No sábado passado, véspera de dia das mães, minha namorada me proporcionou um dos melhores dias de minha vida: fazer trabalho de lixeiro.
O Let’s Do It – Dia das Ações Civis é uma data de ações coletivas que tem acontecido por toda a Estônia desde 2008, quando pessoas se reuniram para remover o lixo largado na floresta.
Passei um dia para editar o que registrei e aproveitei para traduzir a fala de alguns líderes do projeto. Eis o vídeo:
Relato de minha experiência
Acordei às oito da manhã, tomei banho, preparei um café da manhã reforçado e trabalhei um pouco escrevendo meu próximo livro sobre produtividade pessoal. Às dez e meia, saímos de casa e fomos até a casa da mãe de minha namorada, onde ela e o irmão também estavam prontos para o dia de voluntariado.
Dirigimos até sair dos limites urbanos e estacionamos o carro após uma rotatória que serviu de ponto de encontro. Pontualmente apareceram outros carros de outras famílias que também eram voluntárias, além do carro da organizadora de nosso grupo. Começamos oficialmente às onze da manhã.
Depois de breves instruções, um cara que tinha um furgão e uma caçamba nos levou para um local mais afastado, que era o ponto cheio de lixo.
Por algum motivo, existem pontos onde as pessoas resolvem jogar entulho. No nosso caso, era uma estrada secundária com menor movimento. Lá, encontramos muitas garrafas de bebida, embalagens de comida, pneus, pia de cozinha, cortinas, sacos de lixo, baldes, carpetes, pacotes de cigarro e outros objetos não identificáveis. Curiosamente, não havia nada mal cheiroso: imagino que o que é orgânico acaba dissipando de forma rápida, e o que sobra é aquele lixo que fica por anos sem decompor.
Cada um de nós tinha um saco plástico grande, e carregávamos em direção ao ponto de encontro onde nossos carros estavam estacionados. A organizadora tinha celular e mantinha contato com os voluntários, aparecendo de vez em quando com mais sacos plásticos quando necessário, além de água fresca.
Quando o lixo era pesado (principalmente no caso de pneus), a gente deixava na beira da estrada e os voluntários que tinham caminhonetes apareciam recolhendo. Não sei exatamente para onde o lixo foi parar no final das contas, mas entendi que os voluntários que contribuiam com caminhões levavam o lixo para os centros de processamento e reciclagem quando possível.
Após três horas de trabalho recolhendo lixo e ficando indignado com a quantidade de lixo no meio da floresta e beira de estrada, nos reunimos para uma foto coletiva. Nosso grupo tinha umas vinte pessoas no total, e por todo o país vários pequenos grupos foram distribuídos para os pontos de concentração de lixo. Eles nos convidaram para a casa de campo da empresa onde trabalhavam para um churrasco seguido de sauna (tradição nórdica), com direito a mergulhar na lagoa gelada. Dei uma rápida socializada, mas não fiquei para o evento todo.
Esses foram os fatos que encontrei. Compartilharei minhas reflexões mais ao final deste post.
Como as coisas começaram
Em 2008, o homem mais inovador da Estônia foi Rainer Nõlvak, empreendedor e visionário que teve a ideia de fazer a campanha de limpeza nacional Let’s Do It.
Com cerca de 10 mil toneladas de lixo ilegal espalhado por toda a Estônia, Rainer e seu grupo tiveram o plano ambicioso de limpar tudo em um dia. Foram 50 mil voluntários para limpar todos os espaços públicos, em especial florestas e áreas próximas de estradas. Mais de 40 empresas de limpeza apoiaram a iniciativa fornecendo os containers necessários e também os veículos de transporte. O projeto teve como meta reciclar 80% de todo o lixo coletado.
Isso não seria possível sem o uso de tecnologia. Ahti Heinla, um dos fundadores do Skype (empresa inventada na Estônia), ajudou a mapear o lixo. O Google Earth foi utilizado junto com um software que permitia voluntários fotografar as áreas de lixo e apontar onde seria necessário o trabalho voluntário.
A teoria colaborativa
Em um dos seus cases de destaque em Wikinomics: como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio, Don Tapscott e Anthony Williams apontam para o fato de que quando os estonianos reconquistaram sua independência da União Soviética em 1991, não apenas adquiriram liberdade política mas também herdaram um monte de entulho: milhares de toneladas de lixo jogado por todo seu país.
Ao invés de ficar esperando pelo governo recém criado fazer algo, os estonianos assumiram a responsabilidade em fazer o que devia ser feito e usaram o poder da colaboração. Assim como a Wikipedia é fruto de colaboração de pessoas comuns, o Let’s Do It! da Estônia é um exemplo do que pode ser realizado pela coletividade.
Reflexões sobre minha experiência
Minha namorada estava certa em dizer que essa seria uma ótima lição de humildade e gratidão. Vou tentar colocar em palavras como a experiência foi rica, mas já sei que é uma tarefa impossível.
Esse tipo de atividade deve ser vivido em primeira pessoa: a mera tentativa de relatar ou narrar, combinada com a tentativa de ler e compreender já compromete muito do significado. Mas vamos lá.
1. Podemos trabalhar com uma motivação além do interesse pessoal
Sou um cara muito ocupado. Deixo meus telefones desligados por padrão, assim como email e Skype sempre fechados. Dedico apenas uma hora do meu dia para multitasking (telefonemas, email, pendências gerais) e todo o resto é aplicado em atividades estratégicas de criação de livros e programas de coaching. Sempre que aparece algum compromisso novo, eu geralmente recuso, para ficar plenamente focado no meu trabalho.
Apesar de ter um amor enorme pelos meus pais e muitos bons amigos espalhados no mundo inteiro, reduzi o tempo de interação com todos para algo por volta de uma hora por semana. Gostaria de dedicar mais, porém decidi que este ano darei prioridade ao crescimento de minhas empresas. Outras dimensões de minha vida que tenho como prioridade são minha saúde (academia três vezes por semana, cozinhar em casa) e relacionamento de qualidade com minha namorada.
Num contexto desse, em que espremo cada minuto precioso do meu dia para alcançar mais produtividade, não parece ser muito lógico ter dedicado três horas de um final de semana para ficar limpando lixo que outros caras jogaram no meio do mato. Mas esse tipo de atividade, feita sem qualquer interesse pessoal e em benefício coletivo, tem um significado muito especial. É o tipo de nutriente emocional, quase espiritual, que nos faz ter orgulho de fazer parte da sociedade. Ficamos despertos, aterrados.
Foram apenas três horas do meu dia, e gastei um pouco mais de cinquenta reais comprando botas de plástico e luvas de jardinagem para evitar cortar meus dedos durante a atividade. Um sacrifício mínimo, porém muito valioso.
Recomendo a todos. Dedicar o próprio tempo e energia para o benefício coletivo é algo muito bom.
2. Oferecer cria felicidade
Vou contar a verdade agora. Quando minha namorada me convidou para essa atividade, eu não tinha a menor idéia do que seria. Estava muito ocupado trabalhando e não tive a curiosidade de investigar os sites que indiquei aqui no post. Em outras palavras, eu estava vivendo como um zumbi desconectado das coisas ao meu redor. Quando saímos de casa, eu estava com meus pensamentos voltados ao que eu gostaria de fazer assim que voltasse pra casa.
Não tinha nenhuma expectativa com relação a essa atividade, que estava julgando ser uma perda de tempo. Minto. Havia uma coisa que eu estava imaginando que seria positiva: carregar peso. Desse jeito, eu poderia poupar um dia de academia, já que a atividade seria bastante cansativa.
Não fico muito envergonhado em admitir esse meu egoísmo inicial. Dizem que uma das primeiras palavras que um bebê aprende a falar é “meu”. Mas é sabido que a gente obtém maior satisfação ao dar, e não ao receber. Se por um lado eu saí de casa meio resmungão, posso assegurar que retornei muito feliz. Valeu demais.
3. Limpar merda é o melhor jeito de parar de fazer merda
Outra confissão. Já teve épocas que eu joguei lixo pela rua ou pela estrada e nem pensava em qual seria a consequência. Fui meio “mano” quando era adolescente.
Lembro de uma vez que tinha ido jogar fliperama do Dungeons & Dragons II Shadow of Mystara em fliperama, que só tinha no outro lado da cidade, no Shopping Matarazzo. E joguei uma latinha de refrigerante na rua. Um outro “mano” meu ficou indignado. O diálogo, que me recordo até hoje, foi mais ou menos assim:
–Ô mano, vai jogar latinha no chão, porra?
–Ah mano, não moro nesse bairro mesmo. Foda-se.
Olha que atitude mais acefálica. Anos depois desse acontecimento, tinha evoluído um pouco e já não tinha mais esse tipo de atitude. Não faço mais parte do grupo que joga latinhas fora do lixo.
No entanto, mesmo na vida adulta e madura, confesso que quando eu arremessava um papel em uma lixeira… e o vento atrapalhava minha pontaria de Michael Jordan, aconteceu de eu não voltar o meu percurso para pegar o papelzinho do chão. Como eu não fumo, não jogo bitucas de cigarro pelo caminho. Mas, se eu fumasse, acho que minha postura relaxada poderia perfeitamente me enquadrar no grupo das pessoas que contribuiu com as centenas de bitucas que eu recolhi ao longo da estrada.
Depois dessa experiência, posso dizer que tenho uma nova postura com relação a viver de forma educada e com respeito.
E no Brasil?
Não me estranharia encontrar alguns pessimistas e derrotistas soltando pérolas do tipo:
“Ih, deixa de ser sonhador. No Brasil isso não funciona. Madame não recolhe nem merda de cachorro, quem dirá de lixo no meio do mato.”
“Não vou limpar sujeira feita pelos outros. Tá faltando é educação pra esse povo imundo. Deviam responsabilizar as empresas que criam embalagens que não são biodegradáveis.”
“É o governo que tem que fazer isso, afinal de contas eu pago imposto pra quê? São todos corruptos, vamos colocar os políticos pra trabalhar. Se a gente começa a limpar, daí que o governo não faz nada mesmo.”
“Funcionou na Estônia porque é um país pequeno. O Brasil é muito grande pra fazer uma coisa dessa proporção.”
“Certeza que na véspera de uma limpeza coletiva no Brasil as indústrias vão jogar tudo no mato, já que sabem que vai aparecer otário para limpar.”
Será mesmo?
Fico muito feliz em ver que no Brasil temos uma iniciativa local e deixo aqui o convite para conhecer mais e ajudar a espalhar a mensagem: Limpa Brasil.
O projeto está caminhando bem e na primeira fase já será realizado em sete grandes cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Campinas e Guarulhos a partir do mês de junho de 2011. Se você pode ajudar a limpar o nosso país em uma dessas regiões, aqui vai o link de cadastro.
Vamos mostrar que a gente consegue fazer acontecer. Apenas a experiência adquirida com a mobilização de cidadãos brasileiros por uma causa coletiva é um grande benefício, pois as redes de contatos e cultura criada com essa iniciativa poderão fomentar muitas outras iniciativas para o bem coletivo no futuro.
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