Nossa vida moderna anda cada vez mais agitada, mais cheia de coisas pra fazer, nos cobrando atenção e vendendo dispersão, nos fazendo acreditar que parar e respirar é para os fracos.
Ao mesmo tempo, a nossa cultura por vezes aprisiona homens e mulheres em caixinhas, regras e padrões tão apertados que tornam mais dificil se adaptar e abrir o coração para os amigos quando algo dá errado ou não sabemos para onde ir.
Isso é tão verdade que o fato de um encontro entre homens acontecer, sem que envolva bebidas, mulheres ou futebol é alvo de espanto, piadas e comentários nas rodas de conversa.
É como se o papel do homem fosse quase binário: ou nos encontramos para beber/trabalhar ou não nos encontramos.
E por que não nos encontrarmos para conversas abertas que tocam o chão e realmente expõem nossos obstáculos, nossos anseios e travas? Por que não nos encontrarmos para sairmos do lugar-comum? Por que não nos reunirmos para fazer atividades que apontem para uma felicidade mais genuina e duradoura?
Uma coisa que percebo, ao escrever estas linhas, é como temos dificuldade em realmente abrirmos a agenda para encontros tão mais significativos. Muitas vezes pode ser pela estrutura corporativa ou de trabalho, pela vida social ou, simplesmente, por uma inércia e isso acaba tornando complicado fazer algo que gostaríamos de fazer e que, assim que fazemos, nos perguntamos porque raios demoramos tanto pra fazer aquilo.
Pensando assim, o ponto não é a falta de tempo, ou de espaço ou mesmo de não saber como fazer, mas ter vontade e disposição para que encontros desse tipo aconteçam.
Mesmo que sejam capengas e desajeitados no começo, o grande passo é começar e espalhar essa vontade na rede de pessoas ao redor.
A origem do encontro
No fim de semana passado, 14 homens – de todos os tipos, lugares e bagagens – se reuniram na região do Quiriri, perto de Joinville (SC), para um encontro que deveria ser normal, mas que atualmente é um tanto raro e, por isso mesmo, precioso.
A ideia toda surgiu numa conversa descompromissada entre amigos – mas que já tem essa base de abertura –, que estavam passando por momentos-chave em suas vidas: o nascimento de um filho, crise no casamento, no namoro, encruzilhadas profissionais, depressão etc. Dessa conversa, para um encontro presencial, foi um pulo.
Bastou duas pessoas decidirem uma data (com 2 meses de antecedência).
Sabíamos que se esperássemos condições para que todos estivessem disponíveis talvez o encontro nunca aconteceria. Criamos um grupo de whatsapp, convidamos outros amigos que compartilham das mesmas referências sobre encontros benéficos, e começamos a sonhar possibilidades.
O Gil, professor de artes marciais, que mora na região montanhosa do Quiriri, ofereceu seu chalé rústico para o encontro. O lugar era perfeito para nosso objetivo: poucas distrações, natureza e simplicidade. Estabelecemos uma programação para nos nortear – mas sem ser engessada -, organizamos a logistica de alimentação e compramos as passagens.
O que se seguiu, depois que tudo estava organizado e com a clareza de que não deveria ser um encontro mais-do-mesmo, foram conversas profundas e abertas ao redor da fogueira, parceria, cumplicidade, companheirismo, risada, água gelada de doer, natureza, meditação e o tempo que pareceu voar.
Mas não vou ser arrogante e tentar descrever tudo sozinho. Segue abaixo alguns relatos daqueles que estiveram presentes.
Gil Eanes:
"O dia em que todos chegaram foi de grandes emoções. Uma alegria em recebê-los na minha casa simples. E, na primeira noite, em meio a uma linda conversa, recebi a notícia do falecimento de minha avó, uma das pessoas mais influentes e importantes em minha vida.
Fiquei sem rumo no momento, não sabendo se aquilo era sonho ou realidade.
Todo o grupo teve uma solidariedade e acolhimento instantâneo e me ajudaram a respirar e acalmar. Essa energia, o abraço apertado e sincero de cada um, me deu coragem para seguir ao encontro de minha mãe e conseguir acalmá-la.
Acredito que tive muita sorte em ter todas essas pessoas nesse delicado momento, tenho uma gratidão imensa e pude sentir o poder de um grupo, como podem nos dar forças."
Vítor Barreto:
"Quando o Bauch me propôs fazermos um encontrão do grupo do whatsapp, topei na mesma hora. Eu disse a ele: “Veja quando consegue viajar e partimos daí.” Com as passagens compradas e o local definido, mais amigos foram topando ir.
O encontro foi muito bom. Dos 14 amigos, havia alguns que eu ainda nem conhecia pessoalmente, mas com quem já havia conversado.
É algo muito interessante retirar-se para outra cidade, em um lugar afastado do que lhe é familiar. Só isso já tem grande potencial. Mas ali no Quiriri, éramos 14 pessoas, interessadas em respirar melhor, em experimentar conversas mais francas, em ultrapassar seus próprios obstáculos internos.
E a coisa começou muito rápido. Na sexta-feira mesmo, ainda no bate-papo informal, um relato de um início de relacionamento se transformou numa conversa reveladora sobre como algumas limitações se escondem no discurso. Sejam elas o machismo, o preconceito, o medo… E isso só aconteceu porque todos se sentiam seguros ali. Tanto para abrir uma história, quanto para apontar com franqueza o que via de equivocado no discurso. E o resultado disso não é o atrito. O resultado é conexão genuína, parceria. Esse foi o tom do encontro.
Desde a roda de conversa até o mergulho no rio gelado ajudando quem não sabia nadar, passando pela dura notícia do falecimento de uma pessoa querida na família."
Daniel Scola:
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O acolhimento de seu Valmor e sua família. Por mais que estivessem passando por um momento de dificuldade, todos da família sempre estavam com um sorriso no rosto. E o seu Valmor falava para qualquer coisa "nisso a gente da um jeito";
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A disposição do pessoal para ouvir, isso é muito bonito cara;
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Entre o chuveiro gelado e a água do rio, melhor encarar um banho de rio né?
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Lembrando que o Quiriri, o rio, a luta, são somente um pretexto, o que o pessoal queria mesmo é uma razão para se ver e ter essas conversas sinceras, de tocar o chão. Poucas vezes vi a ironia sendo utilizada;
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Espirito de brodagem entre todos, companheirismo, generosidade, pré-disposição para ajudar, todos se tratando como amigos de longa data;
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Simplicidade. Quando vivemos em comunidade, o conforto perde valor em nossa lista de prioridades;
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Dizer vários "nossas" para um simples bolo de laranja caseiro;
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Ainda estou meio anestesiado com a volta à sociedade.
Leo Werneck:
"Quando recebi o convite do Bauch topei imediatamente, e comprei as passagens.
Nas semanas seguintes, por algumas ocasiões, fiquei me perguntando de onde tinha vindo aquele impulso tão forte, aquele desejo tão grande de participar deste encontro.
Cheguei a evocar até o meu crônico descontrole financeiro, assumindo despesas em momentos que não podia fazê-lo, mas sabia desde o começo que o que me motivava era a oportunidade rara de estar com pessoas realmente interessadas em construir relações autênticas. Eu sabia o que ia encontrar.
E logo de cara, nas primeiras horas na casa do Gil, a notícia da morte de sua avó: a primeira prova. E agora? Sem a energia do anfitrião (e sem o sparring!!), confesso que temi pelo encontro, mas aí veio a demonstração clara da real motivação de todos ali: a energia se manteve, e mesmo desconcertados pelo momento pelo qual o Gil passava, todos entendemos, de forma tácita, que o melhor a fazer era seguir, e que era isso que o deixaria feliz.
Tudo o que rolou depois (as rodas de embate formal e informal, as conversas, a meditação) só confirmou tudo aquilo que previa quando cedi ao impulso de comprar as passagens. A cereja do bolo foi a família do Valmor, que cuidou das “crianças” como se fossemos seus filhos – família aliás, que não tirava o sorriso do rosto, numa energia contagiante. Mas acho que retribuímos a altura.
Que venham mais encontros como este!"
Luis Diaz:
"A proposta se cumpriu: um lugar de Encontro.
Para mim também não foi fácil abrir a agenda: reuniões, trabalho, mas valeu a pena total. Acho que precisamos sempre de mais oportunidades de abertura para a percepção de que não estamos sozinhos. Voltamos mais leves, mais inteiros.
Me senti escutando e me senti escutado, em níveis de fala, de mente, de energia. Depois de um tempo, sem essa abertura, podemos entrar numa esfera de amargor e de solidão. Me senti livre, e contente como há tempos não me sentia. Gratidão enorme pela disponibilidade do Gil e do seu Valmor, dos companheiros de jornada e pela natureza vibrante. Gratidão ao rio, gratidão por tudo o que nos rodeia e nos acolhe quando estamos abertos à isso.
Que possamos nos encontrar mais!"
Fábio Valgas:
"Ao chegar e ver aquele bando de homens sentados no chão daquele chalé sem móveis, sem mesa, sem cerveja, sem tv passando algum jogo ou luta e sem saberem muito como começar o tal do encontro, confesso que a primeira coisa que me veio foi um "pqp, porque diabos eu venho nessas coisas?".
Sem ter muito pra onde correr, sentei no chão junto àquela cambada de perdidos e, quando me dei conta, em menos de 20 minutos estávamos todos conversando, sem receios de chacotas ou piadinhas, sobre nossos equívocos e motivações perante um novo relacionamento, baseados no relato de um dos colegas de chão.
Nesse momento olhei pra todos em volta e me veio um "ah sim, por isso que eu venho… pode crer".
Já faz algum tempo que, sem que eu planejasse muito, minhas amizades vêm ganhando essa base de mais abertura do que fechamento, mais honestidade do que ironia barata, mais confiança do que receio, mais "cut the crap" do que ladainha, e isso sem que a coisa se torne algo serio, emotivo, afetado… pelo contrário. Esses encontros acabam sendo a realização e a lembrança de como essa base tem sido crucial na minha vida.
Agradeço muito a todos os amigos pelas conversas, pelo acolhimento, pela parceria e pela abertura pra topar essas bizarrices que inventamos, de debater sobre a vida em volta de fogueiras, tomar banho em rios congelantes e apanhar do Gil no fim do dia, e que têm me salvado diariamente.
Forte abraço em todos!"
Herbert Santana:
"O sorriso do Gil ao nos receber; o modo como ele lidou com a situação da perda de sua avó; o jeito como a mini roda de embate se formou automaticamente no primeiro dia; a alegria do seu Valmor ao nos ver, dizendo que se somos amigos do Gil, somos gente boa também… O encontro enfim aconteceu. Foi fantástico.
Para mim ficou clara a boa intenção do grupo, me senti acolhido e entre pessoas que me querem bem, apesar de ter conhecido a maioria há pouco tempo. Quando estávamos no rio gelado, no segundo dia, foi precioso ver que muitos tentaram formar uma corrente humana e assumiram posições desconfortáveis dentro da água para que os que não sabiam nadar pudessem chegar à outra margem. O senso de coletividade foi uma constante durante nossa estadia no Quiriri.
Na noite do segundo dia, a Roda de Embate de verdade significou muito para mim. Foi bom ver e ser visto por trás da casca grossa que insistimos em manter. Não há cascas grossas, descobri. Foi uma surpresa boa ver que ali estavam presentes seres humanos, que têm os mesmos medos e inseguranças que eu, falando de coisas reais.
Hoje posso falar que conheço homens sensíveis, que se abrem em relatos raros e expõem suas feridas, na intenção de evoluir como seres humanos; posso dizer que tenho amigos que acreditam na mudança do mundo, que veem na aparente “fraqueza” a oportunidade de se melhorar e melhorar a todos. Queria poder qualificar a importância disso neste texto, mas não dá.
O que restou do encontro foram os ecos das falas poderosas e dos ensinamentos que tive durante a viagem. Restou também a vontade de que outros tantos encontros aconteçam para mim e para todos."
Mais alguns registros do encontro:
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