Desculpa, mas gente boa mata, sim

A propaganda do governo é ruim mas tem uma mensagem que talvez seja melhor ouvir

As pessoas ficaram realmente bravas com a nova campanha do governo que diz que gente boa também mata

E eu entendo que a peça é bem ruim. Como propaganda que tenta pacificar o trânsito, é fraca. É bizarro que se você usar o sentido da palavra "pode" como "está autorizado a", o cartaz se transforma numa imagem que poderia ter saído de alguma distopia maluca.

Inclusive, há quem tenha tentado reimaginar a campanha, usando o mesmo mote conceitual, mas passando a ideia de uma forma menos agressiva e nem por isso menos criativa. 

A medida em si também é de utilidade questionável. A OMS sugere, por exemplo, que se diminua a publicidade de bebidas alcoólicas, como uma medida para diminuir acidentes de trânsito, mas sabemos que com o poder das cervejeiras no país isso dificilmente vai acontecer.

De qualquer forma, eu entendo que as pessoas, cidadãs tão honestas, trabalhadoras, não queiram ser vistas como monstros em potencial, ainda mais quando esse olhar vem do seu governo.

Mas, na real... gente boa também mata, sim.

A peça é ruim, dá ênfase à coisa errada, na minha opinião. Mas a premissa é boa. Nossos pais, mães, tios, tias, irmãos, irmãs, amigos e amigas... todas são pessoas maravilhosas, mas que cometem deslizes, que têm lados sombrios, desejos que nem imaginamos. 

Essas mesmas pessoas cometem o tempo inteiro ações aparentemente bobas, como falar ao celular enquanto dirigem, avançar o sinal vermelho, andar fora do limite de velocidade, que podem, sim, levar à morte de alguém. 

Elas caminham pelo mundo tranquilamente, mas lá um dia, uma cadeia inexplicável de acontecimentos as leva a ultrapassar uma linha e cometerem ações negativas irreversíveis, crimes propriamente ditos, como entrar em um acidente de trânsito e matar alguém.

O assassino, o monstro, às vezes é igualzinho a você. Ele acha que só uma vezinha não vai fazer mal a ninguém, que é só um susto no ciclista, que é só uma economia no combustível ou que não precisa se preocupar tanto com a segurança por que a casa nunca vai pegar fogo. 

Elas só não querem falir a empresa ou acham, de verdade, que é ruim pro trânsito ter um ciclista na rua. O jeito pode ser torto, mas a intenção raramente é de foder a vida de todo mundo. 

Essas pessoas apostam que tudo vai dar certo e fazem o que fazem acreditando que aquilo é pro bem delas. 

Mas, ainda assim, o pior acaba acontecendo. E, de repente, um cidadão comum, "de bem", vira notícia.

Você mesmo, aposto, tem todo um diário mental com os mil pensamentos generosos que passam pela sua cabeça, mas não deve dar o mesmo peso às atrocidades que pensa (e faz).

Esse escândalo fruto da mera ideia de um médico, professor ou um ativista dos animaizinhos, cometendo um deslize ou uma ação deliberada que leve a um dano ou uma morte, é muito significativo. Mostra que estamos romantizando posições sociais, profissões, pessoas. E, se o fazemos com os outros, provavelmente estamos dirigindo essa medida a nós mesmos. 

Não há monstros, assim como não há paladinos da justiça caminhando por aí, imaculados tanto pro bem como para o mal. 

É por isso que, apesar de desastrada, essa ação até que tem um ponto. 

E, se você pensa que é bondoso e nunca se igualaria a um assassino do trânsito, é justamente a você que a propaganda se dirige. E é por talvez ter acertado que você tenha ficado tão revoltado.

Afinal, "como assim, o melhor aluno da sala pode matar? Eu sou o melhor aluno da sala e nunca mataria ninguém!"

Se você se acha acima de cometer qualquer deslize, talvez valha a reflexão e olhar atentamente pra como você se comporta e o que efetivamente faz, não só pro que pensa fazer. 

Se você acha que sabe o que está fazendo e nunca vai errar, tem um problema que pode causar consequências a você e, pior, a alguém que nem faz ideia do que está acontecendo. 

Se tem uma coisa que todo mundo devia saber, é que não vai dar certo sempre.


publicado em 04 de Janeiro de 2017, 15:51
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Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no Youtube, ouvir no Spotify e ler no Luri.me. Quer ser seu amigo no Instagram.


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