Eu sou daqueles que costumava bocejar quando algum pedante do RH vinha querendo doutrinar sobre os “valores, visão e missão” da empresa. Sempre me pareceu uma perda de tempo institucionalizada.
Mudei de ideia ao conhecer a Zappos. Explico: esses tais “valores da empresa” serviram para a sua venda para a Amazon. Por quase U$ 1.000.000.000.
A Zappos vende sapatos, online.
A minha bronca com a tríade “missão, visão e valores”
Já trabalhei em diferentes empresas em distintos estágios de maturidade: vi desde corporações jovens que queriam definir a sua identidade às anacrônicas que precisavam se reinventar para sobreviver.
Para essa difícil missão, geralmente o diretor presidente (o “chefe”, “dono” ou “CEO”) procurava o encarregado de recursos humanos interno ou contratava uma empresa externa de consultoria para o trabalho. Seja qual fosse o contexto, o resultado para mim e diversos outros funcionários era sempre o mesmo: cedo ou tarde todos éramos convocados para a sala principal de reuniões, onde PowerPoints chatos pra burro eram exibidos.
Link YouTube | Se o seu objetivo é adicionar forma inadequada a um conteúdo sem propósito, siga as dicas acima.
Acho que a maioria dos leitores do PdH já viveu a experiência de ter que invocar paciência budista em situações semelhantes.
É um grande faz-de-conta:
- os diretores fingem que realmente pretendem mudar sua pegada empresarial, que estaria refletida nos valores da empresa;
- os consultores fingem que fizeram um trabalho “customizado” (sic) após uma longa pesquisa (que justifica as horas trabalhadas) e criam uma lista com jargões como “foco no cliente”, “valorização dos integrantes da instituição”, “ética e transparência interna e externa” e outras expressões torpes;
- os funcionários fingem que prestaram atenção, e os mais puxa-sacos aproveitam o final da apresentação para apertar a mão do chefe, parabenizando pela modernização e profissionalização alcançada.
Todos retornam para suas mesas e a realidade permanece a mesma. Por que é que profissionais inteligentes se submetem a esses rituais? Eu me perguntava se os diretores dessas diferentes empresas realmente acreditavam no que estavam fazendo.
Os valores da Zappos
A maneira errada de definir a Zappos é “um site que vende sapatos”. Mas vamos nos manter a essa descrição por enquanto. Na página que fala sobre os valores dessa empresa, temos o seguinte decálogo:
1. Entregue um “UAU” através dos serviços
2. Abrace e conduza mudanças
3. Crie diversão e um pouco de maluquice
4. Seja aventureiro, criativo e cabeça aberta
5. Procure sempre por crescimento e aprendizagem
6. Crie relacionamentos abertos e honestos através da comunicação
7. Crie um time positivo e um espírito de família
8. Faça mais, usando menos
9. Seja apaixonado e determinado
10. Seja humilde
Quando li esses princípios, novamente me recordei de experiências negativas de má implementação de valores e missão de empresa. E torci o nariz. Mas continuei investigando mais sobre essa empresa que é mencionada por Guy Kawasaki como “o ponto de partida” para entender como usar social media para resultados. Não é por acaso que eles tem 1.684.155 de seguidores no Twitter @zappos e 32.000 pessoas em sua comunidade no Facebook.
Quem me deu as pistas do sucesso da Zappos foi novamente o guru Seth Godin, o mesmo careca que me ajudou a imaginar os motivos da Playboy ter colocado ao mesmo tempo a Marge Simpson e a Fernanda Young na capa. Esse sucesso se resume em uma palavra: tribos.
Como as regras do jogo mudam com o boca-a-boca da Internet
Essa ideia é simples e óbvia. Mas para quem ainda não entendeu a relevância que o Twitter, comentários em blogs e o botão “share this” no Facebook exercem nos negócios, lá vai a minha versão resumida….
Na época da TV, as empresas faturavam ao reduzir os custos de produção, fazendo produtos baratos, qualidade de entrega e suporte mínimo e bom investimento em propaganda. Um produto mediano anunciado por uma agência de talento e divulgado no horário nobre era sucesso garantido. Era.
Hoje, assim como no caso do tráfego por pornografia digital ficar pulverizado, o entretenimento é consumido nos infinitos novos espaços da Internet. O reinado da TV Globo tem prazo de extinção (sim, sou otimista).
Ainda tem e haverá milhões diante da telinha por muito tempo – mas são do tipo de consumidor de menor interesse. São crianças que veem Chaves. Aposentados que assistem ao Jornal Nacional e ficam assustados e comovidos com o terremoto do Haiti – e nada fazem, como bons espectadores dos dramas alheios.
O bom consumidor é aquele que é engajado e entusiasta. É o fortão da academia que fala para todo mundo que mudou para a nova marca de suplemento. É a mãe que tem um filho alérgico a glúten e passa o dia catalogando produtos e receitas. É a compradora fanática que usa fóruns de discussão sobre bolsas. Essas são as novas tribos.
Link YouTube | Seth Godin no TED Talks falando sobre as tribos que nós lideramos todos os dias
Entusiastas como os descritos por Seth não procuram suas informações na Revista Veja ou no Fantástico. Os meios de comunicação de massa sofrem o peso de sua grandeza: para comunicar para todos, precisam ser superficiais o suficiente para ter uma aceitação geral.
(Nota do autor: vejam que nesse texto eu estou criticando consultores que fazem trabalhos perfunctórios de “avaliar a missão da empresa”. Sei que posso ofender muita gente, mas é só assim que eu consigo me comunicar de forma genuína e passar minha mensagem. Uma rede de TV nacional não pode se dar esse luxo.)
É na mídia social que pessoas e ideias se conectam. Os grupos de interesses ganham vida com a Internet pois agora a localização física não mais importa. E aqui é que vem a correta definição do que é a Zappos. Uma definição que deve ser considerada por qualquer empresa hoje que não queira entrar na armadilha do faz-de-conta.
Zappos é um local onde entusiastas podem se encontrar e falar sobre suas paixões
É assim que o Seth Godin define essa empresa que foi comprada por 928 milhões de dólares pela Amazon (depois Tony disse que o valor final da transação ficou em 1,2 bilhões). A Zappos não é uma loja de sapatos. É onde entusiastas por sapatos podem encontrar mais gente interessada em seguir essa paixão.
E isso é unido pelo decálogo com muita maestria pelo seu líder, Tony Hsieh. Ele é o cara que me fez mudar completamente de opinião sobre a importância dos valores da empresa, que são usados por ele como alavanca para resultados diretos em lucratividade e inovação.
Eu vejo os valores corporativos como um dos três pilares de seu sucesso. Os outros dois são o relacionamento com o cliente e o uso de tecnologia, pois só falar bonito não adianta.
Existe uma tecnologia de ponta que inclui setenta robôs em seu armazém, permitindo empacotamentos prontos para entrega em oito minutos. O sistema de itens recomendados da Zappos também ajuda, mas não é nada que a gente não tenha visto nas vitrines virtuais da Amazon.
Além da tecnologia, nos tempos de glória a Zappos oferecia envio no mesmo dia de graça e também uma garantia de 110%: se um concorrente anunciasse um preço menor, a Zappos cobria o valor, mais impostos e despesas de envio, além de oferecer um desconto adicional de 10%. Isso sim é “foco no cliente”.
Mas de tudo, o que mais me chamou a atenção é como Tony Hsieh usa técnicas de dinâmica social, psicologia e administração para criar uma equipe que é diferente de tudo o que existe. Uma das ideias listadas em seu novo livro Delivering Happiness: A path to profits, passion and purpose (com lançamento previsto para junho) é oferecer dois mil dólares para os novos empregados pedirem demissão. Ao final do post eu conto como isso é lucrativo para a empresa.
Como a clareza dos valores da empresa se traduz em resultados
Uma coisa que eu sempre notei é que realmente a cultura da empresa se perpetua. Antes da Ambev, a Brahma sempre foi um lugar bastante competitivo, tal como o Citibank. Outros, como o Banco Votorantim, eram claramente contra a política de competição interna excessiva.
Mas a cultura empresarial sempre me pareceu ser algo complexo demais para ser construído como elemento de design consciente. Parece que a Zappos é um exemplo de que eu estava enganado.
Primeiro, seu co-fundador é um cara que adora livros de desenvolvimento pessoal. Ele diz ter oThe Happiness Hypotesis, de Jonathan Haidt, como um de seus livros preferidos no tema de busca de uma fórmula ótima de maximização de felicidade.
É assim que Tony traduz a abstrata sequência de valores da empresa em ações específicas. Tudo o que ele faz em termos de gerenciamento da Zappos é cuidadosamente pensado para atender à felicidade dos empregados e dos clientes.
Exemplo: mudou a sede da empresa de San Francisco para Las Vegas. O motivo, além dos custos reduzidos, é que Vegas possui restaurantes e entretenimento 24 horas, diferente da California. Isso melhoraria a qualidade de vida da equipe que faz o turno noturno.
A ideia não é nova. David Ogilvy conta que a esposa do publicitário Stanley Resor insistiu que os escritórios dessa agência do começo do século passado fosse ricamente decorada com móveis luxuosos antigos. Ao tornar o ambiente de trabalho mais agradável que a própria casa dos funcionários, haveria a tendência de se trabalhar mais horas.
A Zappos levou essa ideia para o próximo nível. Não estamos mais falando apenas de uma mobília de design. Estamos falando em um nível profundo de identidade.
Diga-me onde trabalhas e te direi quem és
Repare como no vídeo abaixo os funcionários repetem com felicidade o decálogo da empresa. Esse é um belo exemplo de um conjunto de valores implementado com eficiência.
Link YouTube | O decálogo de valores da empresa Zappos.com. Muito mais que um faz-de-conta: os caras realmente vivem esses princípios
Como essa engenharia de identidade funciona? Anualmente, todos os funcionários, tanto novos como antigos, escrevem pequenos artigos refletindo sobre a experiência de trabalho e os valores da empresa. O resultado é um livro de capa dura com cerca de 400 páginas. À venda, claro.
Essa prática me lembrou um pouco das lições do Robert Cialdini, especialista na arte da persuasão. Uma das táticas de manipulação mental usadas pelos chineses era fazer com que seus prisioneiros de guerra escrevessem artigos apontando as falhas dos Estados Unidos, e como o sistema americano não era perfeito. Essa inocente atividade de passatempo tinha como recompensa um cigarro para o melhor artigo.
O simples ato de colocar em palavras ideias com as quais não se concorda necessariamente é um reforço de uma crença. Por coincidência ou não, a prática de Tony Hsieh faz com que os verdadeiros fiéis se tornem ainda mais firmes em participar da família Zappos. Esse é exatamente o papel do líder da tribo descrita pelo Seth Godin.
A integração da equipe é outro fator cuidadosamente implementado. Atividades sociais fazem parte oficial do emprego. O cara com quem você se diverte tomando umas na festa é o mesmo que vai ficar o dia inteiro dividindo escritório no computador ao lado. Por que não fazer com que a fronteira entre o público e o privado se misturem, para gerar maior união?
“Amigo, eis aqui U$ 2.000 para você se retirar do recinto”
Entretanto, não é qualquer maluco baladeiro que é contratado para a Zappos. Todo o processo de criação da tribo envolve desde o primeiro passo no recrutamento. Além das perguntas seletivas, os finalistas recebem um treinamento de duas semanas para aprender como atender os clientes ao estilo Zappos. No final, eles recebem dois mil dólares para desistirem, além da remuneração pelo tempo trabalhado.
O motivo é que durante o treinamento ficava claro quem é que vestiria a camisa da empresa e quem cedo ou tarde sairia de qualquer modo. Oferecer os dois mil é uma maneira para facilitar o processo e evitar as maçãs podres de contaminar o resto. E ainda serve para outro princípio de persuasão do Cialdini: os que ficam e rejeitam a proposta dos dois mil estão investindo na empresa, mais inclinados a valorizar o trabalho. Genial.
Acho uma pena que por enquanto a maior parte das firmas que eu conheço ainda continuarem brincando de faz-de-conta com valores abstratos que não são efetivamente implementados. Como estou pesquisando o assunto, receberei com muita gratidão outros exemplos que vocês conheçam.
*Crédito da foto de topo: Scott Beale.
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