Entre café da manhã, almoço e janta a gente se flagra, uma hora ou outra, brincando de se imaginar protagonistas dos contos de Jader, vagando por lembranças e desejos de companhia, aconchego e amor. É pontada no coração, é dor de corno, é ego ferido. É trilha de Marília Mendonça, Reginaldo Rossi e Safadão.
Num dia de boa ventura, no meio de um rolê daqueles que você foi, mas queria mesmo era ter ficado em casa, enquanto você conferia o celular pra ver se já estava numa hora socialmente aceitável para dizer que tinha de ir embora — afinal amanhã era dia de labuta e você tinha que acordar cedo — aparece alguém interrompendo o detalhado planejamento da desculpa, puxando assunto como quem não quer nada.
De um "quer mais uma cerveja", assim tão banal, a vida enviara até você uma latinha e um alguém. Um alguém que conhecia aquela série dos anos 1980 que você mais gosta e que também ia nas matinês do clube da sua infância.
Não, você não tinha nada pra fazer amanhã; faz meses que não. Os amigos combinavam de ir pra algum lugar longe e com nome de cilada, você abandonava o barco e se entregava aos encantos do edredom. Aí batia a tristeza do velho rolo que não deu certo e que ainda latejava um desânimo só de pensar em qualquer próximo.
Naquela época, todo final de semana era quebra-pau e choradeira. Não era uma pessoa que te fazia bem. Você tinha certeza disso, mas caralho, eram uns beijos de arrepiar o cu da alma. Não dava pra ficar junto, Deus que te livre. Mas a falta daquela fungada no pescoço… Ai.
Então, de repente, no meio desse bar que você nem queria ter ido, aparece esse anjo de camiseta branca, só um tantinho transparente, que te chama pra comer no dia seguinte logo no seu restaurante favorito, sem você ter mencionado sua paixão por comida tailandesa. Você ria por dentro de lembrar do quanto sofrera por aquela outra paixão endemoniada e sofria. A vontade era ligar pro passado e cantar Henrique e Diego: se você já cansou de escutar que um dia eu iria esquecer, esse dia chegou, acabou de chegar.
Na sua frente estava um anjo. Não por qualquer expressão de pureza ou santidade, mas porque era um ser sobre-humano, daqueles que nos custa acreditar ser real. Tinha um sorriso de olho semicerrado – por entre os cílios só se via um brilho transbordante que dava até coisa na gente. Uma gastura, pressão baixa.
Estava lá alguém que não interessava comer cru. A vontade era de apurar cada um daqueles temperos que tinham tudo a ver com a tua própria essência de canela e gengibre. E a cada dia da semana que passava, a cada link trocado, convite para cafezinho, citação de filme, era todo um alvoroço ventral que se desencadeava.
Depois de duas semanas, três cafés, dois filmes e um jantar, quando a distância milimetral entre um lábio e o outro se prolongou infinitamente para acabar de golpe, o que se sentiu foi uma batida de dente afobada. Não, 'pera. Delicadamente, tocou o rosto do anjo desastrado e afastou um tanto, melhor assim. Agora pronto. Foram se acertando no beijo e descambaram pra cama.
Passaram a noite cambaleando em toques malogrados e movimentos dessincronizados. Depois que a química naufragou em um lento e langoroso ato sexual, sentaram para comer um pão na chapa que ia se mergulhando aos bocadinhos no café com leite.
Voltaram a falar da vida, do trabalho. Aquele anjo de olhinhos negros e brilhantes tinha ótimos conselhos sobre organização e foco e histórias de uma veia cínica deliciosa. Saíram outras vezes, claro que sim. Tudo o que você sempre pediu estava ali, sentado na sua frente. Viam filmes, se abraçavam para curar as mágoas, sentiam a brisa na cara ao meter a cabeça para fora da janela numa noite quente.
No entanto, vez depois de vez, o sexo continuava se derramando desastrosamente para fora da cama. Tudo o que 'bem que se quis' bem ali. E para você. Mas entre um golinho e uma chuchada de pão no café, só o que te vinha na cabeça era aquele beijo outro, aquele beijo brigado da antiga relação. Porra! Qualquer toque daquela época era de ferver a alma. A respiração gemia só de sentir a quentura da outra língua.
Não era possível. Não podia… Como podia? Tudo o que lhe fazia bem. A definição completa de bem querer, ali, dos céus direto para si. E ali, bem no fundo, a alma não expressava nem um tantinho de ânimo. É que aqueles dois corpos simplesmente não se respondiam, não tinha a condução elétrica nenhuma para acender um choque na espinha dorsal. Faltava.
Talvez faltasse aquela ponta de conflito, de sujeira humana que salga a língua na lambida. Sabe-se lá… Como era possível que, com todo aquele aconchego de pessoa, com aquele anjo vítrico pintado a pincel, lhe faltasse o tesão? Não era justo.
Mas também não era justo amarrar aquela alma linda. Deus sabe o quanto que se quis gostar dela, mas certas coisas a gente simplesmente não explica, e nem sabe o que dizer pra outra pessoas. Nos resta deixar ir.
A gente passa a vida brigando com o coração, cantando Evidências, sofrendo dos desamores e da solidão. E quando nos entregam de bandeja o amor suave e terno, a os hormônios, o sistema nervoso e a pele se juntam e resolver falar mais alto, fazer bico e dizer que não. Não mesmo.
Tem coisa que a gente não entende. Só nos resta agradecer aos anjos, e tentar passar sem sofrer pelos nossos demônios.
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Esse texto foi inspirado por várias das histórias que os leitores do Papo de Homem me enviaram. Se você também teve uma paixão que naufragou na cama, conta aqui nos comentários como que foi.
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