Faz um tempo que estou querendo falar sobre isso. Para a maioria das pessoas nem é algo sério, é apenas uma característica de personalidade. Só que pra mim já passou um pouco dessa linha, é um comportamento nocivo e que costuma prejudicar muita gente por aí.

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Hoje mais cedo eu estava passeando pelo LinkedIn quando me deparei com um post que, assim como vários outros que existem por lá, fazem pouco caso da população em geral.

O post foi esse:

Entendo que, para quem está desempregado e busca um posicionamento no mercado de trabalho, começar o ano trabalhando seria um grande presente de natal. Mas você e eu sabemos que não é a estes casos que o post está se referindo. O comentário fala sobre a pessoa comum, aquele que quer simplesmente descansar um pouco mais.

Antes de começar a explicar o tamanho da cegueira que vejo numa situação como estas, preciso falar um pouco sobre mim.

Eu sou escritor. É, tenho o privilégio de ganhar a vida escrevendo. Passei 10 anos trabalhando como analista de sistemas, até o dia que eu decidi pedir as contas e seguir a vida de outro modo.

Hoje, depois de muitas voltas, trabalho fazendo a coisa que mais gosto. Parece até brincadeira pensar, mas meu ganha-pão é a mesma coisa que, nos meus poucos momentos de folga, faço também como hobby—inclusive, estou escrevendo este texto duas da manhã.

Meu emprego principal é como produtor de conteúdo numa empresa de tecnologia. A empresa, apesar do grande nome que já conquistou, é pequena, somamos umas 15 pessoas.

Os 3 sócios que são meus chefes — palavra que no LinkedIn seria substituída por gestor ou líder — são muito próximos e dispostos a ouvir as necessidades do time. E, posso falar de peito aberto, é raro não atenderem algum pedido.

De uma forma como nunca vi funcionar em outra empresa, temos um modelo bem horizontalizado e que flui muito bem. Todo mundo sabe das suas responsabilidades e se esforça pra entregar os resultados planejados.

O clima por lá é de gente tirando leite de pedra, sabe? É de dar orgulho.

Mas o meu trabalho é escrever. Faço isso com uma alegria que é até difícil de descrever sem parecer esses posts que acho tão clichês. É sério, gosto mesmo do que eu faço.

Eu gosto tanto de escrever que, se deixar, estou entregando material no meio da madrugada.

Além desse emprego, sou colunista no Papo de Homem, faço trabalhos de comunicação empresarial como freelancer e tenho vários outros projetos pessoais. Além do meu trabalho de expediente completo, faço um monte de coisas por fora, tudo porque gosto — e às vezes preciso, a grana fica curta de vez em quando.

Contando que treino levantamento de peso na hora do almoço, leio todos os dias, às vezes saio para jantar com a namorada e jogo vídeo game antes de dormir — lá pelas 3 da manhã — costumo produzir mais ou menos umas 14 horas por dia.

É, eu durmo pouco.

Tudo o que falei seria de encher os olhos de gente que celebra o trabalho duro como símbolo de superioridade moral, mas não estou aqui pra isso. 

A real é que eu mal posso esperar para minhas férias chegarem.

Estou tão cansado deste ano, que tenho pensado em procurar um médico para me receitar algo que ajude a chegar até o fim de dezembro.

Sinto saudade de sentar com a namorada e ficar vendo série o dia todo; passear pela praia sem pensar na organização de 5 textos diferentes; ou simplesmente andar de skate pela rua, sentindo o calor do sol na pele.

Quero assistir o Star Wars novo no cinema, quero terminar de ler Graça Infinita, do David Foster Wallace — já viu o tamanho daquilo? — e fazer um monte de outras coisas que eu também gosto muito.

Não é porque eu gosto do meu trabalho, que preciso fazer só isso da minha vida.

Este foi um ano difícil para a maioria das pessoas que moram nesse país. E longe de querer entrar na competição de quem tem a vida mais difícil. O fato geral é que, para quem era fácil ficou difícil, para quem era difícil ficou quase impossível.

Está todo mundo sentindo as mudanças. Estar cansado e querer descansar, nem de longe deve ser visto como um demérito. Criticar estes, no entanto, denuncia um grave desvio de prioridades.

Usei minha vida como exemplo para demonstrar que sentir vontade de tirar um tempo e aliviar a tensão nem de longe significa desgostar do que faz.

E a maioria das pessoas neste país, aqueles que precisam trabalhar em coisas que não gostam, possuem ainda menos motivos para se envergonhar de abraçar tamanho cansaço.

Sabemos que é ainda mais difícil seguir trabalhando em algo que não enxergamos valor, simplesmente porque existe uma pilha de boletos esperando no fim do mês. Na vida real, longe das fantasias de quem quer chamar atenção no LinkedIn, é assim que a maior parte do mundo vive.

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E eu sei que essa é a hora que você vai dizer que é uma questão de escolha, que basta se esforçar que você muda isso. Mas se você pensa assim, não consegue nem imaginar de fato como é a vida das pessoas.

Tem gente que tem filhos, que já está com dívidas porque perdeu o emprego e está se recuperando agora. É gente que numa sequência de anos em crise, onde o desemprego subiu pra todo mundo e os preços foram às alturas, não pode se dar ao luxo de arriscar e deixar a família passando dificuldade.

Cada um tem uma realidade. Alguns podem mudar? Maravilha, mas pegar exceções e tentar transformar em regra é um erro grave. Mas eu sei, é muito fácil jogar a carta da escolha lá de cima do palanque.

Eu entendo que ter gosto por trabalho e vontade de realizar coisas grandes é um princípio social valioso e deve ser estimulado. Como sociedade, ter pessoas dispostas a colaborar é importante.

Mas existe um problema nisso tudo. Se sua maior prioridade é trabalhar, existe, sim, algo de errado. Se dinheiro — pelo dinheiro — é seu maior objetivo, talvez devesse pensar um pouco a forma que enxerga a vida.

Dinheiro é, de fato, o meio moderno que possibilita a maior parte das coisas. É como pagamos contas, compramos o que precisamos e realizamos nossos desejos. Trabalhar é importante, sendo em muitos casos fator determinante para a qualidade de vida. Nos sentimos bem ao cooperar em comunidade, nos dá senso de grupo e propósito para viver, mas existe um limite para isso.

Uma publicação médica investigou alguns riscos do excesso de trabalho entre mais de 600 mil indivíduos ao longo de 8 anos; comparando riscos à saúde entre pessoas que trabalhavam 35~40 horas semanais e outros que tinham uma rotina de 55 ou mais horas.

Segundo o estudo, trabalhar mais horas semanais aumentou em 13% o risco de doenças cardiovasculares e 33% o risco de derrames quando comparado ao grupo de pessoas que trabalham entre 35~40 horas — uma semana comum de trabalho.

O estudo ainda demonstra que entre condição econômica, fumar, peso, idade e gênero, apenas a rotina de trabalho acima de 55 horas semanais apresentou-se como fator no aumento do risco à saúde dos investigados.

Mas podemos também observar outro número interessante: em 6 anos o aumento no consumo de antidepressivos cresceu 74% e uso de remédios para ansiedade, no mesmo período, saltou para 110%.

Não é uma analogia barata dizer que estamos nos matando de trabalhar, é o que os estudos demonstram.

Para quem trabalha, a preocupação com descanso e tempo livre está longe de ser preguiça. Saber a hora de parar é, acima de tudo, uma preocupação com a saúde.

Mas existem também outros bons motivos para querer um dia a mais de descanso. Se para você trabalhar é mais importante do que curtir a infância dos seus filhos, suspeito que exista algo errado. Se alguém realmente prefere ficar no escritório, sob luzes artificiais e café espresso amargo, ao invés de dividir uma refeição com a pessoa que ama, talvez seja necessário investigar melhor algumas prioridades.

É claro que existem pessoas sozinhas e que acabam apoiando-se no trabalho como fuga para a solidão. Ainda nestes casos, exigir que outras pessoas façam o mesmo está longe de fazer sentido.

E não estou atentando contra os ambiciosos, os que querem ficar ricos e concentrar riquezas. Entendo que são objetivos importantes para quem os têm, mas é preciso entender muito bem o que está sendo sacrificado por isso.

O que mais me incomoda em todo esse discurso de LinkedIn é saber que é tudo pura sinalização de virtude, uma tentativa de expressar superioridade moral com único objetivo de destacar-se socialmente através de um — suposto— mérito.

É o mesmo mecanismo que faz a maioria das pessoas usarem fotos de terno no perfil, postarem histórias de como foram fortes e venceram adversidades, e que faz, assim como a publicação que inspirou este texto, pessoas desdenharem do cansaço e do trabalho alheio.

A desculpa para esse comportamento sempre vem revestido de boa intenção. É dar inspiração, motivar e incentivar mudanças. Mas lendo com cuidado a publicação lá do início, é fácil notar que dificilmente existe contexto positivo para o comentário.

O que vemos é o puro sentimento que diz:

“Ei, me olhem, quero mostrar como eu sou melhor que todos os outros”

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Nota: este artigo foi originalmente publicado no Medium do autor.

Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no <a>Mnenyie</a>