Essa é uma pergunta que paramos de nos fazer nas últimas décadas. Dessa forma, acabamos simplesmente aceitando que as empresas existem para servir a economia e não às pessoas. Dinheiro é uma linguagem que media as relações humanas e organiza o sistema que inventamos chamado capitalismo.

Porém, em um determinado momento, o dinheiro virou o fim em si e aqueles mais sucedidos neste sistema passaram a endeusar a acumulação de capital. Desviamos do curso original e entramos num caminho escuro, denso, difícil para a grande maioria dos 7 bilhões de habitantes do  planeta. O que aconteceu?

Na história da humanidade, riqueza e prosperidade nunca foram um problema, pelo contrário, são combustíveis de evolução. Nos últimos 50 anos, a expectativa de vida mundial aumentou de 64 para 70 anos. A mortalidade infantil na África Subsaariana ainda é muito alta, mas em 2008 já havia caído para um terço da mesma taxa em Liverpool no ano 1870, no começo da revolução industrial. O número de mortes por falta de acesso à água tratada caiu de 1,5 para cada 1000 pessoas em países em desenvolvimento em 1950 para 0,4 hoje. A taxa de analfabetismo caiu de 70% da população mundial em 1900 para cerca de 23% agora. Em 1900, apenas 15% do total das pessoas que trabalhavam eram mulheres. Hoje, este número é de 40% e segue aumentando. Qualquer pessoa que quiser defender as melhoras da humanidade graças ao desenvolvimento econômico tem material de sobra para isso. Mas fica a pergunta: isso é suficiente?

Por que não avançamos mais rapidamente nas melhores de condições de vida? Não podemos admitir o conforto mental ao olhar para estes números e achar que estamos indo bem.

Sim, estamos melhorando, mas ainda temos problemas que não podemos deixar de lado, como deixa clara a pesquisa Scorecard for Humanity. Por exemplo, mesmo com os avanços da medicina de hoje, 6 milhões de crianças ainda morrem antes de completar 5 anos de vida (a maioria destas crianças em países africanos ou asiáticos). Em função da atividade humana, supõe-se que a taxa de velocidade de extinção de espécies agora é de 100 a 1000 vezes maior do que os períodos geológicos da Terra. E apesar de serem quase 40% do total dos trabalhadores no mundo, as mulheres recebem apenas 60% do salário dos homens.

Olhar para todo esse progresso apenas para celebrá-lo me faz lembrar a história de um menino pequeno que capturou uma aranha e na sua exploração curiosa arrancou uma perna do animal. Ao ser questionado, respondeu.

—Mas qual o problema, ela ainda tem mais 7 pernas?

É um pouco como estamos vivendo: tentando relativizar a nossa incapacidade de cuidar do todo para esconder nossa culpa em um mundo de sensações, prazeres e distrações eletrônicas de todos os tipos.

De novo: por que chegamos a este ponto? Vivemos em uma cultura individualista e narcisista que desviou a sensação de paz interior para paz exterior. A sociedade de consumo quase nos obriga a “comprar coisas que não precisamos com o dinheiro que não temos para impressionar a quem não gostamos”, como diz a frase que circula pela internet.

O estímulo ao consumo remodelou o modo de produção aceleradamente nas últimas décadas. Em busca de margens maiores, muitas empresas terceirizaram a produção para outros países, com mão de obra muito mais barata em função de más condições de trabalho. Hoje se pode comprar camisetas em grandes lojas de moda por valores abaixo de 5 dólares. É extremamente barato. Mas você já se perguntou quem está pagando o verdadeiro preço?

Enquanto milhares de pessoas sofrem em regime de quase escravidão no Qatar, em 2022, o que pode ser considerado o maior "pão e circo" do planeta vai ter seu grande espetáculo no mundo árabe. A Copa do Mundo de Futebol gira uma indústria que cria oportunidades de desenvolvimento por meio de esporte, mas concentra lucros cada vez maiores para poucos dirigentes que brilham vestindo gravatas de seda e ternos lustrosos na televisão. Na tela que chega a milhões de lares e estabelecimentos ao redor do mundo.

A definição de sucesso no mundo de hoje está intimamente ligada à fama. As referências individuais estão cada vez mais deslocadas para personalidades como atores e esportistas que não raro são menores do que sua própria fama e alimentam o individualismo e narcisismo em um mundo que precisa cada vez mais de coletividade e menos ego.

E no ambiente dos negócios, que é o nosso ponto aqui, os empresários considerados bem-sucedidos são em geral apenas aqueles que acumularam fortunas. Ter recompensa em forma de capital não é o problema em si, mas a pressão social para chegar lá talvez seja.

Os deuses do Olimpo do capital são aqueles que ganharam no jogo dos negócios, independente de como tenham feito isso. Estou falando de executivos, que jogam com muita ganância e falta de ética, alguns até passando uma temporada na prisão, e mesmo assim estão sempre nas capas da revistas e jornais, garbosos e elegantes.

Mas tudo bem: são CEOs que geram resultados cada vez maiores para as empresas — mesmo que para isso não hesitem em explorar funcionários e fornecedores, pagar propinas ou espionar a concorrência. Em uma licença poética, são os "James Bonds" do mercado de capitais – têm licença para matar desde que entreguem resultados para os acionistas – seguidos pelo séquito de trabalhadores que também trabalham duramente para os acionistas, mesmo sem saber quem são.

Essa despersonalização das relações é a origem da desconexão entre o propósito de uma empresa existir e no que ela se tornou.

* * *

O ponto de partida

Na busca por respostas para a desconexão atual, é sempre bom olhar para o ponto de partida.

Em um texto importante do hinduísmo que data do século 3 ou 4 dC, o Skandapurana, há quatro conceitos que seriam os principais objetivos da vida. O primeiro deles, e que talvez preceda os outros de acordo com diferentes interpretações, é o Dharma, a manifestação da natureza primordial de um indivíduo em uma vida virtuosa, ética e moral. O segundo conceito é Kama, e tem a ver com o prazer, como viver aproveitando, curtindo esta existência. Moksha, o terceiro, é a busca pela liberação das causas de sofrimento do mundo que conhecemos. E há um quarto, que interessa diretamente aqui: Artha.

É uma palavra que pode ter diferentes significados, dependendo do contexto, como sentido, objetivo, propósito ou mesmo essência, dentro de uma visão ampla acolhendo “meios de vida”. Na sempre simplista tentativa de sintetizar, podemos interpretar como os recursos materiais que são necessários à sobrevivência.

E o quanto é necessário para a sobrevivência? Uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup com 1,7 milhão de pessoas em 146 países do mundo, descobriu que o indivíduo se considera satisfeito e pleno com um valor de 95 mil dólares anuais. Um dos autores do estudo disse à revista Fast Company no início de 2018 que o aumento dos níveis de felicidade tende a diminuir à medida que você ganha mais dinheiro. "Um aumento de 20 mil dólares de 30 mil para 50 mil vai fazer muito mais diferença do que se você ganhar mais 20 mil além dos 150 mil que já ganha", disse à revista Andrew Tebb.

Uma pesquisa da New Economics Foundation chegou à conclusão de que para viver bem, as pessoas precisam estar 1) conectadas a outras pessoas, 2) em constante atividade física, 3) ter um bom nível de curiosidade, 4) continuar aprendendo sempre e 5) doar algo para as pessoas, mesmo que seja apenas uma hora de conversa. Coisas simples do dia-a-dia. Nada no estudo falava em acumular coisas ou dinheiro.

Então, por que esta busca por lucros maiores e maiores, essa corrida para ter mais e mais coisas? Por que alimentamos um sistema que privilegia a busca incessante por lucro como uma tábua de salvação rumo à promessa de felicidade suprema? Por que palavras como produtividade, eficiência, agilidade e velocidade invadiram nossos vocabulários e moldaram nossas vidas sem nem percebermos?

Esse ensaio não é uma crítica ao ambiente e ao modo como vivemos. É uma reflexão sobre o quanto depositamos de esperanças e futuro e sobre a necessidade de buscar a inclusão e o pertencimento em coisas ou posses. E por que criamos vidas de individualidade isoladas em que moradores do mesmo andar em edifícios de grandes cidades não se conhecem, assim como há pouca relação entre os vizinhos?

De fato, hoje não precisamos da comunidade para suprir nossas necessidades. Está tudo à venda em um supermercado infinito de produtos e serviços. Em nossos primórdios como espécie nesta civilização, em algum momento desenvolvemos a possibilidade de nos conectarmos uns aos outros. Ao redor do fogo, um presente dos deuses para a humanidade já nos conta o mito de Prometeus, começamos a contar nossas primeiras histórias e criar laços de conexão e proximidade que geraram a possibilidade de nos unirmos em tribos. Em tribos, aumentamos nossa capacidade de enfrentar os perigos e com isso ampliar nossas chances de sobrevivência.

Os registros históricos mostram que essa organização em tribos nessa civilização nos ensinou a domesticar grãos por volta de 10 mil aC. Foi quando começamos a nos reunir em torno da comida, em vez de ter que ir atrás dela. Este foi o motivo da primeira explosão populacional da humanidade. Por volta de 6.500 aC, éramos 10 milhões de humanos.  No ano 25 dC, o Império Romano chegou a ter quase 60 milhões de pessoas. Havia mais pessoas para dar conta da produção de comida e também cada vez mais pessoas para consumir alimentos. Em função desse desafio de alimentar um número crescente de bocas, começou a busca por produtividade na Idade Média – já naquela época. Os seres humanos começaram a se unir em torno de fazendas. Grandes proprietários de terra já controlavam terras e também seus trabalhadores, começando o que é chamado de capitalismo agrário e o longo movimento de concentração de riqueza.

Buscando mais produtividade, o mercado de trabalho começou a emergir junto com a competição por melhores métodos e lucros. No início do século XVII, Londres era uma cidade grande comparada a outras, servida por um bom sistema de estradas, alimentando um grande mercado interno de mercadorias. Então veio o mercantilismo, com mercadores explorando terras estrangeiras, procurando mercadorias para trocar por lucros e buscando retorno sobre o investimento. Essa é considerada a base para a origem do capitalismo moderno.

Na sequência, veio a Revolução Industrial. Foi quando os altos lucros começaram a surgir, acelerando um processo de concentração de renda que teve início na revolução agrária. Novas empresas, empreendimentos e negócios de todos os tipos proporcionaram a expansão da riqueza.

As empresas começaram a florescer com base nas necessidades das pessoas e uma série de líderes industriais começou a gerar muitos empregos. O capitalismo, como dito acima, proporcionou um aumento sem precedente dos padrões de qualidade de vida no mundo, com melhorias na saúde e educação das pessoas e muito mais oportunidades de desenvolvimento.

* * *

Onde há luz, há também sombra

O rápido crescimento do capitalismo trouxe consigo uma série de questionamentos. As críticas ao capital já aconteciam antes mesmo de o capitalismo se configurar. Há um afresco pintado em 1304 por Giotto mostrando Jesus expulsando mercadores e trocadores de dinheiro que estavam transformando o templo de Jerusalém em um balcão de negócios, ou um “antro de ladrões”, segundo o Novo Testamento.

Em 1776, já com a Revolução Industrial em curso, Adam Smith escreveu “A Riqueza das Nações”. Além da famosa citação: "Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses."

Um pensamento chama a atenção na obra-prima de Smith. Ele disse que "a violência não é um incentivo ao trabalhador e o custo de comprar e manter escravos excede em muito o custo dos salários. Os capitalistas ganharão muito mais dinheiro tratando seus trabalhadores de forma legal e humana."

Já nesta época se podia imaginar os chefes gritando e açoitando escravos para produzirem mais, enquanto Smith começava a defender a ideia de que a retenção de trabalhadores funcionaria se eles fossem bem tratados. Passado tanto tempo, é surpreendente ver como temos muito que aprender sobre isso ainda.

Voltando ao breve passeio pela história do capitalismo, em 1854, a economia inglesa era a maior do mundo. Muitos empreendedores e “capitalistas” acumularam rapidamente fortunas consideráveis, uma espécie de explosão de riqueza. Naquele ano, Charles Dickens publicou o romance Hard Times, uma ficção que se passa na cidade de Coketown (em referência a Manchester, o principal pólo industrial do período), e atacava "capitalistas sem coração".

Poucos anos depois, John Ruskin, publica “Unto the Last”, um ataque frontal ao capitalismo, tanto no lado da produção quando na área do consumo. Ele colocou uma pergunta-chave: “Em nome do quê?” No livro, Ruskin chamava a atenção para o fato de que grandes fortunas capitalistas eram construídas com a venda de coisas absurdas: bugigangas, pratos chiques, guardanapos bordados, aparadores esculpidos. Alguma coincidência com os tempos atuais?

“Todo o sofrimento das fábricas de algodão de Manchester está sendo alimentado pelo nosso apetite por camisas muito baratas, com colares delicados”, escreveu. Na visão de Ruskin, o dinheiro não só deve ser feito moralmente, mas também deve ser gasto moralmente nas coisas verdadeiramente nobres e belas que os humanos precisam. Gandhi foi muito influenciado por Unto the Last e até disse que mudou sua vida — tão inspirado que estava.

Dando um salto no tempo, vamos para 1999, em Seattle. Naquele ano, havia uma grande reunião da Organização Mundial do Comércio. O que não se esperava é que a ordem de reuniões em salas fechadas com ar-condicionado e cadeiras confortáveis seria desfeita com milhares de manifestantes que se reuniram para pedir o fim das desigualdades do capitalismo global. Eles tinham uma série de queixas elencadas.

Aquela manifestação foi marcante, porque deixou claro que os vencedores no capitalismo são apenas uma pequena porção comparados àqueles que estão insatisfeitos e de alguma forma concordam com Jesus, Dickens, Ruskin e Gandhi.

Um exemplo mais recente ainda dos dilemas atuais vem da maior corporação do mundo, a Apple, que enfrentou as acusações de ser indiretamente responsável pelo sofrimento e abuso de muitas pessoas em sua cadeia de fornecimento.

Em 2015, casos de suicídio na fábrica da Foxconn, na China, a principal fornecedora para a Apple produzir iPhones, chamaram a atenção do mundo. Foram tantos casos (18 pessoas tentaram se matar e 14 conseguiram), que a fabricante teve que colocar redes ao lado do prédio para evitar que as pessoas continuassem buscando a solução extrema de tirar a própria vida.

Apesar de todos os avanços, é preocupante ver que a expectativa de vida está caindo em um dos países que é o principal ícone do capitalismo: os Estados Unidos. O relatório dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) americano publicado em 21 de dezembro mostrou que a expectativa de vida naquele país caiu em 2016, pelo segundo ano consecutivo. Um bebê americano nascido em 2016 pode esperar viver em média 78,6 anos, abaixo dos 78,9 em 2014. A última vez que a expectativa de vida foi menor do que no ano anterior foi em 1993. A última vez que caiu por dois anos consecutivos foi na década de 60. Depois de problemas de coração e câncer, a terceira causa são injúrias não-intencionais, que inclui overdose por uso de drogas. Mais de 63 mil estadunidenses morreram por essa causa em 2017. É mais do que as mortes de militares dos EUA na Guerra do Vietnã.

* * *

As falhas do capitalismo

No vídeo de "The School of Life" sobre “Capitalismo”, disponível na internet, há uma reflexão importante.

Apesar de ser incrivelmente produtivo, o sistema capitalista tem duas grandes falhas:

1. Ele sistematicamente se inclina a ignorar o sofrimento dos trabalhadores, a menos que seja regularmente incitado a não fazê-lo.

2. A riqueza das empresas é muitas vezes construída para satisfazer coisas que não são necessidades essenciais dos seres humanos.

Sofrimento de um lado para atender desejos supérfluos do outro. É uma conta que não fecha, que alimenta uma espécie de roda de hamster. Os trabalhadores estão presas nelas, correndo de um lado para o outro.  Pessoas “bem-sucedidas” não raro tomam antidepressivos, depois de criar sua própria doença regada a estresse e então procuram maneiras caras de curá-la, como viajar para lugares remotos para se reconectarem.

Estes são os tempos sombrios das corporações, a face mais conhecida do capitalismo. Como nós olhamos para os tempos medievais e vemos a Igreja criando todos os meios para manter seu poder, as corporações estão fazendo o mesmo hoje. Muitos casos de corrupção, suborno, más práticas.

Em 2004, escrevi para a ONG Endeavor um livro sobre empreendedorismo no Brasil: "Como fazer uma empresa dar certo em um país incerto". Falei com 25 dos empresários mais bem sucedidos do país, além de 26 empreendedores apoiados pela ONG (apenas uma mulher entre os 51 entrevistados). Coloquei a mesma pergunta ao final de cada entrevista: do que você mais se arrepende? Uma grande parte das pessoas entrevistadas disse — lamentando com voz grave — que sentia falta de terem visto seus filhos crescer.

A definição de sucesso que vemos nas revistas, jornais e TVs é de líderes que trabalham muito, que dedicam suas vidas às corporações despersonalizadas, girando a roda do capitalismo. E estes líderes estereotipados, com agenda extremamente ocupada, pressionados por resultados e por status, vivendo uma existência despersonalizada com sobrenome de empresa ("João, da empresa tal"), estão trabalhando para criar as armadilhas em que nos enfiamos.

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Nós nos tornamos escravos da capital. Agindo como fantoches entregando melhores resultados trimestrais, trabalhadores viraram robôs. Viramos robôs sem senso crítico, sem perceber que nossa vida está se esvaindo em uma esperança de acumulação que nunca vai se concretizar. “O verdadeiro pensar exige independência. Poder e dinheiro – por mais paradoxal que possa soar – são apenas limitações dessa liberdade”, disse o filósofo Baruch Spinoza.

Há poucos anos, Jonathan Franzen capturou este dilema contemporâneo na frase de um personagem do livro Pureza: ”Ele estava tão hipnotizado por privilégios e auto-estima que não percebeu que era apenas o instrumento de outra pessoa".

* * *

Depois da noite escura, sempre vem o amanhecer

Acredito que este mundo de ganância e cegueira esteja à beira de mudar.

Temos que desconectar o sistema que criamos. Ou vamos nos afundar em plástico e lixo. Na verdade, não temos escolha. Precisamos lembrar de nossa humanidade. Afinal, as pessoas não são robôs cumprindo ordens ou agindo como fantoches corporativos. Ou não deveriam ser. As pessoas têm medos, necessidades, desejos… Têm filhos que também adoecem!

A boa notícia é que existem novas referências espalhadas pelo mundo. São as pessoas que identifico como Humanos de Negócios — líderes que precisamos para o futuro de um capitalismo com alma, consciente. Menos predador. Mais humano.

Comecei este projeto para colocar luz em seres humanos espetaculares que estão resgatando o espírito das empresas, as próprias razões que nasceram: para servir às pessoas e não ao capital. Ao longo de minha carreira em redações de jornais e revistas e grandes corporações, trabalhei em locais muito competitivos, onde os resultados são a principal força motriz. Senti bem a pressão das corporações, mas nunca perdi o olhar para aquelas pessoas que estavam trabalhando com amor e paixão para mudar para melhor o lugar onde estavam.

Tive a sorte de conhecer algumas pessoas com este perfil também mais recentemente, trabalhando com clientes e parceiros na agência de relações públicas que fundei em 2013 com sócios para contar apenas histórias que inspiram a evolução. Compartilho aqui algumas destas histórias que estarão presentes no livro Humanos de Negócios (com exceção de Yvon Chouinard, cuja entrevista está em negociação).

A primeira história me faz lembrar a obra-prima de Shakespeare “O Mercador de Veneza. Ela retrata um agiota cheio de ganância que é punido no final. Historicamente, a prática de cobrar juros altos é considerada imoral por muitos autores clássicos, como Dante, Dickens e Dostoiévski, entre outros romancistas modernos e populares. No início do ano 2000, o Banco Real começou a resgatar o propósito de um banco: ajudar a desenvolver a sociedade. Liderado por Fabio Barbosa, o Banco Real tomou algumas atitudes marcantes: cortou as linhas para financiar empresas que derrubam ilegalmente árvores na Amazônia, abrindo mão de milhões de dólares em empréstimos.

O banco começou a rastrear práticas de parceiros e ambientais de grandes empresas antes de emprestar dinheiro. Isso causou uma grande mudança nessas práticas no sistema financeiro brasileiro, contribuindo para diminuir a taxa de desmatamento na Amazônia. Por isso, entre outras iniciativas, como o microcrédito e os pioneiros fundos de investimento socialmente responsáveis, Barbosa foi premiado com os Campeões da Terra, maior honra ambiental da ONU. Ele costuma dizer que é preciso "dar certo, fazendo as coisas certas, do jeito certo".

Trabalhei no Banco Real por oito anos ajudando a contar a história dessa transformação e movimento. Fiquei muito impressionado com os laços que foram criados em uma empresa onde os meios e os fins são tão importantes como alcançar resultados. E também descobri o quando isso foi poderoso para os resultados financeiros e para a marca. Durante esta jornada, o valor de mercado do Banco Real subiu 5,5 vezes entre 1998 (quando o ABN AMRO o comprou) e 2008 (quando o Banco Santander o adquiriu).

A segunda história também é do início dos anos 2000, quando a empresa de cosméticos Natura começou a criar valor com uma linha de produtos chamada Ekos, desenvolvendo sabonetes, xampus e cremes hidratantes com a ajuda de comunidades amazônicas. Isso ajuda a criar valor para manter as árvores em pé, em vez de derrubá-las para vender madeira. Um dos fundadores da Natura e criador dos produtos Ekos chama-se Guilherme Leal. Ele tornou-se bilionário após a abertura de capital da Natura e depois disso passou também a investir seu tempo em iniciativas locais para promover o desenvolvimento na região Sul da Bahia, considerada pela Universidade de Columbia como uma das mais biodiversas do mundo. Recentemente, Leal e a Natura anunciaram a iniciativa de EP&L – Environmental Profit and Loss (Lucro & Prejuízo Ambiental) — para medir financeiramente o impacto de suas atividades para neutralizá-las.

Nas eleições de 2010, Leal concorreu à presidência do Brasil como vice na chapa de Marina Silva. Aprendeu que não queria ser político, mas que política é fundamental para construir uma sociedade com bases sólidas e mais oportunidades de desenvolvimento. Por isso, criou uma ONG chamada Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS), com o objetivo de desenvolver uma nova categoria de políticos no Brasil, alinhada à sustentabilidade e ao pensamento de longo prazo. Há mais de 20 anos, Leal também criou o Ethos, uma ONG de promoção de negócios éticos no Brasil, que teve grande impacto na governança das empresas do país.

Ele poderia estar apenas vivendo de seus rendimentos, sem maiores preocupações, mas está lutando duramente contra o status quo para provar que os negócios podem ser feitos de maneira ética e uniforme. "Não se trata de ser um bom mocinho,, mas existem muitas oportunidades de negócios alinhadas com o bem-estar da sociedade”, diz Guilherme. Ou seja, voltando à raiz de uma empresa existir.

O terceiro exemplo começa no final dos anos 50, quando o descendente francês Yvon Chouinard criou em Ventura, Califórnia, uma empresa chamada Patagonia. Ele começou a produzir equipamentos de escalada para si mesmo e amigos próximos porque não conseguia encontrar bons equipamentos de acordo com seus padrões. A empreitada deu certo e as pessoas pediram para comprar mais e mais e foi apenas o início de uma longa jornada de inovações no mundo dos negócios. Uma muito recente foi o lançamento do Yulex, um novo têxtil feito de plantas, para substituir o neoprene à base de petróleo usado na fabricação de roupas usadas para esportes aquáticos.

Chouinard escreveu um livro chamado "Let My People Go Surfing”, porque ele acredita que as pessoas devem praticar esportes ao ar livre sempre que as condições “lá fora” estiverem boas. Os trabalhadores podem fazer suas tarefas depois de desfrutar a natureza – quem disse que não!? Afinal, a razão de viver de uma pessoas definitivamente não é ser escrava do capital e moldar sua vida em torno disso. Mesmo que ele não quisesse ser um homem de negócios, Chouinard criou uma das empresas mais importantes inspirando a maneira de produzir mercadorias com risco mínimo para o meio ambiente.

Há quem diga que  a economia é o propósito e as pessoas os meios para manifestar este propósito. Porém, sem pessoas, não há economia nem capitalismo. Então as pessoas não estão lá para servir o capitalismo. O capitalismo existe para servir as pessoas.

Sobre isso, vale registra uma referência feita por Don Marcelo, um falecido líder dos Qeros, um povo indígena que vive nas alturas de Apu Ausangate, uma montanha sagrada perto de Cusco, no Peru. Certo dia, Don Marcelo estava prestando contas de uma doação que havia recebido de um grupo de pessoas que havia ido aprender um pouco da sua sabedoria ancestral, guardada desde antes de os espanhóis chegarem às Américas. Nesta ocasião, ele disse que o dinheiro deveria servir à liberdade e à felicidade. Quão sábias essas palavras são.

Como nos relacionamos com esta visão em nossa vida cotidiana em relação às empresas ou instituições para as quais trabalhamos? Liberdade e felicidade… O quanto estamos presos a modelos que foram criados e muitas vezes apenas seguimos sem questionar?

Nos anos 80, Ana Lucia Villela, aos 8 anos, perdeu seus pais em um acidente de avião. De repente, ela se tornou uma das pessoas mais capitalizadas do Brasil, pois seus pais eram acionistas do maior banco do Brasil, o Itaú. Depois de alguns anos, já no início da vida adulta, ela descobriu que um grande pedaço de terra da família estava ocupado irregularmente e havia se transformado em uma favela de cerca de 30 mil pessoas em São Paulo. Sua família queria expulsar todos via justiça e recuperar a terra. Ela, ao contrário, questionou.

Ana Lucia achou que era uma boa chance de desenvolvimento para essas pessoas e criou uma ONG chamada Alana para dar oportunidades e atender necessidades básicas da comunidade, como saneamento e energia elétrica. Ela acreditava que toda pessoa tem a oportunidade de desenvolver todo seu potencial e por isso criou uma escola para desenvolvê-las. Uma vez ela ouviu de um dos alunos lá na região ocupada: "contra quem eu deveria estar com raiva? Me disseram que se eu fosse para a escola eu aprenderia e me tornaria alguém. Eu fui. Mas até hoje eu não sei ler um artigo em jornal sobre economia. Então, eu devo ter raiva de quem?"

Alguns anos atrás, o Instituto Alana começou a produzir documentários contra o consumismo e a publicidade para crianças. Em 2016, lançou um documentário chamado “O começo da vida”, para aumentar a conscientização sobre a importância do desenvolvimento humano entre o nascimento e os 7 anos de idade. O documentário foi exibido pela Unicef ​​para dezenas de países no mesmo dia e reforçou a importância que deve ser dada ao desenvolvimento da humanidade em nossos primeiros anos de vida. Ana Lúcia dedica sua vida para desenvolver o potencial de seres humanos.

A indústria de moda deve ser a próxima fronteira de transformação. No Japão, Safia Minney fundou a People Tree, a primeira empresa de vestuário do mundo a garantir o comércio justo e a prática de produção preocupada com o meio ambiente em toda a cadeia de fornecimento. Ela iniciou a primeira cadeia de fornecimento de comércio justo e algodão orgânico há mais de 20 anos. A People Tree é a primeira empresa a certificar roupas feitas em países em desenvolvimento. A indústria têxtil é a segunda mais poluente do mundo, atrás apenas da indústria do petróleo, como mostra o documentário The True Cost, disponível gratuitamente na internet, em que Safia é uma das protagonistas.

O mundo consome cerca de 80 bilhões de novas peças de roupa todos os anos. Isso é 400% mais do que a quantidade que consumimos há apenas duas décadas. Para produzir essa quantidade de roupas, as pessoas ganham menos de um dólar por dia em lugares como o Paquistão e Bangladesh. Cada peça barata produzida por cadeias de fast fashion como Zara, Forever 21 e outras, às vezes compradas e nem usadas, causa poluição e sofrimento. Você já pensou sobre isso?

(Lembra a colocação de John Ruskin? “Todo o sofrimento das fábricas de algodão de Manchester está sendo alimentado pelo nosso apetite por camisas muito baratas, com colares delicados.” Continua muito atual)

Por que as pessoas deveriam ser exploradas e ter uma existência miserável para podermos usar roupas da última moda feitas com suor e sangue?

Sempre me pergunto se seremos conhecidos no futuro como os próximos senhores de escravos — algo perfeitamente aceito na sociedade do final do século 19, mas totalmente condenável hoje?

* * *

Podemos encontrar amor na relação entre pessoas e empresas?

Estas histórias listadas aqui e muitas outras que estão no livro mostram que sim. Que existe algo maior e mais importante do que a busca frenética pelo lucro. Existe humanidade.

Precisamos de mais dessas narrativas de amor e cuidado. Precisamos de mais Fabios, Guilhermes, Yvons, Anas Lúcias e Safias. Pessoas que empregam suas vidas para criar impacto positivo e ajudar a evoluir na aventura da vida. Precisamos recuperar um pouco o romantismo nos negócios. Precisamos acreditar que há mais na mesa do que dinheiro. Precisamos acreditar que os valores podem ser a força motriz para fazer as pessoas colocarem sua energia em algo maior do que elas. Algo que pode fazer a espécie humana prosperar, evoluir em termos de consciência e em paz com o planeta, nossa casa. Por que isso é tão difícil?

Tem a ver com o egoísmo?

Melhor esquecer a frase famosa de Milton Friedman: “O negócio dos negócios é o negócio”. Isso é tão ultrapassado e está na base do caminho que construímos nos últimos anos, levando-nos a um lugar onde o próprio negócio é o totem, a deidade a ser adorada.

Não!

O capitalismo selvagem é a manifestação do egoísmo. Porém, nosso caminho de evolução é para sairmos do egoísmo em direção ao altruísmo. Empresas como Natura, WholeFoods, Patagonia, PeopleTree, ONGs como o Instituto Alana e Doutores da Alegria, e movimentos como Capitalismo Consciente e Empresas B estão mostrando que isso é possível.

Para colocar ainda outra camada, há um despertar espiritual no mundo e isso está se refletindo nas empresas. Não se trata de religião no local de trabalho, trata-se da necessidade de se reconciliar com o aspecto humano das empresas. E da conexão com o planeta, a fonte de tudo que temos, um imenso organismo vivo. É o propósito de gerar benefícios com o trabalho diário. Com todas as suas fragilidades, vulnerabilidades e belezas.

O problema não é o dinheiro ou o capitalismo, mas sim o que é feito dele. Como Ken Wilber, o pensador que criou a teoria integral, disse: "Tornar-se menos apegado ao dinheiro não significa simplesmente ter menos dinheiro: menos apego não significa não tocar. Significa graciosamente tocar e não apertar até a morte. Significa tocar com as mãos abertas, não significa cortar as mãos.”

Colocando em outras palavras, mais do que ter coisas ou posses, um ponto de atenção é o de não ser dominado por estas coisas, dedicando vidas para alimentar sonhos de consumo, como uma televisão ou um carro maior.

Obviamente que não se trata de ser contra o capitalismo, mas está claro que precisamos de um ajuste fino. Agora. E precisamos também valorizar pessoas conectadas com valores de cuidados com o todo, que estão criando novas referências e resgatando o elo perdido do motivo original da existência de empresas. São líderes que ajudam a humanidade a evoluir e prosperar de forma mais inclusiva para todos. Já não precisamos mais valorizar pessoas desconectadas com o todo, pensando apenas em como ser maior empresa do mundo (para que mesmo?) no seu próximo bônus ou em como parecer atraente em capa de revistas de negócios.

Pessoas que “chegaram lá" apenas porque geram resultados para os acionistas. Que pobreza… Isso está tornando nosso mundo mais miserável, explorando os recursos naturais a um nível de exaustão e alimentando vidas sofridas.

Por isso precisamos mais do que nunca colocar as luzes no trabalho destes líderes transformadores. E fazer isso enquanto refletimos sobre como estamos usando nossa energia, dinheiro e tempo que temos neste lindo planeta. É apenas para acumular bens materiais ou é para ter uma boa e significativa viagem, procurando, como diria Don Marcelo, felicidade e liberdade?

Um convite: vem conhecer o Humanos de Negócios

Humanos de Negócios é um projeto que conta histórias de homens e mulheres dedicados a transformar o mundo dos negócios em um lugar mais consciente e inspirador.

Somos diariamente impactados por marcas, peças publicitárias e estímulos relativos ao consumo de todos os tipos. Empresas fazem parte de nossas vidas de uma maneira altamente relevante, mas raramente paramos para fazer esta reflexão: Qual o propósito de uma empresa existir?

As empresas nasceram para atender necessidades das pessoas. Inúmeros tipos de produtos foram criados e evoluíram ao longo do tempo, transformando a vida humana: calçados, roupas, armas, casas, móveis, alimentos, aparelhos eletrônicos, entre milhares de coisas.

A revolução industrial e o aumento da produtividade aceleraram este processo, impulsionando o consumo e gerando uma escalada nos lucros. Este movimento gerou bastante prosperidade, mas também uma série de crises que estão bastante presentes no planeta hoje: financeira, ambiental, social, política e de relações.

Em busca de ganhos pessoais, uma parte importante dos profissionais do mercado de trabalho aprendeu que o mais importante é gerar valor para acionistas, sem refletir sobre os impactos desta obsessão. As consequências: altas taxas de doenças mentais, vícios, crescentes taxas de suicídio e assassinatos. O nosso modelo de crescimento e de desenvolvimento virou um problema coletivo.

Precisamos de novas referências de lideranças que possam resgatar o espírito original de fazer negócios — atender necessidades reais por meio de relações saudáveis.

Esse é o nosso propósito. Vem visitar o site pra saber mais sobre a gente.

Rodrigo Vieira da Cunha

Estuda movimentos contemporâneos de evolução da humanidade para interpretar e compartilhar conteúdos em diferentes formas: palestras, textos, apresentações, artigos e conversas. Rodrigo é embaixador-sênior do TED no Brasil e sócio das agências de comunicação LiveAD e ProfilePR. Também organiza retiros sobre desenvolvimento de consciência com líderes de diversos países, está escrevendo o livro Humanos de Negócios" e organizando o "Flow" – um festival para trazer ferramentas e aumentar o nível de consciência das nossas relações. "