Dor nem sempre é falta de preliminar

Quando o desconforto briga com o desejo

Tudo ia bem, depois do sushi e do saquê, a língua dele desfrutava da textura da carne dela, ela farejava as coxas dele buscando o ponto mais macio para morder na hora que gozasse. Ele ansiava esse momento, afinal, em seguida finalmente teria o prazer de concretizar o ato. Encostaram ventre com ventre, sentiram as partes se tocar. Ela se estremeceu, deu medo de doer. Sentindo que o sexo dela estava retraído, ele tentou investir em mais preliminares. Se dedicou ao beijo e, sem descolar seus lábios do dela, tentou introduzir. Viu ela espremer os olhos e contorcer a boca. Ele perguntou se estava tudo bem e ela garantiu que ia ficar, em breve.

Voltou duas casas antes de seguir o jogo. Respirando fundo, ela sentiu novamente a dor do pênis prestes a lhe rasgar a pele. Sabia que isso não aconteceria, mas era isso que sentia. A garota colocou um ponto final na tentativa, não ia dar, e ele consentiu, mas quis propor soluções. Disse que ela precisaria relaxar, se deixar levar. Não era isso, ela sempre relaxa, se entregava, ficava vazia do mundo, pronta para toda sensação, mas era a dor que a trazia de volta à terra, e não o contrário. Bom, no começo era assim. Depois, a mera lembrança da dor já cortava todo e qualquer sentimento de desejo, e qualquer coisinha que engatilhasse a lembrança dava calafrios. Começou a evitar o sexo, e, quando resolvia seguir em frente, doía tudo de novo.

Estava cansada disso, tanto que começava a chorar. Era que ela não conseguia, nascera com esse com defeito. Nunca teria isso na vida dela, isso de botar pra dentro mesmo. Nunca faria um namorado completamente feliz, sempre terminava nesse momento odioso, em que sentia-se culpada, defeituosa e desabava de chorar.

Ela já tinha procurado dois médicos. O primeiro, ginecologista homem, lhe recomendou uma pomada que funcionava como anestesia local. Chorou ainda mais aquela noite. Ele conseguiu entrar e não doeu tanto como nas outras vezes, só sentia um desconforto, mas isso a machucava ainda mais por dentro. Então quer dizer que para chegar ao cabo de uma penetração seria preciso dopar sua vagina e se abster do direito de ter qualquer sensação?

Procurou outra médica, uma mulher, pensou que assim ela seria mais bem compreendida. Essa receitou uma noite em um bom motel, com massagem, vinho, jantar romântico. Ela só precisaria entrar no clima e sentir desejo.

Fez tudo isso passo-a-passo com o namorado, gozou deliciosamente com o oral dele. Ela relaxava tanto quanto era possível, mas era a dor que cortava o clima e não o contrário.

Nas primeiras vezes ele achava legal essa situação de não conseguir penetrar. Concluía que seu pau era grande demais para aquela adorável pequena, mas que quando acontecesse, seria delicioso e apertadinho. Depois começou se achar ruim de cama, usava seus melhores truques e não conseguia dar prazer a ela. Não a ponto de relaxá-la para a penetração.

Chegou a pensar que a amada, pobrezinha, nascera frígida. Mas não, ela gozava gostava de masturbação e outras coisas. Sabia que ela queria conseguir ser penetrada, queria dar esse prazer a ela, tentava de tudo e depois se sentia culpado por ter tentado demais, talvez tivesse forçado a barra e quebrado o clima dela.

Toda aquela situação era dilacerante. Tudo o que lembrava sexo e cama fazia o coração de qualquer um dos dois se contorcer dentro do peito. Dava até uma certa azia. Os problemas começaram a extravazar a cama.

Ela não se achava mulher inteira e passou a ter medo das outras. Se reclamava com ele, só reforçava a desconfiança do rapaz que sentia que nada nele a deixava contente. O relacionamento se dissolvia aos poucos, e vendo as últimas gotas escorrerem pelo ralo, ela pensava que tudo fora culpa dela e desse seu defeito.

Alguns meses depois, um texto na internet mostrou para ela que o que ela tinha era vaginismo. Por algum motivo psicológico - e cada pessoa tem o seu - seu corpo criou um bloqueio contra a penetração. Ainda que ela não pensasse nisso, o corpo travava, e depois, livre ou não desse primeiro motivo, o corpo continuava bloqueando a penetração porque nas vezes em que se tentou, a dor foi terrível. O tratamento era fisioterapêutico e psicológico. Era preciso fazer o corpo perder o medo da dor, usando primeiro próteses bem pequenas e aumentando o tamanho aos poucos, e, ao mesmo tempo, com a terapia, garantir que a trava psicológica fosse desativada.

Buscou o tratamento. O corpo dela passou a permitir a penetração, mesmo sentindo desconforto e dores. De prazer mesmo, não sentia quase nada, mas pelo menos conseguia dar um pouco dele à alguém. Considerou uma vitória a princípio, e depois chorou. Chorou muito, porque se tivesse descoberto isso antes, talvez o namoro deles não tivesse desabado. A tristeza passou, era que a terapia ajudava. Já estava se tratando há mais de um ano.

Numa viagem, resolveu ir para a cama com um amigo de uma amiga, assim, de primeira, depois de saírem do bar. Não esperava nada quando chegou no apartamento dele, mas lá pelas 4 da manhã queria pedir ao porteiro que interfonasse a todos informando que ela finalmente conseguiu gozar durante a penetração.

Se apaixonou pelo amigo da amiga. Talvez tenha sido o destino, sabe? Encontrou o amor da vida, e com ele o sexo foi incrível.

Podia ser.

Ou, quem sabe, foi o sexo do bom que conquistou seu coração.


publicado em 11 de Abril de 2017, 01:00
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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