“Ele morou junto da minha família por anos, tratavam ele como família e vou te dizer que tratam hoje.” Rhuan M., professor e analista de projetos, 24 anos.
"Eu lembro de estar encostado em um poste que era na frente da minha casa. Minha prima percebeu que eu só chorava e viu sangue". Jesus Lumma, cantore e compositore, 27 anos.
“Durou por um tempo, dos meus 6 aos 8 anos. Eu me lembro que ela deitava na cama, pegava minha mão, passava pelo corpo dela e me obrigava a beijar ela.” Anderson L., microempresário, 31 anos.
Homens: de agressor a vítima
Os dados que não se negam, se complementam.
Sim, os homens são maioria entre os autores de violência sexual. Tem-se falado sobre enfrentar a cultura do estupro e violências de gênero principalmente contra meninas e mulheres e, para isso, é importante que os homens também se engajem num processo de responsabilização e transformação.
Tudo isso é essencial. E, para enfrentar todos os tipos de violências sexuais, também temos que olhar para outro dado: meninos e homens também são vítimas. E os agressores continuam sendo, majoritariamente, homens.
Neste vídeo, dois homens que passaram por violência sexual contam como foram desacreditados por muitos. (Ative as legendas)
Denis Gonçalves Ferreira é psicólogo, professor e pesquisador. Ele tem se dedicado a uma ampla pesquisa sobre violência sexual contra homens para dimensionar o problema, uma vez que faltam dados sobre a prevalência de abusos contra homens na idade adulta.
“Violência sexual é um problema majoritariamente na infância e na adolescência porque é mais fácil pro agressor sexual agredir uma criança e adolescente com ameaças, mas também é um problema pro homem adulto.”
Numa pesquisa sobre violência contra meninos na infância e na adolescência, 80,8% dos agressores eram do sexo masculino.
“No que tange às características desses autores [de violência sexual], geralmente são do sexo masculino e heterossexuais (Holmes & Slap, 1998). Costumam ser conhecidos pela criança, principalmente parentes, com idades entre pré-adolescência e idade adulta (Kristensen, 1996)” (Hohendorff, Habigzang e Coller, 2012)
Segundo pesquisa realizada do Instituto de Psiquiatria da USP, 63% das crianças violentadas era do sexo feminino e 37% do sexo masculino. Uma diferença é que a faixa etária de maior risco para as meninas é entre 7 e 10 anos de idade (48,5%), enquanto para os meninos é de 3 a 6 anos. Nesta pesquisa os pais despontam como os maiores perpetradores.
Denis aponta dados preliminares de uma pesquisa realizada com mais de 4 mil de homens adultos de 12 capitais do Brasil: 21,49% deles já tinham sido vítimas de sexo forçado. Essa pesquisa foi feita com homens que fazem sexo com outros homens.
Em outro mapeamento com 242 entrevistados ao redor do Brasil (sem o recorte de orientação sexual) 63,5% dos homens já estiveram em alguma situação de abuso, considerando desde toques indesejados até sexo forçado.
Estes dados são indicativos, pistas que mostram alguns traços do problema que é a violência sexual. Para obter dados mais amplos e expressivos a nível nacional, Denis tem coordenado o "Estudo Nacional de Prevalência de Violência Sexual entre Homens Brasileiros e Fatores Associados”.
[Tenha você passado ou não por um caso de violência sexual, te convidamos a responder esse formulário.
Caso tenha sido vítima de violência sexual e precise de apoio, você pode contatar a organização Memórias Masculinas.]
Os abusos invisíveis
Casos de violência contra meninas e mulheres são temidos pela família e, caso ocorram, apesar ainda das altas taxas de descrença, estes casos tem mais chances de serem reportados ou denunciados. Violências contra meninos demoram mais tempo ou nunca chegam a vir à tona pela dificuldade de reportar, vergonha, medo da reação dos familiares ou descrença.
O IPEA estima que só 10% dos casos foram notificados. em delegacias, hospitais ou outros programas de assistência. Até 2009 não havia sequer a possibilidade jurídica de que qualquer indivíduo do sexo masculino denunciasse um estupro na condição de vítima.
Os estudos que existem hoje focam, em sua maioria, nos abusos contra crianças e adolescentes do sexo masculino porque os casos registrados se concentram neste grupo. Uma pesquisa realizada no Conjunto Hospitalar de Sorocaba (São Paulo), em um ano o hospital registrou 21 casos de violência sexual, 18 contra meninos de até 12 anos.
Entrevistamos três homens adultos que passaram por situação de abuso e, nos três casos, a violência aconteceu antes dos 18 anos.
Rhuan e as desculpas pela “brincadeira”
Rhuan M. morava no sul da Bahia com sua família e mais um agregado, um homem 10 anos mais velho que ele. Quando a família saia para o trabalho, Rhuan ficava em casa com o agregado.
“Na primeira vez, a gente estava assistindo televisão em um dos quartos, estávamos lado a lado um do outro, e começou um toques íntimos por cima da roupa. Não passou pela minha cabeça que nada estivesse acontecendo naquele momento. Cada vez mais as pessoas passavam três ou quatro dias fora de casa e eu acabava ficando sozinho com esse homem. Isso acabou virando uma cena mais frequente: toque na região do Pênis, por cima da bermuda. Eu ficava parado e nada acontecia.
Para minha grande infelicidade, nos mudamos para uma casa menor e eu tive que dividir o quarto com esse homem. Ai é que a maior parte dos eventos aconteceram. Ele abaixava as roupas, se masturbava e conforme o tempo foi passando foi se agravando ainda mais o nível de intimidade a que esses toques chegavam.”
Os abusos começaram quando Rhuan tinha 14 anos e foram até os 16, quando a família se mudou de cidade. Aos 18 anos, em depressão e passando por ideações suicidas, Rhuan decide contar a alguém da família.
“Eu lembro que eu contei de manhã, chorei bastante, fui trabalhar e, quando eu voltei pra casa, nada aconteceu.
Um tempo passado, trouxeram essa pessoa até a casa e me colocaram em confronto com ele. Tudo o que fizeram foi falar:
– Peça desculpa pra ele pela brincadeira que você fez com ele, porque isso não é brincadeira que se faça”
O caso de Rhuan nunca foi denunciado.
Jesus Lumma: a criança que não deveria ter saído de casa
Jesus, morava com os avós na comunidade do Gapó do Monte Castelo, em São Luis do Maranhão. Na época, eram casas de palafita, os avós e a mãe passavam o dia trabalhando e ele ficava com a irmã sob os cuidados de um tio avô. Boa parte das brincadeiras eram na rua.
Um dia, aos 6 anos, entrou na casa de um vizinho para chamar a irmã e, então, foi estuprade por dois homens adultos.
“Graças a Deus e ao nosso cérebro, que é uma máquina inteligentíssima, eu não lembro desse momento que foi de violência extrema. Eu lembro de estar encostado em um poste que era na frente da minha casa. Minha prima percebeu que eu só chorava e ela viu sangue.”
A prima que gritava chamou os avós que tinham recém chegado do trabalho e que logo identificaram o ocorrido.
“Só que o meu avô, com todos os padrões dele de ensino e de masculinidade, achou que seria melhor abafar o caso. Inclusive ele falou coisas que ficaram reverberando dentro de mim por um bom tempo de uma maneira muito negativa: 'Se você estivesse em casa isso não teria acontecido', 'o que eu estava fazendo lá?'.
Como se tivesse sido eu a pessoa culpada do que tinha acontecido… Isso me isolou do mundo por um bom tempo. Eu tentava não chamar a atenção, ficar caladinhe, pra não despertar a maldade em alguém. Eu ficava me vigiando o tempo todo quando na verdade eu fui a vítima.”
O caso de Jesus Lumma também nunca foi denunciado.
Anderson L. e as chantagens diárias
Enquanto seus pais trabalhavam e estudavam, Anderson, desde pequeno, ficava na casa dos avós, aos cuidados de sua tia que tinha alguns anos a mais que o garoto. Ele não sabe exatamente como tudo começou, as primeiras memórias são de quando ele tinha 6 anos e a tia, entre 14 ou 15.
"Ela forçava a gente (eu e meu primo da mesma idade) a ter contato com ela, a beijar ela, coisas do tipo. Isso acontecia durante o dia e durante a noite. Ela tinha suas preferências: as vezes ela se focava no meu primo, às vezes comigo.
Eu não queria fazer aquilo, mas ela me manipulava, dizia que se eu falasse ela ia contar pra minha mãe, ela ia dizer que eu era mentiroso, que não iam acreditar em mim, que ela inventaria que eu havia feito “isso ou aquilo”
Quando Anderson tinha 8 anos, uma terceira criança da família também foi violentada sexualmente e, quando esse caso veio à tona, as reverberações na família provavelmente afetaram a tia porque, depois deste dia, os abusos pararam. Anderson seguiu sem dizer nada a ninguém:
“No outro caso, ele contou que sentar no colo do homem, tirava a roupa, via sair uma ‘coisinha branca do pipiu dele’ e mesmo assim não aconteceu nada. Eles [a família] não foram na delegacia fazer uma denúncia e nem sequer levaram a criança no hospital. Simplesmente ignoraram porque o pastor mandou. Eu pensava que, se ele chegou a contar tudo isso e não aconteceu nada, se eu abrisse a boca eu iria sair como mentiroso e, se bobear, eu apanhava.”
Acontece com homens adultos?
No caso de homens adultos LGBTQIA+, uma porcentagem dos casos caracterizados como ‘estupro corretivos’, quando se tem o objetivo de punir a vítima por sua orientação sexual. Mas Denis explica que a maioria dos casos são perpetrados por parceiros e parceiras íntimas ou pessoas próximas da vítima.
Nestes casos, há também registros de mulheres como autoras de violência sexual: “É socialmente bizarro dizer isso, pensar que uma mulher casada com homem pode estuprar esse homem, parece que nem cabe na língua portuguesa… mas acontece.”
Acontece em forma de assédio, abuso ou estupro quando, diante de negativas ou da falta de reação de um parceiro, a outra pessoa segue tocando ou pressionando o ato sexual.
Essa situação é somada ao contexto cultural em que, segundo normas de masculinidades hegemônicas", os homens temem negar o sexo porque sabem que isso pode ter consequências sociais.
Denis conta sobre um padrão de pressão encontrado em relatos de sua pesquisa prévia:
“'Você não quer fazer sexo? Você é boiola? é marica? não dá conta de mulher?”'
Fala-se como se o homem tivesse que dar conta do sexo o tempo inteirinho. (…) Eles contam que acordam no dia seguinte com uma sensação de muito mal estar. 'Meu deus eu transei e eu não queria ter transado'".
Um dos fatores que leva a crer que é impossível uma agressão sexual ser cometida contra um homem dentro de um relacionamento, é porque se usa a ereção como “atestado de consentimento”.
Denis dá um exemplo real de um caso que atendeu:
"Eventualmente o homem adulto começou a passar a mão no penis desse rapaz. De resposta imediata, esse jovem ficou excitado e disse “Para de fazer isso”. O homem parou. Passou um tempo, voltou a passar a mão, o menino pediu que parasse e então o homem argumentou: “eu não vou parar porque você está gostando. Você ficou excitado. Se você tá excitado é porque você tá querendo isso.”
O pesquisador deixa claro que a resposta do corpo, a qual se dá devido a estimulação de terminações nervosas, nem sempre está relacionada ao que a pessoa quer de fato (independente dos sexos) e mesmo quando há algum prazer no toque, o desrespeito ao consentimento da outra pessoa, é uma violência sexual.
Denis também esclarece que nem todas as violências sexuais são perpetradas pelas força física ou por agressões. É possível que exista algum sentimento de prazer envolvido o que torna o cenário mais confuso para a vítima, o que desperta sensações de culpa, mas que não exime o ato de ser uma violência.
É importante reforçar que o que caracteriza a violência sexual é a imposição de qualquer ato ou toque sem o consentimento da outra parte. Dentro de relações afetivas, essa confusão entre pressão para o ato, desconforto e prazer, ficam mais tênues e por isso raramente se nomeia estes atos como estupro.
O estupro a corpos transmasculinos:
Sem hierarquizar os sofrimentos, sabe-se que existem características e consequências muito diferentes quando a violência recai sobre os corpos distintos. Estupros cometidos contra mulheres cis ou homens trans, podem ter como consequência uma gravidez indesejada ou não planejada, e subsequentes episódios de revitimização.
Leo Medeiros, por exemplo, é um homem transsexual que, no nosso PAI 2020, contou sua história: ele foi vítima de "estupro corretivo', quando motivado pelo preconceito e intolerência, o agressor impõe a violência sexual como forma de castigo à vítima. Léo engravidou aos 18 anos e sem aceitar a gravidez, passou por meses de silêncio e sofrimento. Decidiu que a criança nasceria mas deveria ser adotada por outra família.
"Eu passei pela dor de deixar a criança no hospital enquanto uma enfermeira me xingava e dizia que eu era horrível. Me julgaram, gritaram o que não era para ser falado, e não sabiam da dor que eu tinha passado."
Dias depois, Léo decidiu voltar ao hospital e levar Kylie, sua filha, pra casa. Ele conta que a dor dos gritos da revitimização que aconteceu no hospital, permaneceu ecoando em sua cabeça por anos.
Do outro lado da moeda, em pesquisa realizada em Porto Alegre com mulheres transexuais e travestis, 25% já sofreram estupro. Denis, que também pesquisou abusos contra travestis em seu mestrado, aponta que, apesar do alto número, similar aos homens, travestis também tardam a reconhecer que um episódio não foi "sexo" e sim estupro.
O fato destas pessoas terem sido sociabilizadas na infância como meninos, e as constantes violências sociais as quais são submetidas, são possíveis fatores associados para a naturalização dos estupros e violências sexuais.
Onde estão estas denúncias?
O pesquisador separou algumas razões que dificultam ou até impossibilitam que os homens notifiquem ou denunciem estupros, assédios e abusos.
“As mulheres já passam por humilhações inenarráveis e para os homens existem outras dificuldades":
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Dificuldades burocráticas:
Até 2009 a lei brasileira definia que estupro era: "Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça;"
De modo que um crime cometido contra um garoto, um homem ou uma travesti ainda sem reconhecimento no cartório, não poderia ser registrado como estupro, entrando em outras categorias de crime, como lesão corporal, por exemplo.
Hoje o trecho foi reformulado para:
"Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso"
Ainda diante dessa alteração, o processo de denunciar um estupro pode, novamente, submeter a vítima a humilhações e sofrimentos. Para lidar com a falta de acolhimento às vitimas e às denúncias – o que é recorrente em delegacias – criou-se a delegacia da mulher. No entanto, para um homem adulto, esta lacuna ainda não está preenchida.
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Medo da homossexualidade
Denis explica como o preconceito que atravessa a vida dos homens (Heterossexuais e LGBTQIA+) também é um fator que produz silêncio e dificulta a denúncia.
"A homossexualidade ainda não é vista como uma variação da sexualidade humana. Ela é vista como uma coisa horrorosa. A criança cresce com medo de ser gay. Se o agressor for do sexo masculino, isso se soma: aconteceu algo que não deveria ter acontecido com uma pessoa que não deveria ter acontecido porque era um homem.
Esse medo de ter a sexualidade questionada é usado por abusadores como algo que mantém o estupro em segredo, principalmente quando são garotos que estão num momento de descoberta da homossexualidade: “porque ele já tem que lidar com o dilema da própria sexualidade, ele assumir que foi vítima de violência sexual é assumir dois dilemas: a homossexualidade, e a violência sexual. “
Esse foi o caso de Rhuan que criado em numa cidade pequena, em meio a uma família muito religiosa (Testemunhas de Jeová), conta que tinha mais medo de ser confrontado sobre a sexualidade, que sobre o abuso. E eu medo se confirmou:
“Quando eu falei sobre o abuso, eu escutei que era uma brincadeira, um mal entendido. Mas quando eu trouxe o assunto de ser um homem gay e que eu iria casar com outro homem, isso foi um problema.”
Meninos de até 13 anos que passaram por um abuso contam que não reportaram o ocorrido por medo da reação dos pais, de uma possível desestruturação familiar (considerando que esta pessoa tende a ser da ou próxima da família) e da reação dos autores da violência sexual.
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A percepção que o problema da violência sexual é exclusivamente feminino.
“Ele cresce pensando e acreditando que é um problema eminentemente feminino e se é um problema iminentemente feminino, se ele falar sobre isso, sendo masculino, quem vai acreditar que aquilo está acontecendo com ele?
Os meninos não conseguem se perceber como vítima ou quando eles se percebem eles não se sentem confortáveis a falar sobre”, explica Denis.
Segundo o pesquisador, quando se pergunta diretamente aos homens, muitos não reconhecem terem sofrido violências sexuais. No entanto, ao receberem um questionário com situações de violências sexuais descritas especificamente, podem ver ali cenas que já vivenciaram.
“Eu sequer conseguia ver o que acontecia como um problema. Eu sentia que as coisas não estavam bem, mas acho que eu não fui instruído a pensar que isso poderia ser um crime. Essa palavra crime ela nunca foi sequer mencionada nem quando eu contei.”, conta Rhuan.
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A obrigatoriedade de ser forte o tempo todo
“A mulher é ensinada que ela pode ser frágil e que ela pode falar sobre o que ela sente e o homem não é ensinado a falar sobre o que sente. Eu não posso falar sobre o que eu sofri, porque falar o que eu senti é coisa de mulher, porque o estupro é uma violência que se comete contra mulheres e, nessa sociedade, ser mulher não é boa coisa.
O homem tem que lidar com a situação e não tem ferramentas nem repertório para falar sobre o que ele está sentindo.
Se ele desconfiou que com 16 anos ele foi vítima de violência como uma namoradinha, ele não vai falar sobre isso com os amigos, porque ele sabe que os amigos não vão legitimar aquilo”, contextualiza o pesquisador.
Em resumo, as regras da masculinidade hegemônica ditam que: o homem tem que encarar qualquer ato sexual como vantajoso para ele, e caso ele chegue a perceber um fato como uma violência, ele não deve de se permitir dizer isso a ninguém, nem seque dar importância a isso. E, caso ele falhe e aquilo tome uma importância em sua vida, a próxima lição é não pedir ajuda e tentar resolver sozinho.
Estupro masculino visto como comédia:
[Ative os legendas e escolha a tradução automática em Português].
Esse vídeo (parte um e parte dois) faz uma análise cirúrgica de como os estupros contra homens são retratados da mídia:
1 – como piada e 2- como instrumentos de castigo para homens que não estão sendo “homens da maneira certa”.
Toda essa análise mostra como a cultura reforça entraves para que denúncias masculinas sejam levadas a sério e como essa cultura aponta o abuso contra homens como algo “sem consequências”, que se esquece passada a “ressaca”.
Os efeitos das violências sexuais na vida de um homem:
O psicólogo já desfaz o pressuposto anterior:
“ É quase que impossível dizer que uma vitima de violência sexual não vai sofrer alguma consequência. A gente não consegue estabelecer relações de causa e efeito (foi vítima, portanto vai ter depressão) mas através de dados epidemiológicos a gente consegue ver como esses dados estão associados. E eles não estão associados aleatoriamente."
Alguns dos problemas associados são:
- Físicos: trauma, doenças sexualmente transmissíveis, futuras disfunções sexuais
- Emocionais: medo, ansiedade, depressão
- Comportamentais: retraimento social, agressividade, comportamento sexual inapropriado
- Alterações cognitivas: como dificuldade de aprendizagem e problemas escolares.
A confusão sobre a orientação sexual, também é um sofrimento recorrente.
Isso não significa que o dano será irreparável, mas principalmente porque meninos e homens tendem a não falar sobre, o sofrimento calado — a sensação de culpa, as dúvidas, o medo — deixa de ser elaborado e isso favorece a permanência dos danos.
Mesmo quando a violência é apagada na memória, como no caso de Jesus Lumma, os desdobramentos do ocorrido — a reação da família aos falatórios na vizinhança — desencadearam consequências sérias nos anos que seguiram. Jesus, que é cantore, conta:
“O estupro aconteceu quando eu tinha 6 anos, mas eu só fui cantar de novo aos 16 anos. Foram 10 anos que eu não queria que minha voz fosse ouvida.“ Além do silêncio, Jesus passou por medos, crises de pânico, sensação de estar sendo perseguide e uma constante dificuldade para dormir."
Rhuan também sofreu com um quadro de dificuldades psicológicas:
“Aos 18 ou 19 eu comecei a desenvolver um quadro de depressão e ansiedade crônica. Era cada vez mais difícil interagir com as pessoas e, no ônibus para o trabalho, eu sentia um cheiro específico — caracteristico de suor masculino — que me arremetia muito ao abuso e isso por muito tempo foi isso um gatilho.
Então nesse quadro de depressão — que tinha a ver com a falta de apoio da minha família em meio isso — eu mal conseguia controlar pensamentos suicidas… Já não importava muito pra mim se eu estava ali ou não.”
A homofobia que alimenta o silêncio
Ao longo de décadas e décadas se alimentou um senso comum de que homens gay “se tornaram gays” por conta de um abuso. Rhuan conta que ouvia conhecidos comentarem que esse teria sido o caso dele.
Não é verdade. A única possível correlação do abuso com a orientação sexual da vítima é, como já falamos, que o perpetrador pode identificar em meninos e homens homossexuais, vítimas mais vulneráveis pelo medo da homofobia.
Rhuan conta inclusive como o trauma o impediu de explorar sua sexualidade e de ter relações casuais ou sérias com homens por um largo período de tempo. Algo similar aconteceu com Anderson, mas relacionado às mulheres, gênero de sua abusadora.
“Eu sempre me considerei heterossexual, porque eu tinha atração por mulheres, mas ao mesmo tempo eu tinha um bloqueio, uma repulsa, alguma raiva interna de mulheres. O que aconteceu e todas as chantagens que ela fazia, isso entrou na minha cabeça como um “não confie nelas””
Vários outros mitos refletem preconceitos homofóbicos, inclusive a suposição de que os abusadores seriam homossexuais. A homofobia nesses casos está no esforço para justificar crimes usando a homossexualidade e vice e versa, é como se essa forma de amar não pudesse existir sem ser associada a algo de ruim
O artigo publicado na National Library of Medicine reúne características gerais dos perpetradores de violências sexuais e, como já foi mencionado, a maioria são homens heterossexuais.
E por que um homem heterossexual exerceria essa violência sobre um menino ou outro homem?
Denis responde pra gente: “Porque Violência sexual não é sobre sexo, é sobre poder. Para quem comete o abuso, não interessa se é um homem, se é um menino ou se é uma menina. Interessa que eu quero exercer poder sobre o outro e eu exerço esse poder de maneira sexual.”
Terry Crews, ator conhecido pela sua força física, já passou por um abuso sexual e, ao testemunhar contra seu agressor sexual, ele reitera: “quando ele segurava meu genital em suas mãos, o que ele estava me dizendo, é que ele tinha o poder em suas mãos.”
Ainda nas representações de comédias, em um dos filmes, um policial que ameaça obrigar um prisioneiro a lhe fazer um oral é questionado sobre ser gay. Então ele responde: “Ele eu não sou gay por ter meu pau chupado, ele é gay por me chupar”.
Talvez essa “piada” reflita como o estupro de homens contra homens não se relaciona com a orientação sexual ou desejo do abusador. Ele é uma ferramenta para subjulgar o outro, colocando-0 em posições que são consideradas degradantes em nossa sociedade: a posição de mulher ou de gay.
A triste história das recorrências.
Ainda quebrando estereótipos e antigas crenças, um autor de violência sexual não é se torna abusador por ter sido vítima de violência sexual.
“Se vítimas se tornassem agressores, cerca de 60% das mulheres seriam agressoras sexuais. "
No entanto, há uma recorrência maior neste grupo: "O que a gente pode pensar é o contrário: homens que são agressores sexuais, têm com maior frequência um histórico de agressões sexuais em comparação com a população geral. Mas a violência sexual não gera agressores.”
Anderson calcula que isso foi o que aconteceu com a sua tia, uma vez que essas histórias foram recorrentes em um núcleo da família, perpetradas por pessoas de convívio próximo.
Outra triste recorrência é que segunda pesquisa de Denis correlacionando fatores associados: "meninos que passaram por uma agressão sexual na infância ou na adolescência tem até em 400xs a chance do homens sofrer violência sexual também na vida adulta."
Algo parecido aconteceu com dois de nossos entrevistados: Jesus, que sofreu um estupro violento aos 6, aos 15 anos se viu em outro cenário de abuso envolvendo um líder de jovens da sua igreja. E Rhuan, que teve o episódio mais prolongado e grave de abusos na adolescência, havia sofrido um assédio pontual de um outro homem aos 11 anos.
A importância de quebrar o silêncio:
O silêncio é uma das ferramentas que permite a continuidade e a impunidade das violências sexuais. O silêncio também relega às vítimas a culpa, as incertezas e o fardo de lidar sozinho com as dores que vão muito além do que a pessoa consegue processar.
A cada vez que um caso é calado, outras pessoas que assistem ao silenciamento, desistem de denunciar seus próprios casos, como aconteceu com Anderson.
E a cada vez que um caso vem à tona, que o culpado sofre uma responsabilização, e que a vítima encontra um espaço de acolhimento, mais pessoas se sentem encorajadas e confortáveis em contar suas histórias.
“Acho que o silêncio foi muito mais maldoso do que se eu falasse sobre isso todo dia 10 minutos por dia. Eu sinto raiva por não ter tido um espaço para ser escutado. Quando eu tentei falar, isso foi completamente diminuído pela minha família. Se você diminui algo desse nível, não há nada da sua vida que não possa ser diminuído na sua vida.”, diz Rhuan.
Jesus, que além da violência que sofreu viu outras violências serem cometidas e mantidas em silêncio pela própria família da vítima, reforça:
“A gente está reclamando do nosso governo, que nascemos em uma sociedade violenta, que não tem valorização na vida das pessoas… Onde nasce isso? Lá na família. Quando os pais e a sociedade olham pra uma criança — que mal chegou no mundo e que está aprendendo a viver nesse mundo — e ensinam pra criança que ela tem que ficar calada se isso acontece.
Se eu pudesse escolher, e por mais louco que isso pareça, eu escolheria a minha história da maneira que ela aconteceu. Porque eu sei que eu tenho a oportunidade de hoje falar: galera olha isso aqui, está acontecendo isso no mundo e a gente está fingindo que não”.
Para superar as dores e os traumas, Denis aponta: "Você precisa dar luz para essa memória, ressiginificá-la e seguir pra viver sua vida."
Há felicidade depois do trauma!
“Eu vou dizer que eu nunca fui tão feliz na minha vida quanto eu sou hoje. O assunto, quando ele volta, é mais fonte de experiência e acolhimento para qualquer pessoa que precise falar sobre isso, que como fonte de dor.
A parte tragicamente cômica é que hoje eu sou um homem casado, há dois anos, com um homem maravilhoso, e essas mesmas que pararam de falar comigo porque eu casei com um homem, ainda tem contato com o meu abusador." Conta Rhuan que passou por um processo de terapia para lidar com a depressão e todas as consequência do abuso.
Anderson também o fez e conta: “Antes da terapia minha vida foi chegando num momento de caos total. Depois, isso foi algo que eu consegui transformar, eu consegui perdoar ela internamente. O caminho foi bem difícil, mas hoje é uma coisa muito muito limpa mesmo.”
Sobre a consequência do silêncio, Denis aponta: “A violência sexual por si só ela é horrível, uma coisa horrorosa, mas o que a gente faz com ela acaba sendo muito mais grave."
Jesus Lumma conta que foi pela arte, pela dança, pelo teatro e pela espiritualidade que conseguiu elaborar o sofrimento. Mas sente falta da oportunidade de ter feito uma terapia. “Foram tantos anos até eu me sentir bem novamente, não precisaria ter sido tanto”.
Memórias masculinas: acolhimento para quem precisa
Denis aponta a lacuna que existe no atendimento a homens que foram vítimas de abuso:
“Se um caso contra um menino chegar ao conselho tutelar, no Disque 100, ou numa unidade de saúde, em casos que machuca o corpo da criança, isso vai ser acolhido por um CREAs e a criança pode receber suporte psicológico e social e jurídico por profissionais especializados.” Ainda assim, como citado no começo estima-se que só 10% dos casos chegam ao sistema.
Se isso acontece com um adulto, o CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) deveria dar conta, mas não dá. Esse adulto não vai conseguir falar com um psicólogo sobre o que aconteceu, não vai conseguir atendimento. Se ele não puder pagar psicoterapia e um advogado para orientar, ele está completamente desamparado.”
Para suprir e desamparo, Denis idealizou o Memórias Masculinas, uma organização social com o objetivo de dar acolhimento psicológico a garotos e homens que passaram por qualquer tipo de abuso sexual.
“No site a gente especifica tudo o que é violência sexual. Se alguma dessas coisas aconteceu com você, pode entrar em contato com a gente.”
A pessoa interessada preenche as informações e é encaminhada para uma lista de psicólogos voluntários com os horários de atendimento gratuito disponíveis.
“A ideia é que funcione com o plantão psicológico. Temos evidências de que um atendimento em plantão, que pode durar de uma a duas horas, tem a mesma efetividade de um atendimento mais a longo prazo. Porque no plantão, tudo o que precisa falar está na superfície, acabou de acontecer."
Outro caminhos para enfrentar este problema:
Um passo é quebrar o silêncio, o outro é investir em políticas públicas de educação, segurança e acolhimento.
“As políticas de educação seriam as maiores aliadas na prevenção de violência sexual. Geralmente é na escola que as crianças conseguem demonstrar ou falar sobre experiências de violência.”, explica Denis.
A educação sexual, que tanto foi atacada politicamente no Brasil, pode ensinar que uma criança, desde pequena, aprenda a nomear as partes de seu corpo, que aprenda que ninguém pode tocá-la e que, caso aconteça, ela saiba identificar que aquilo é errado e que não é culpa dela.
“Do jeito que a gente construiu, é como se a violência sexual tirasse o valor humano daquela pessoa. E a educação sexual produz uma sensação na criança de que, se acontecer alguma coisa assim com ela, ela pode falar pras pessoas e que o valor dela como pessoa vai continuar inteiro."
Essa educação não protege apenas os pequenos de serem vítimas, mas também promove a mudança de cultura para as futuras gerações:
“Se você cresce com a sensação que você tem um corpo, uma sexualidade, que você sabe quais são os seus limites e quais são os limites do outro, isso faz com que se cresça um adulto que sabe se respeitar e que sabe respeitar o limite do outro, que você saiba respeitar quando alguém disser não, mesmo que você esteja com muito tesão no outro.”
Ainda há um longo caminho a ser percorrido:
Essa reportagem é a ponta de um fio que precisa ser desenrolado. Nos últimos anos, observamos que a cada vez que se fala sobre abusos sexuais contra mulheres, mais mulheres tomam coragem para vir à tona e denunciar violências que também sofreram.
Gênero e relações de poder são temas complexos e, nessa complexidade, encontramos que a cultura de exercício do poder pelo estupro e assédio, também recai sobre meninos e homens, perpetrados por outros homens, majoritamente, mas não exclusivamente.
Enfrentar essa lógica de violência, poder e pressão é uma luta que pode beneficiar e podemos caminhar juntos nessa luta por justiça.
Para desenrolar esse fio, dados que formem o panorama mais completo do cenário são essenciais. Por isso, responda e compartilhe o Estudo Nacional de Prevalência de Violência Sexual entre Homens Brasileiros e Fatores Associados.
Se você foi vítima de violência sexual e quer falar com alguém sobre, procure o Memórias Masculinas.
Um convite que deixamos é: quebrar os silêncios, permitir-se falar e ouvir o relato de outros homens, legitimando e acolhendo as experiências e dores de outros homens. Se ver abuso sendo levado como piada, não colabore.
“Violência sexual se discute porque quando eu contei disso eu descobri outras pessoas que também passaram, descobri outras formas de me curar. “
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.