"Nos últimos meses tenho uma sensação estranha de que minha família se tornou um fardo que assumi e não consigo carregar. E não tenho estômago para dar as costas pra eles e tocar minha vida.
Me sinto um peixe fora d'água, não me conecto bem com meus pais, nem com meus irmãos, e sou o oposto do comportamento deles. Porém, se sair de casa, todas as despesas caem nas costas da minha mãe, que recebe pouco e não conseguiria sustentar a casa e não tenho coragem de fazer isso.
Isso me impede de investir em mim, progredir, evoluir e seguir meu caminho. Fico tentando fazer as duas coisas mas é como uma encruzilhada, onde tenho de escolher direita ou esquerda, mas resolvi rasgar no peito uma terceira estrada que não existe e tudo fica mais difícil.
Como lidar com essa situação?
– Blues"
Querido Blues,
Sua pergunta é tão importante, pois é a realidade de muitas pessoas no Brasil. Filhos que vivem como arrimo de família, mas ao mesmo tempo tem no seu núcleo íntimo pessoas com as quais não se afiniza ou confia.
Família é um negócio complicado. Chegamos ao mundo rendidos à ela e devotamos todo o nosso amor desmedido e ingênuo. Quase nunca vi crianças rechaçarem seus pais sem um motivo muito bizarro. O abuso emocional dentro da família é quase sempre invisível. Às vezes nem é um abuso de fato, daqueles que envolvem tortura física ou sexual.
O simples fato de termos uma família disfuncional do tipo instável, com figuras de personalidade forte ou dramáticas, que nos afogam ou desprezam o afeto já passa a ser abusiva o suficiente para crescermos com um grau acentuado de amargor.
E aí é que vem o problema. Desde os tempos imemoriáveis nos ensinaram a respeitar pai e mãe, mas ninguém foi específico sobre amá-los. Isso é algo que precisa de trabalho e cultivo. Outra coisa que não especificaram é que respeito pode ser manifestado de diferentes formas.
Quando alguém tem um filho, com exceção de pessoas mais tradicionais, raramente se pensa neles como algum tipo de previdência privada com a qual se vai sacar dinheiro lá pra frente. É verdade que isso pode ser a alegria de um filho que quer deixar os pais confortáveis. Mas seria a maior tristeza do mundo para um pai e uma mãe minimanente razoáveis ver o filho trancado no quarto por conta de suas incompetências na vida.
Os pais querem que os filhos voem, que conquistem os seus sonhos e, mesmo se isso implicar privações, ainda que reclamem, querem ver o filho transgredindo as "regras da sociedade". Amar os pais não quer dizer ser servil à eles ou pagador eterno de dívidas.
Para os pais endividados ou despreparados financeiramente é reservado um tipo extra de dificuldade. Como criar asas se eles chegarem à falência antes do vôo? Pode parecer estranho, mas os pais encontram outro jeito, as pessoas sempre encontram.
Há uma história que ouvi certa vez sobre uma família que tinha todas as suas economias apoiadas numa vaquinha. Tomavam leite, faziam queijo, trocavam seus insumos com os vizinhos e seguiam uma vida muito precária contando com a bendita vaca. Certo dia, receberam para pernoitar um monge e seu aprendiz. Tudo se passou tranquilamente se não fosse o aprendiz vendo o mestre empurrar a vaca penhasco abaixo. Ao amanhecer, despediram-se da família que estava transtornada. O jovem ficou muito perturbado, mas não questionou o mestre.
Anos mais tarde, retornaram àquelas regiões e passaram pelo mesmo sítio para pedir abrigo. O dono do sítio os recebeu, o jovem imaginou que agora ele era o empregado do novo dono, visto que a morte da vaca causou ruína para todos. O sítio estava mais novo e próspero. O dono contou que, realmente, a morte daquela vaca causou muita privação para toda a família, mas que eles descobriram um outro jeito de produzir recursos e que não poderiam mais depender de um produto só para sobreviver. Com isso se tornaram verdadeiros produtores.
Meter o pé na vaca pode ser uma saída difícil, mas auspiciosa, principalmente quando somos nós mesmos a vaca de alguém.
A culpa deve ser a sua companhia constante, certo, Blues? Mas lembre que a culpa é filha das regras que adotamos, e as regras são fruto de uma certa moral que adotamos emocionalmente. Se o guarda-chuva de regras no qual estamos pendurados for antiquado e conservador, podemos ficar amarrados ao pé da cama da infância, alegando amor cego aos pais. Mas se adotarmos uma perspectiva transcendente de que nossos pais, por mais dependentes que sejam, estão internamente amargurados com nossa infelicidade, então, podemos dar um passo ousado.
Eles provavelmente vão se queixar de ingratidão, mas depois de vê-lo voar e conquistar o seu espaço, eles podem se abrir para essa nova realidade. Não é fácil, não é aconchegante e você ouvirá muitas críticas, mas a verdade é que as pessoas sempre criticam os heróis antes do reconhecimento público. Depois que voltam vivos da guerra, eles viram mártires, mas antes eram traidores e loucos.
Amor também é traição e, principalmente no caso dos pais, romper é uma forma de renascer para si mesmo. E é isso que no fundo eles querem.
* * *
Convite: Nos dias 20 e 21 de outubro vou realizar um Workshop sobre "Maturidade Emocional" se você quiser conhecer esse trabalho é só clicar aqui.
* * *
Daqui a 15 dias, o próximo tema vai ser: "Me preocupo muito com o que pensam de mim".
* * *
Nota da edição: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.
Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para id@papodehomem.com.br. A casa agradece.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.