Era a noite de uma sexta-feira. Ou de um sábado, não importa. O fato é que fazia calor no fim de semana e, a um quarteirão de distância, na rua de trás, rolava um churrasco. O dono da casa é parceiro das antigas. Está (ou estava) sempre cercado de belas guapas. Tem tatuagens na perna, usa bombeta e desfere bons argumentos quando a conversa se volta para os contemporâneos e obscuros conflitos da humanidade.
Somos da classe média paulistana.
Churrascos acontecem com variada frequência. Neles, carne quase não se vê. Porém, cerveja não falta. Nunca. Se não há latinhas no gelo, não há pessoas conversando em volta da piscina. Ou seja, não há confraternização em plena noite calorenta de um final de semana.
Estou há uma hora entre cervejas, cigarros e palavras. E a alguns metros do banheiro interno da casa de tijolos expostos. Preciso ir até lá. Não me lembro, mas antes de me deslocar, provavelmente devo ter largado o cigarro em algum cinzeiro. Mesmo que pela metade. Isso porque a fumaça insiste em atingir meus olhos quando mijo. Algo baseado na física, quando se tem o cigarro equilibrado por algum tempo entre os lábios, a fim de manter as mãos livres.
Antes de alcançar o destino, uma voz baixa me chama a atenção. Ela surge do final do corredor escuro, reflete nas paredes brancas e atinge meus ouvidos:
— Oi, vem cá. Deixa eu te falar uma coisa.
Perco a vontade de mijar. É uma das meninas morenas da classe média paulistana. Veste roupas compradas no shopping e usa perfume. É bonita de rosto e com curvas no corpo. Aproximo-me.
— Oi. E aí?
— Tem uma amiga minha que te achou bonito. Ela quer te conhecer.
Por um momento, lembro das entusiasmantes festas da quinta série.
— Ah é, quem? Mostra quem.
— Vem aqui que eu te falo.
Ela dá passos curtos para trás e eu os sigo em busca da misteriosa amiga tímida, que não veio ter comigo essa conversa. Depois de alguns segundos, percebo o porquê dela não vir. O diálogo transcorre na frente da porta de um quarto apagado. E é para essa direção que os passos rebobinados da menina caminham, contraindo vagarosamente cada milímetro de fio de carpete marrom.
— E então, fala quem é?
— Sou eu.
De repente, sou tragado para dentro do quarto vazio. Ela me puxa pelo braço e fecha a porta. Passa a chave. Agora, estamos sozinhos, trancafiados sob uma lâmpada sem vida. Fico na dúvida: jogo-me no sofá e garanto o sexo fácil ou abro a porta e corro?
Não sei.
Ela chega perto e me beija a boca. Lembro que, antigamente os homens sentiam-se atraídos por mulheres grandes. A quantidade de carne era mais valorizada que o formato da cintura, como se vê em pinturas antigas. Sem pensar mais sobre o assunto, beijo-a. Mas não de maneira tão romântica quanto o verbo parece exprimir. Ali, havia pouca volúpia. E eu sinceramente buscava mais.
Ela tira a blusa. Não há luz no quarto. Passaram-se dez minutos e agora estou prestes a cair sobre os seios fartos da menina esperta. Enganou-me como ninguém. Deitada no sofá, me chama. Depois desses dez minutos, começo a refletir sobre as circuntâncias e experimento o princípio da concepção de beleza feminina injetado em mim pelas obras do ocidente.
Televisão, propaganda, história em quadrinhos, tudo.
Não sou romântico. Não aqui. Estou no grau e tenho uma garota semi-nua e praticamente no cio sentada embaixo do meu nariz, com a cabeça na altura do meu quadril. O pensamento é claro: quero sexo oral. Não sei se por inexperiência, nojo ou por ser uma patricinha da sociedade civil, ela recusa.
— Vamos transar – diz, estirada no sofá sobre algumas roupas que provavelmente foram passadas no mesmo dia e que, agora, já encontravam-se amarrotadas novamente.
Subo as calças, fecho o zíper. Acerto a trava do cinto no segundo furo e procuro a camiseta na escuridão. Vou-me embora.
— Embora para onde?
— Vou lá pra fora, ué.
— Não vai não…
— Vou.
Tento ir até a porta e ela estaciona na minha frente. Diz que não vou sair. Insisto e tudo acontece da mesma forma. De novo. Novamente. Mais uma vez. Decido então, para desespero da garota, acender a luz.
— Não acende! Não acende!
— Clap.
O som do interruptor foi seguido pelo clarão. Para a minha sorte, a lâmpada não estava queimada. Pelo contrário, era bem forte – 100 watts, eu diria. A menina que me assediava sexualmente se cobre com os braços. Não quer que eu veja suas curvas. Não ligo para isso, só desejo sair e pegar uma cerveja. Ela logo veste a blusa e para em frente à porta de madeira patinada.
— Não vai sair.
Vejamos: eu não agrido pessoas. Jamais. A porta está sob a guarda severa de uma menina forte. Para passar por ali, só tirando-a à força. Começo a pensar em outra saída.
Insisto para ela sair da frente. Ela contesta, dizendo que não. Quer ficar ali, comigo. Nada feito. Tento agarrar a maçaneta, ela me empurra. Tento driblar o zagueiro e virar a chave. Ela é indriblável. Desisto desta tática. Logo, altero-a.
— Você não vai me deixar sair mesmo?
— Não.
— Tá bom. Então desisto.
Volto e me sento. Mas logo levanto, fico em pé. Numa situação de risco, o melhor é ficar em pé. A qualquer momento poderia arremessar-me sobre a maçaneta redonda e fugir sem olhar para trás. Mas isso seria um tanto indelicado.
— E aí, me conta da sua vida. Quem é você?
— Ah, meu nome é X. Você não reparou que eu estava te olhando desde o começo do churrasco?
— Não – mas, na verdade, havia reparado cada momento em que me olhava com os olhos quase cerrados, como quem olha para o sol.
— Hum…
Estamos em pé no centro do cômodo. Um de frente para o outro, numa linda cena de amor. Eu, com as costas viradas para uma janela fechada. Ela, de costas para a porta, de onde não tiro os olhos. A situação já toma ares farsistas. Cada canto do ambiente já foi sistematicamente analisado por mim, na busca por algum instrumento de fuga. Uma chave reserva. Uma vara de pesca, talvez. Nada encontro.
Minha arma é a conversa furada que rola agora, sobre as coisas da vida.
Ela comenta sobre a enorme coincidência de estudarmos na mesma faculdade. Enquanto diz que nunca me viu pelos corredores e que não vai me deixar sair do quarto de jeito nenhum, eu me aproximo da janela. Em passos tão curtos e demorados quanto aqueles que ela usou para me fisgar.
A menina esperta agora está distraída. Abro uma das portas da janela e empurro-a até que se escancare. A carrasca mal percebe. Peço um cigarro. Vinda dos lados da piscina, onde a população do churrasco se concentra, a música me chama como o rastro de fumaça que toma forma viva e puxa personagens de desenhos animados até as tortas de amora recém-tiradas de um forno. Empurro a outra parte da janela. Do outro lado, uma escada e a porta da frente da mansão, alinhadas numa altura não tão significativa. Dá para pular.
Conversamos enquanto as duas portas da janela repousam abertas. Ela nem imagina o plano.
Todos os meus pensamentos encontram-se pressionados pela situação completamente inédita. Jamais havia sofrido uma situação de assédio sexual feminino. Quase isso. Agora, minha meta é sair dali.
Atrevida, a moça continua com a conversa mole, aproximando seus lábios famintos do meu queixo. Ensaio falsos afagos. Digo que vou pegar uma cerveja. Ela veta o movimento, não me deixa sair do quarto. Para em frente à porta. Ingênua, agora a carrasca está posicionada distante de mim. Eu numa parede, ela em outra. Gargalho em silêncio.
— Tchau!
Passo a perna direita pela janela, olho para a moça. Está furiosa. Passo a perna esquerda e me lanço para a escada, logo abaixo dos meus pés. Estou livre.
O salto foi um sucesso. Desde criança, gosto de pular janelas. Era um hobby. Agora, uma necessidade. Voei pelo vão e caí com os dois pés alinhados num contato sincronizado com as pedras beges do chão. Ufa.
Caminho sem olhar para trás, mas – mais uma vez – ela sequestra minha atenção:
— Seu gay!
Paro, olho. Ela acha que darei meia volta. Jamais. Vou–me embora, penetrando pela porta da frente.
— Gay! – escuto ao longe e ignoro.
Passo por quadros de arte realista, tapetes aconchegantes e sofás de tecido suave até chegar ao pódio. Neste momento, estou no churrasco novamente. Agarro uma cerveja como prêmio. De mim para mim mesmo. Afinal, perdi cerca de quarenta minutos na batalha do quarto.
Como é boa a sensação de liberdade.
Estou encostado num canto, em meio a uma roda de moleques. De longe, percebo minha algoz saindo dos arredores internos da casa. Nem me direciona os olhos. Melhor assim, penso. E continuo olhando. Deve estar encabulada.
Seu plano falhou. Já o meu…
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