“Não tem choro nem vela”.
A primeira vez em que Marcos ouviu a expressão favorita de seu pai, ele sequer havia balbuciado a primeira palavra. Fosse uns anos mais velho, a resposta não mudaria muito: a única manifestação que era aceita pelo velho era um aceno de cabeça silencioso, daqueles que só se vê quando um erro é admitido.
Para um perfeccionista, como Seu Atílio, encarar de frente o menino que trocava o verde pelo vermelho, não conseguia sequer aprender a ler as horas e tropeçava assim que avistava uma bola de futebol sempre fora um problema. Até por isso, o silêncio sempre fora a verdadeira casa de Marcos, dentro e fora da edícula de dois quartos que ele, os dois irmãos e o pai viúvo ocupavam na cidade baixa de Salvador.
Ainda criança, o menino encontrara um sonhado refúgio nas folhas de papel. Ainda embaralhava as letras, mas se sentia calmo quando conseguir desenhar nas últimas folhas do caderno enquanto a professora não estava de olho. A cada noite, desde que se lembrava, Marcos fazia questão de dormir cedo. Olhava para o teto imaginando um mundo mais colorido que o seu e não gostava muito de refletir sobre isso, mas sabia que, no fundo, era para ver se amanhã chegava logo.
Não foi na primeira infância, nem na adolescência. Nem naquela segunda que prometia, na quarta em que quase tomou coragem ou no outubro seguinte, mas esse dia chegou.
Já trabalhava há três anos no escritório de contabilidade do pai quando deixou que sua pasta de desenhos, escondida dentro de um livro da faculdade, escorregasse de dentro da mochila. De tão intenso, o acesso de raiva de Atílio parecia estar guardado desde a tarde em que jogara as canetinhas coloridas do filho descarga abaixo nos tempos da 1ª série. A diferença foi que, desta vez, o sermão que o pai lhe passava na frente dos outros sete funcionários encontrou o vazio. Marcos levantou-se, pegou a mochila e saiu, de uma só vez, da saleta com ar-condicionado no bairro da Ribeira.
Passaram-se 13 anos até que Marcos voltasse a se postar nos degraus à porta do número 42 onde o pai morava, finalmente disposto a vê-lo. Com os braços rabiscados pelas mesmas ilustrações que agora era pago para fazer nos outros, ele só foi entender o preço que o pai pagara pela perda da esposa no parto que o fez nascer quando uma ex-namorada bateu à porta de sua casa, seis meses antes, com o pequeno Joaquim.
A dureza do velho patriarca não significava que era incapaz de amar o terceiro filho. Só queria dizer que ele não sentia que havia comprado o ingresso para a partida que as circunstâncias o obrigaram a jogar.
O dedo tremeu, mas a campainha soou dentro da casa.
Atílio, ainda meio sonolento após o aniversário de 70 anos na noite anterior, foi à porta de samba-canção e pés descalços. Ao encarar o filho e o garotinho magricela que segurava um bolo diante de si, ouviu antes de amassá-los em um abraço apertado que há muito não distribuía:
– Fala pro vovô o que papai acabou de te ensinar: “Hoje tem choro. E vela”.
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