não bater o tapete e deixar tudo para a Edicleuza na segunda-feira.

Sentiu saudade da Edicleuza, ela era uma bela mulata, dessas de novela mesmo, uma companheira e tanto, cuidava de tudo na casa, deixava sempre tudo arrumadinho e cozinhava como ninguém, mas o melhor de tudo é que a Edicleuza não se metia em nada, nunca perguntava por onde ele havia andado e nem ficava arrumando pelo em ovo.

Lembrou-se que ela havia pedido um aumento, a vida estava difícil, filhos pra criar, etc, ficou pensando que se não morresse, se conseguisse escapar, daria um bom aumento pra moça e ainda incluiria assistência médica pra ela e os filhos, queria muito continuar sua vida com a Edicleuza, mas parecia que agora não tinha mais jeito, lá na outra vida não haveria espaço pra ela, ainda mais considerando os dotes físicos da moça.

Continuava suando frio e ouvindo vozes distantes, talvez estivesse em coma, talvez já estivesse na outra vida, tudo muito estranho, será que existia vida após a morte?

Um turbilhão de emoções e de dúvidas tomava conta de sua mente inquieta, ele sabia que esse dia não tardaria a chegar, sabia que a morte era inevitável, mas também sabia que existem vários tipos de morte e que algumas pessoas acabavam escolhendo suas formas de morrer.

Ele já havia sido alertado, afinal, outros amigos e conhecidos já haviam padecido do mesmo mal, e ele testemunhara muitos momentos como aquele que estava vivendo, mas não dava para saber que era daquele jeito, ele imaginou que quando chegasse sua vez seria mais suave, quase indolor, mas não estava sendo nada fácil.

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Sentiu que não tinha mais jeito, não dava pra voltar atrás, ele já estava condenado há quase oito anos e sabia que era inevitável, conformou-se em perder as coisas simples da vida como o direito de fumar na sala, tomando cerveja e vendo futebol, sabia que morrer não seria nada fácil, ele tinha certeza de que não estava indo para o paraíso, mas decidiu agir como sujeito homem.

Aos poucos foi voltando a si e tentando se situar no ambiente, olhou para os lados na tentativa de ver um rosto conhecido e viu Edicleuza chorando discretamente, com um lenço na mão. Olhou novamente em volta e reconheceu os pais de mãos dadas, a mãe também chorava, por último identificou a figura de um padre que tentava lhe trazer de volta a realidade, agora ele tinha certeza, estava morrendo e o padre viera para lhe dar a extrema unção.

Esforçou-se para ficar acordado e ouvir o que o padre dizia, quando este lhe perguntou: “…é de livre e espontânea vontade que o fazeis?”.

Ainda meio absorto ele respondeu automaticamente: “Sim”. E o padre: “Então pode beijar a noiva!”.

Morreu e ainda tinha uma vida inteira pela frente.


publicado em 01 de Outubro de 2009, 08:21
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Sall Rodrigues

Sall é o apelido do jornalista Dilson Rodrigues, paulistano que também é cantor nas horas vagas.\r\nEle escreve no www.blogdosall.wordpress.com


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