Quando o bebê faz algo bonitinho, ganha um mimo. Quando o adolescente se comporta bem, ganha o direito de sair pra bagunça. Quando o trabalhador trabalha o mês todo, ganha um salário.
Desde muito cedo somos expostos a relações de esforço-recompensa, mas em poucos casos temos o direito de determinar qual será o tamanho dessa recompensa. Quem determina o tamanho do prêmio é sempre a ponta que demanda. São os pais, que querem um filho comportado, ou a empresa, que quer um funcionário produtivo.
Na ausência total de treino, o resultado é inevitável: não sabemos cobrar.
O autônomo e o assalariado
A cobrança é um problema especialmente grande para os autônomos e pequenos empresários, responsáveis por precificar seus produtos e serviços, porém é relevante também para os profissionais assalariados imersos em um mercado de trabalho carente. Com muitas vagas sendo oferecidas aos profissionais competentes, qual o salário justo?
Nos últimos dois anos tive a oportunidade de lidar com assalariados, autônomos e pequenos empresários, todos encarando uma série de dilemas relacionados a dinheiro. A questão da cobrança está sempre presente.
Recentemente conduzi um encontro com 15 psicólogos, no Rio de Janeiro. A ideia era abordarmos quais as melhores maneiras de organizar financeiramente um consultório. Sabendo que um método encaixotado e uma planilha não trariam grandes resultados, e que o real problema era profundo, experimentamos um percurso ousado.
Esse era o texto do slide introdutório:
"O trabalho de um pedreiro é tão nobre quanto o trabalho de um psicólogo."
Passado o susto (e a possibilidade de ser apedrejado), engatamos uma discussão acalorada, que culminou em uma série de pontos sobre precificação e cobrança, úteis tanto para psicólogos quanto para outras categorias de autônomos e assalariados.
São questões que fazem com que precificar de maneira justa seja um tabu.
Se tem preço, é comprável; se é comprável, não é tão especial
Ao precificar o que estamos oferecendo, nos colocamos em pé de igualdade com todos os outros serviços e produtos disponíveis no mercado e ficamos a mercê do julgamento alheio.
Nesse momento, afirmamos para nós mesmos e para o mundo que nosso trabalho é tangível, mensurável, tão digno quanto qualquer outro e nada mais que isso. Logo a gente, que no jardim da infância queria ter sido o autor da pintura a dedo que vai ganhar destaque no varal da tia, que vai ficar pendurada por mais tempo e se tornará alvo dos comentários de todos.
O preço posto denuncia que somos compráveis. Caberia aqui um trocadilho infame com a campanha de marketing da Mastercard, que deixa bem claro um traço bem sutil e complexo da nossa cultura: a crença de que as coisas realmente especiais não têm preço. Em inglês, priceless.
É tão bom e único que seria maculado se alguém ousasse colocar uma etiqueta com preço justo.
Percepção e julgamento
O preço influencia a maneira com que julgamos o produto ou serviço que estamos consumindo.
Por seis meses prestei consultoria cobrando de maneira simbólica, quase oito vezes mais barato do que o valor que cobro hoje. Eu precisava montar uma rede, testar o método e ganhar cancha. Em um dos meses, por curiosidade, resolvi anotar quantas ausências e remarcações eu havia “sofrido”. Das 26 reuniões agendadas, menos da metade realmente aconteceu conforme o previsto.
Ligações do tipo “Hoje não vai dar para nos encontrarmos porque não consegui ir na academia de manhã, então vou agora à noite” eram muito comuns. Era difícil estabelecer certa regularidade e, com isso, o processo todo perdia força. Questionei o método, a minha habilidade, a logística, tudo. Flexibilizei cada vez mais e não funcionou.
Acabei percebendo que, ao invés de ajudar, o preço extremamente baixo prejudicava.
Queremos confiar em produtos e serviços e, para tal, precisamos de estímulo e fagulha. Em muitos casos, o que falta não é flexibilidade. É firmeza.
Como valorizar determinado trabalho se nem o próprio autor o faz?
O quanto você confia no seu trabalho?
O preço bem posto nos coloca em xeque. Ele questiona o quão seguro estamos a respeito do que estamos oferecendo.
A gente consegue fazer uma bela apresentação em PowerPoint, enganar o chefe ou meia dúzia de clientes, mas dificilmente enganamos a nós mesmos e dormimos tranquilos com isso.
Muitas vezes, nosso pé atrás com relação ao preço reflete uma pontinha de insegurança, um certo pudor que faz com que o desconforto surja no momento em que pedimos (cobramos) mais do que acreditamos que nosso produto vale.
Isso fica bem claro para os autônomos, que são diretamente responsáveis pelo processo de precificação, mas também acontece com assalariados, que geralmente oscilam entre deixar que a empresa diga exatamente quanto seu trabalho vale, e ter uma conversa séria e complexa com o chefe, renegociando o salário.
“Tenho receio de cobrar porque sou muito bonzinho”
É bem impressionante nossa capacidade de racionalizar nossas decisões extremamente emocionais. Na dinâmica da cobrança isso fica muito evidente. É comum escutarmos algo assim:
“É dificil cobrar direito porque tenho o coração mole. Vejo o cliente em uma situação desconfortável e, num acesso de bondade, acabo cedendo. E aí vão-se os prazos, descontos, tudo.”
Ao estressarmos esse ponto sem dó, sem ter medo do que vamos encontrar, acabamos percebendo que essa foi uma desculpa bem ardilosa. Buscando prazer e evitando tensão sempre que possível, independente do custo, preferimos dizer que é bondade e coração mole, quando na verdade a culpa é da nossa mente mimada.
Uma justificativa mais franca e menos gostosa de encarar:
“Não sou bonzinho e não tenho um coração mole. Eu não quero passar pelo desconforto que é cobrar. Isso me deixa tenso, rouba meu bem-estar, sou ruim nisso. Então, para não passar por esse perreio, eu cedo e digo para mim mesmo tenho dificuldades porque eu me preocupo muito com o outro e não ligo para dinheiro, quando na verdade o que eu quero é satisfazer todas minhas vontades sempre, reestabelecendo meu conforto o mais rápido possível.”
Aumenta, diminui, mantém, segue o barco
Em tempo de “Faça o que você ama”, com novas profissões surgindo e velhas profissões desaparecendo, cobrar ou requisitar aumento de salário nunca foi tão complexo, nunca envolveu tantos fatores subjetivos e sutis.
Para os assalariados: como foi a última vez que você recebeu um aumento? Foi dado espontaneamente, ou você bateu na porta do chefe? Foi um aumento significativo? Comparando com o provável aumento na carga ou complexidade de trabalho, valeu a pena?
Para os autônomos e pequenos empresários: além da correção anual por conta da inflação, qual foi a última vez que você aumentou o preço cobrado pelos seus préstimos? Funciona melhor aumentar semestralmente? Ou um aumento por ano gera menos stress? Você tem uma noção clara do quanto seus concorrentes cobram?
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