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Corrida no alojamento de uma obra enorme, desses condomínios populares da Cohab.
Um cara de 36 anos (me falou a idade mais tarde), mas aparentando muito mais, magro, alto, muito maltratado, jaqueta jeans suja da obra, barba branca por fazer, com uma capa de prancha de surf dobrada e uma sacola debaixo do braço. Completamente bêbado, fedendo a cachaça.
Pede a corrida pra uma favela que fica passando outra favela, barra pesada mesmo. Fico nervoso, mas não com medo, ele percebe e começa a falar sem parar, me tranquilizando.
Fala que pediu a conta do emprego e ia pra praia no dia seguinte, porque era surfista e tatuador. Conta que não aguentava mais trabalhar, desde que a filha de 12 anos havia morrido de aneurisma cerebral há 2 anos. Diz que estava com depressão e não aguentava mais viver. Levanta as mangas da jaqueta jeans e me mostra as cicatrizes de cortes profundos nos dois pulsos.
Diz que chegou a dar um tiro na própria nuca, mas que saiu de lado e só fez sangrar muito.
Pede pra parar num posto pra comprar cerveja.
Vai o resto da corrida declamando trechos da bíblia em que o rei Davi se sentia culpado, todas tirados de salmos, segundo ele. “Eu tô na mesma que o Davi… Davi devia estar muito fodido quando escreveu isso… Hahah!”
Vou ouvindo e fico muito triste, porque me parece um cara muito coração mas completamente fodido. Não sei muito o que dizer além de não ficar comprando o nervosismo irônico dele (ria muito contando as tragédias). Ele percebe e me diz “você é um cara bom, cara… eu conheço as pessoas…” e fica quieto um pouco.
Me fala da ex-mulher, diz que ela se casou com um caminhoneiro. “Ela parece estar feliz e pra mim é isso que importa”, e fica quieto mais um pouco. Fala da mãe, “Ela sustenta um vagabundo, mas eles parecem gostar um do outro, então pra mim também está bom, não acho certo dizer nada”. Fala umas sandices, conta umas mentiras descabidas, sempre muito nervoso e dando muita risada.
Diz que tinha uma asa delta em casa e que era ex-funcionário da Petrobrás. Conta alguns detalhes da Petrobrás e aí não sei mais o que era verdade e o que ele tinha inventado de tudo que tinha contado, mas não me importo muito com isso.
Chegamos na casa, um barraco.
Ele põe a mão no bolso da jaqueta, “eu vou fazer dinheiro com isso aqui”. Por um momento acho que ele vai tirar uma arma, mas não fico nem um pouco com medo. Ele me mostra uma máquina de tatuagem. Tira um maço de cigarro do outro bolso e, com ele, um bolo de notas de 50 pra pagar a corrida. Provavelmente, o dinheiro do acerto.
Arredondo a corrida em 2 reais pra baixo e ele tira sarro. “Pelo menos minha conversa tá valendo algo! hahaha”
Damos um aperto de mão forte de despedida e digo, emocionado, que desejo do fundo do coração que ele encontre paz. Ele, já fora do carro, me estende a mão de volta e, se esforçando pra se concentrar, diz: “Se a gente não se ver mais nessa vida, nos vemos na próxima”.
Pegou as coisas no banco de trás, falou que na capa da prancha tinha as quilhas de uma prancha californiana que ganhou do dono de um bar, e foi embora.
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