“Carrego uma angustia: como se defender de uma injustiça sem se fazer de vítima?
O problema aqui é a dimensão subjetiva da injustiça. Nos degladiamos com as grandes injustiças da humanidade e nos esquecemos muitas vezes das injustiças cotidianas.
Quando se trata de relações pessoais, não há nenhuma lei regulando o que é justo. Parece não haver um fiel da balança capaz de equilibrar duas pessoas.
Particularmente, eu me sinto constantemente injustiçado quando me dedico no trabalho e acabo sendo criticado; me sinto injustiçado quando sou solidário com um amigo, e quando preciso, ele está ocupado demais com seus próprios problemas. Este sentimento de estar sendo injustiçado surge de um excesso de expectativa quanto à reciprocidade alheia.
Esta virtude está cada vez mais escassa na sociedade, todavia, é fundamental para garantir que exista um mínimo justiça nas relações pessoais. O dilema do justiceiro é: como tratar dessas injustiças no dia-a-dia sem se fazer de vítima ou acabar retribuindo a injustiça?
Muitas vezes a defesa contra a injustiça acaba sendo a vingança, criando um ciclo vicioso. Como buscar um equilíbrio nas relações pessoais sem se colocar numa posição de inferioridade ou de coitadinho? Se fazer de vítima parece diminuir o valor daquilo que estamos buscando. A vítima da injustiça acaba sendo vista com pena e com o tempo vai aceitando a condição de injustiçado, perdendo sua honra e sua auto-estima.
O meu medo da injustiça me torna uma pessoa passiva, sem reação.
Visto diariamente minha armadura de cavaleiro andante e quando vou me defender de qualquer injustiça acabo caindo na condição de vítima. Por vezes me sinto até individualista por tentar me defender de injustiças.
No fim, acabo me sentindo duplamente culpado pelas críticas que recebo e por não conseguir fazer justiça. Entender melhor a relação entre culpa e justiça acho que é um grande desafio pessoal.
Seja para me julgar ou para me ajudar, aguardo uma resposta.
Dom Quixote”
Querido Dom Quixote,
Sua dor é muito compreensível e comum. Muitas pessoas sofrem cedo o peso das injustiças do mundo e passam a acreditar que, se levarem uma vida moralmente boa, deveriam ser recompensadas com consequências positivas.
É a velha ideia de que os bons serão recompensados pelas suas boas ações e os maus serão punidos.
Muitas pessoas que adotam para si causas ou militâncias, seja sociais ou religiosas, se sentem da mesma maneira. Passam a vida inteira com uma bandeira na mão lutando por uma causa, mas muitas vezes perdendo o equilíbrio na maneira prática de se relacionar com os outros.
Essa premissa dos “bons recompensados e os maus punidos” é bem útil num processo de pedagogia moral para pessoas que não conseguem pensar eticamente sem usar ainda o egocentrismo como base de raciocínio. Elas ainda não conseguem agir bem sem a esperança da recompensa. Precisam da contrapartida para seguir agindo corretamente.
Pessoas mais maduras conseguem superar essa ideia de reciprocidade e agem bem porque escolheram agir assim, independente da reciprocidade ou do que fizerem em retorno. Mas entendo que, para desenvolver essa mentalidade, é necessária muita sofisticação emocional, que só se consegue com treino e mudança de paradigma pessoal.
Seu senso de bem agir parece ainda necessitar dessa ideia de receber algo de volta e daí surge o seu sofrimento constante. E quando diz que a virtude da reciprocidade está escassa hoje em dia, eu lembraria você que ela nunca esteve em alta. Nunca. Apenas está sendo mais divulgada.
Sentimentos infantis
O justiceiro quer fazer cumprir uma visão idealizada e utópica da vida, de que ela é essencialmente justa e conciliadora. Isso pode parecer incrível em muitos sentidos, e lutar por isso é certamente algo digno, mas se isso afeta seu senso de convivência com as pessoas, a obsessão pela justiça pode se transformar num problema para conviver com as outras pessoas – que também são vítimas e agentes de injustiça.
Deixe-me contar um segredo doloroso, mas libertador. A vida não é justa.
O problema surge quando você age como um paladino anônimo, brigando mentalmente com os demais e se irritando com cada contrariedade. Viver de forma madura é admitir que não seremos recompensados pelas causas que lutamos.
Pessoas boas e más morrerão, sem prorrogação ou melhores condições. Quem é bondoso deveria ser porque escolheu ser, mas não para ser poupado de uma morte trágica ou de uma vida cheia de privações.
Quando você trabalha direito, imagina que deveria ser poupado de críticas, mas pense bem comigo, sua competência não deveria blindá-lo de ser questionado ou criticado, afinal, o melhor ou o pior profissional estão passíveis do mesmo tipo de avaliação, sem privilégios.
O problema de querer ser bem tratado por ter tratado bem aos outros é que sua balança fica fazendo pequenos cálculos mentais para entender se sua “barrinha de energia” está cheia e a do outro vazia.
Isso é torturante!
Se você fez, você fez. Se agiu bem, agiu bem. A balança é você e não o outro. As pessoas que você critica agem sob o mesmo prisma que você, a diferença é que elas já partem do ponto que não estão sendo bem tratadas e, por isso, tratam mal.
Quem luta por uma causa justa faz alarde na hora certa e com quem tem que resolver (e nas instâncias devidas), e não no seu mundo secreto de controle mental.
Medo de deprimir
Quando alguém age corretamente esperando ser recompensando, parece que, no fundo, tem dois grandes temores: o primeiro é de começar a desacreditar na humanidade (por desapontar tantas vezes). O outro é, por consequência, se deprimir caso constate a própria descrença.
Essa necessidade de ter fé nas pessoas antes, para então ajudá-las, é parte de um ritual. É como se uma pessoa tivesse uma escassez de recursos e só doasse para uma pessoa mais “pobre” caso ela use de modo “correto”. É como se a humanidade precisasse merecer sua benevolência, agindo como você idealiza que ela deveria agir.
A ação que parte da escassez, sob condições específicas de bons modos, mede cada gota de doação.
Já a ação que parte da abundância, distribui porque há o bastante. Ou seja, uma doação legítima surge de alguém que está mais em paz com suas próprias necessidades. Você dá de si e se desobriga a ter que vigiar o outro.
Fica com raiva de tudo
A pessoa justiceira calcula matematicamente a reciprocidade e começa a se achar a paladina do bem mundial, privilegiada em seu escudo de bondade. Sem que perceba, começa a ter pequenos desapontamentos e decepções com as pessoas e, assim, ficar nervosa por cada passo mal dado dos outros.
É uma tortura, pois tudo é meio torto e desencaixado na vida. Se você ficar nervoso por cada coisa fora do lugar, você irá enlouquecer.
Você quer agir certo? Aja, mas não cobre retidão dos outros. Isso também vai liberá-lo da raiva decorrente de querer que os outros sejam compreensivos ou cooperadores com sua visão de mundo.
Conformidade madura e imatura
Pode parecer que meu texto caia para o conformismo passivo (na visão de um justiceiro engajado), como se não houvesse nada a ser feito ou que isso levaria à uma inevitável alienação, mas não é nada disso.
O problema de qualquer tentativa quixotesca de mudar o mundo é achar que o mundo deve mudar agora, do seu jeito e no seu ritmo, como se todos tivessem que se iluminar no mesmo compasso. Isso não vai acontecer.
Se você quer ajudar, seja ativo, mas tranquilo. Se quer fazer do mundo um lugar melhor, comece pelo seu quintal, sua rua, seu bairro, sua cidade. Use de empatia para entender que o outro criou seus conceitos baseado em premissas que você não concorda, mas que o ajudam a caminhar (de um jeito estranho à você) e que isso não o impede de seguir lado a lado com essa pessoa.
Descubra quais os limites entre o que você tem e não tem controle, para não se tornar apenas um panfletário chato, inconveniente e raivoso.
Há um magnetismo em quem olha para as grandes contradições da vida com brilho no olho e não está caçando aplausos pelo seu senso de justiça.
Abandonar o idealismo, para quem é muito obcecado pode, paradoxalmente, aproximá-lo do ideal que tanto busca.
Não é simples, não é fácil, nem há script, mas é preciso tentar, meu caro Dom Quixote.
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Nota: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não me condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
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