"Tenho 26 anos e sempre gostei muito de ver pornografia. Quando tinha meus 18 pra 19, comecei a enjoar de ver vídeos de casal hétero e comecei a ver de casal lésbico, porém, também enjoei e fui pro hentai. No hentai eu achei um subgrupo chamado futanari, ou seja, mulheres hermafroditas, mas eu queria algo mais real e comecei a ver de trans. No início, eu só via de trans+mulher cis (na minha cabeça aquilo não afetaria minha heterossexualidade e meu ego masculino). 

Porém, eu queria mais. Comecei a ver de trans+homem, mas ele dominando. Com o tempo comecei a ver da trans dominando e eu gostei. Eu me recriminei muito, mas muito, achei que "tava virando viado", mas inexplicavelmente meu desejo por mulheres cis só aumentava e por trans também!

Quando comecei a ver vídeos de trans, eu tinha 20 anos. Ou seja, não foi ontem e desde lá eu "flerto" com trans, mas sempre ocultando minha identidade ou fingindo que não sei. Nesse meio tempo recebi muitas propostas de saciar minha vontade e ir a fundo, mas sempre hesitei. 

Entre 2012 e 2014 eu tive uma namorada. Ela nunca soube, nunca propus, mas eu ainda continuava a ver vídeos e conversar com trans pelo face falso ou Whatsapp com outro número.

Meu relacionamento acabou e eu comecei a buscar ser alguém melhor, me tornei um homem mais aberto emocionalmente, não tenho medo de expor 'minhas fraquezas". Entendo que nós, homens, somos tão complexos quanto as mulheres em nossas emoções. Porém, essa é a unica parte que eu não conto. Infelizmente, é muito mais preocupação se a minha parceira vai ficar desacreditada, pensando "ele é viado" e depois me largar por insegurança/preconceito.

Porém, em 2016 eu tive uma parceira que não chegou a ser namorada, mas foi com quem eu me abri profundamente. Nem com ela eu cheguei de primeira e falei: "Olha, eu curto mulher cis e trans, beleza?"

Com ela e com a minha atual namorada eu fiz a mesma coisa: cheguei aos poucos, dizendo que queria que elas abrissem a mente e que eu não iria julgá-las, (nem devo né) e que sou a favor de direitos iguais (e sou mesmo). Com a anterior a gente foi fundo, chegamos a fazer inversão de papéis e eu gostei muito. Depois, propus de eu ela fazermos um a 3 com uma mulher trans, mas nunca realizamos. Eu queria uma trans sem ter que pagar (algo difícil, a maioria delas é só pagando…). Não rolou.

Com a atual, fomos mais fundo ainda. Além da gente já ter feito inversão, compramos uma cinta (sonho antigo meu). Porém, ainda não realizamos porque ela não tá podendo ter relações (o ex dela passou HPV e ela tá fazendo tratamento). Sobre trans, ela já topou fazer um a 3, e eu já disse que chuparia a trans, ela ficou surpresa mas ficou de boa, mas tenho vontade de falar "eu gosto de trans muito antes de te conhecer", pra me sentir leve, sentir que já me abri em 100% para a minha parceira, que ela conheceu minha intimidade toda. Só falta isso.

Então, Fred, depois desse longo relato, o que eu posso fazer e como faço?
 
— MS"

 
Querido MS,

Coisa linda seu relato! Fiquei bem tocado pela diversidade que ele aponta e os caminhos que podemos seguir. Há questões para esclarecer, algumas para você e outras para o leitor acompanhar o raciocínio. 

Então, vamos lá.

Abrir o jogo ou não?

Tudo vai depender do quão realmente confortável você está com tudo isso. Note que, na sua travessia, muita coisa foi se revelando em camadas que estavam ocultas.

Para muitos, essas descobertas acontecem precocemente. Para outros, em que a questão da sexualidade não está tão escancarada, vai surgindo em ondas de experimentação. Você, por exemplo, foi percebendo que sua heterossexualidade explora caminhos mais amplos do que a maior parte dos homens cis e heterossexuais e já transita por mulheres trans e mulher cis com brinquedos fálicos.

Isso estando claro me parece que você já está com a faca e o queijo na mão. Vocês experimentaram coisas juntos e já fantasiaram outras configurações sexuais, então, agora é uma questão de conversar com alegria sobre a questão. Se ela entendeu que a relação com você não seria tão convencional, então, o susto não será grande. O caminho que estão trilhando só desemboca para mais aceitação.

Mas, antes de partir pra vitória, vou fazer uma provocação.

Não precisamos ser 100% transparentes sobre cada detalhe mínimo de nossa vida para construir uma relação de cumplicidade e parceria.

Em tempos de enganos e muitos relacionamentos cravados em mentiras, talvez, a sinceridade e transparência tenham virado uma obsessão coletiva, mas não precisamos ser tão arqueológicos em cada detalhe que vivemos do nascimento até o presente para criar felicidade numa relação.

A ideia que se acredita é que, ao saber de cada detalhe que vai na "alma" da outra pessoa, teríamos a garantia de amor eterno, como se entrar no quarto mais escuro do parceiro pudesse se tornar um amuleto de confiabilidade e certeza de entrosamento. Podemos ter consciência de tudo o que é descrito pelo outro, ainda assim, somos imprevisíveis e mais: somos secretos para nós mesmos. Nem tudo o que se passa em nosso interior está gabaritado e consciente, portanto, mesmo que pudesse contar cada detalhe do que vai no seu interior  isso não seria, necessariamente, a verdade sobre quem você é. Somos ocultos para nós mesmos.

Pega leve nas revelações, em especial do passado, pois esse não é o maior e nem o melhor sinal de lealdade ou transparência. Podemos falar tudo e ainda estarmos envoltos em joguinhos e obscuridades.

Cis e trans? Como assim?

Quando entramos nesses terrenos de definições, podemos incorrer em enganos, principalmente quando entramos em conceitos que estão sendo construídos à muitas mãos nos movimentos de minorias e suas militâncias.

Historicamente, os homens ainda não estão familiarizados com definições de identidade e gênero sexual, então, vamos explicar mais ou menos as coisas.

A pessoa cisgênero é aquela que se identifica completamente com a performance social, estética e sexual de seu gênero de nascença. É o caso do homem que se sente homem, se veste com as convenções masculinas e está plenamente confortável com o seu corpo. O mesmo acontece com a mulher cis.

Leia também  Por que invadir a intimidade do outro nos fascina tanto?

A pessoa transgênero é aquela que, em alguma medida, não se identifica com essas esferas. Um homem nascido com pênis que não se identifica com a expressão estética, social e sexual masculina pode fazer transições que se aproximem do que se convencionou feminino, como a Laerte, que se veste como mulher, age como mulher, se sente como mulher, ainda que preserve o pênis. Logo, ele seria, por esse entendimento uma mulher transsexual. Ele diz algo diferente: "Não sou mulher, sou uma pessoa trans. Tenho essa vivência no feminino, mas não sou uma mulher. Inclusive, isso é objeto de alguma hostilidade, como se eu estivesse pretendendo ser reconhecida como uma mulher ‘100% mulher’, coisa que não existe. Me apresento como uma pessoa transgênero, uma mulher trans”.

Mas poderia ser o caso da famosa Roberta Close que fez a cirurgia de redesignação de gênero e tem uma vagina, assim como Thalita Zampirolli. Em última instância, não seria preciso entrar nesses detalhes se tem ou não pênis, porque não é por essa via que a conversa deveria seguir e sim como a pessoa se identifica a si mesma. A redesignição de gênero não é o determinante.

Por exemplo, aqueles a quem se denominou travestis, numa conotação negativa e associada a prostituição, são pessoas transgêneros que seguem com o orgão genital masculino. Dentro dessa repaginação de conceito, também são mulheres trans.

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Ok, mas o MS é heterossexual ou homossexual?

Essa é primeira pergunta que imagino surgir ao lerem o texto. O "X" da questão parece ser esse, para a maior parte dos homens cis heterossexuais: se uma pessoa tem pênis, seja com aparência de homem ou de mulher, é visto como um homem. Um homem que goste de uma mulher trans sem a redesignação sexual (com pênis), portanto, seria gay. Mas se houve a redesignação, fica a pergunta: seria ele heterossexual?

A coisa complica quando o MS diz que "chuparia a trans". O leitor vai dizer "BINGO! Ele é gay, gosta de chupar um pau". Calma lá, se ele gosta de pinto associado a tudo o que um homem representa enquanto forma, expressão social e estética, ele é homossexual. Porém, se o pênis for uma parte dentro de uma dimensão maior e feminina, então, o mais sensato é entender que ele segue sendo heterossexual com taras fálicas. Importante ressaltar que homem não se resume ao pênis.

Os mais insistentes se apegarão a outra fala, a "da gente já ter feito inversão, compramos uma cinta (sonho antigo meu)" para afirmar "agora sim, ele pode estar até transando com a mina dele, mas deu o cu, mesmo que o pinto seja de borracha, no fundo ele está fantasiando um cara pegando ele por trás".

Nada disso. Está claro que ele tem tesão na garota que usa um pinto de borracha, ele gosta da garota usando o pinto de borracha, não do pinto em um homem. Se fosse o caso, ele até poderia procurar um homem (já transitou por tantas esferas).

"Mas é o cú, Fred! É o cu!!!", dirão os inflamados. Mas o cú, meus amiguinhos, é uma apenas mais uma região erógena optativa para uma pessoa sentir prazer, inexplorada para a grande maioria dos homens que tem fobia até do próprio ânus. É questão de gosto (fio-terra, beijo grego, pinto de borracha). O que vai determinar a orientação sexual não é o lugar erógeno que uma pessoa sente prazer, mas a figura com a qual ela transita esse prazer. 

Se um homem cis gosta de transar com um homem cis, ambos são homossexuais; se um homem cis gosta de um homem trans (uma mulher de nascimento que se sente/age como homem) ele é homossexual (mesmo que o parceiro trans não tenha um pênis "efetivo"). Se um homem cis gosta de uma mulher cis ele é heterossexual; e se gosta de uma mulher trans (nascida com gênero masculino, mas que se identifica como mulher, com ou sem redesignação), ele é heterossexual também.

"Mas já foi homem, Fred!! Já foi homem!! Uma vez homem, sempre homem!!"

Bem, se você está preso na ideia de biologia, então, sim. Mas se compreende a ampliação de quem tem outras vivências que a sua, então, não.

Ele é um heterossexual que gosta de fazer sexo com mulheres cis e trans, com e sem sexo vaginal, com e sem sexo anal passivo. Maluco, né, que tantas possibilidades não o tornem menos heterossexual? Importante lembrar que o que sempre definiu a ideia de homossexualidade era o ânus, mas isso precisa ser repensado. 

Existem casos em que isso pode ser uma experimentação que depois transite/revele a homossexualidade? Claro, a sexualidade não é uma caixinha fechada. E esse debate também não deveria ficar batendo na tecla binária homo-hetero ou ainda bi. Deveríamos até nos importar menos se alguém transa com gente parecida ou diferente, mas para fins didáticos (e de posicionamento social) isso ainda é necessário.

Para você, leitor, é importante saber em que caixinha colocar nosso querido MS para pensar a questão que ele está enfrentando?

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Daqui a 15 dias, o próximo tema vai ser: "Ele broxou e depois sumiu".

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Nota da edição: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
 
A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.
 
Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para id@papodehomem.com.br. A casa agradece.

Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do <a>Sobre a vida</a> e dos livros <a href="https://amzn.to/39azDR6">Relacionamento para Leigos"</a> e <a href="https://amzn.to/2BbUMhg">"Como se libertar do ex"</a>. Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram <a href="https://instagram.com/fredmattos/">@fredmattos</a>. Nas demais horas cultiva a felicidade