Muitas pessoas buscam fugir da mediocridade e ambicionam o sucesso.
Mas… fugir de qual mediocridade? Ambicionar qual sucesso?
Quando nossa definição de mediocridade é externa, quando nossos critérios de sucesso não foram escolhidos por nós, então até mesmo ser bem-sucedida pode ser uma prisão.
Talvez as pessoas mais bem-sucedidas sejam justamente as mais medíocres.
Talvez a resposta seja transcender essa dicotomia cartesiana entre sucesso e mediocridade.
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A raiva do Betão
Era uma vez, digamos, o Betão.
Betão queria fazer X da sua vida. (Substitua X pelo sonho da sua infância.)
Mas o pai, a mãe, a sociedade, a mídia, as professoras, o Zé do 502, etc, disseram que Betão iria se dar muito mal se fizesse isso. Não ganharia dinheiro, jamais teria segurança, as mulheres não olhariam pra ele, viraria um pária social, o horror, o horror.
Aí, moço de bom-senso que sempre foi, Betão sacrificou seu sonho, recalcou suas vontades e viveu exatamente a vida que aconselharam ele a viver.
Um dia, apareceu o Claudio Gustavo.
Claudio Gustavo vivia exatamente a vida que o Betão sempre quis viver e, pasmem, Claudio Gustavo não se fodeu, se sustentava, tinha uma vida sexual e amorosa, etc — nenhum daqueles medos se realizou.
Hoje em dia, quando o Betão toma chope com outros homens que também viveram as vidas que lhes mandaram viver, a repulsa geral ao Claudio Gustavo é tão autoevidente que não precisa nem mesmo ser articulada ou justificada.
Como não odiar esse grandessíssimo babaca?
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Quem é o dono do dom?
Quando tinha doze anos, tomei a primeira decisão estratégica da minha vida.
Desde pequeno, eu gostava de contar histórias. Antes mesmo de saber escrever, eu mandava minha mãe desenhar os personagens e ditava o que um estava dizendo para o outro. Na sexta série, eu escrevia e desenhava gibis, xerocava, coloria as capas uma a uma e vendia assinaturas entre colegas. Cheguei a ter 16 assinantes.
Ninguém tinha mais orgulho desse meu “dom do desenho” do que minha mãe, artista formada em Belas Artes.
Para ajudar a refinar o meu “dom”, ela me enviou para passar uma temporada em Nova Iorque com um amigo da família. Na época, o querido Goot, pseudônimo de Gutemberg Monteiro (1916-2012), recentemente falecido aos quase cem anos, desenhava a tirinha do Tom & Jerry.
Durante um mês, vivi como novaiorquino, pegando trens e metrôs, indo ao sindicato entregar as tiras, comendo bagel com suco de grapefruit, conhecendo os maiores cartunistas dos anos oitenta, aprendendo todos os truques do nanquim.
Quando voltei ao Brasil, larguei o desenho.
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Não foi uma decisão intempestiva ou rebelde.
Percebi que gostava de contar histórias, não de desenhá-las. Eu só desenhava porque, para um menino de doze anos, era o único jeito de passar minhas histórias. Mas todo o tempo que gastasse no lado mais técnico e braçal da ilustração seria menos tempo para criar meus personagens, burilar meus enredos, transmitir minhas mensagens.
A decisão não foi bem recebida. Para minha mãe, era um desperdício e um pecado:
“Você tem um dom, meu filho, e não pode desperdiçá-lo!”
Mas se não tenho a liberdade de desperdiçar meu “dom”, então não sou eu que tenho o “dom”: ele é que me tem, escravizado, em seu poder, condenado a ganhar a vida como desenhista só porque, ó que sina, eu tinha um “dom”.
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História de uma dominatrix
Eu não era o único desperdiçando minha vida: tinha também a Andréa.
Estudamos na mesma escola de elite e fomos colegas de grêmio e de jornal.
Com suas atividades extracurriculares e excelentes notas, Andréa ganhou uma bolsa de estudos para Princeton, uma das melhores universidades do mundo, onde estudou psicologia. Durante a graduação, conheceu o mundo do sadomasoquismo e se descobriu dominadora. Em pouco tempo, já estava namorando uma garota submissa e andavam juntas pela universidade, vestidas a caráter e apelidadas de “whips & chains” (chicotes e correntes).
Com orçamento apertado, começou a fazer uma dominaçãozinha por fora e percebeu que gostava dessa vida. Além de satisfazer seu lado dominador, também utilizava conhecimentos de psicologia.
(Não é à toa que um encontro com uma dominadora tem o mesmo nome que um encontro com uma psicóloga: sessão. O trabalho de Andréa também era cuidar da saúde mental de seus pacientes e ajudá-los a conviver melhor com seus próprios desejos.)
Depois de formada, casou com um australiano e foi pra terra dele. Durante três anos, viveram um casamento aberto e se separaram bons amigos.
Em 2002, foi selecionada para participar da primeira edição do Big Brother australiano. Imaginem o escândalo: uma estrangeira, alta, ruiva, exótica e dominatrix. Lá dentro, Andréa comportou-se de forma tão sexualmente desinibida quanto cá fora. Resultado: tornou-se a primeira eliminada. Passou todo o ano seguinte viajando pela Austrália, vivendo do seu status de celebridade instantânea, abrindo eventos, sendo jurada de concursos, essas coisas.
Nessa mesma época, depois de implodir minha empresa no último dia de 2001, passei o ano seguinte à deriva. Um ano de repensar, reelaborar, replanejar, redefinir. De mergulhar fundo nas minhas próprias contradições, limitações, desejos.
Então, reencontrei a Andréa através de uma reportagem do Fantástico, sobre uma tal dominatrix brasileira no Big Brother Austrália.
Na vida, não enxergamos o que queremos: enxergamos o que podemos, a partir do momento em que estamos preparadas para enxergar.
Talvez, se eu não estivesse passando por esse processo, teria enxergado na Andréa somente uma curiosidade: “olha só, é a minha ex-coleguinha de escola! que exótico!”
Mas, em 2003, quando ela veio ao Rio por algumas semanas, aproveitei para procurá-la e passamos uma noite na Lapa, conversando, perambulando.
Andréa ainda era a mesma pessoa inteligente e articulada que publicara no jornal da escola uma bombástica reportagem-investigativa sobre os malefícios de dar água com açúcar aos beija-flores (não façam isso em casa, crianças!) mas também havia se metamorfoseado em uma mulher empoderada, autoconfiante, independente.
Recém-separada, estava nômade, pulando de continente em continente, se divertindo, chicoteando seus submissos, recebendo tributos, praticando liberdade. O único modo de saber onde estava era acompanhando seu site.
Já naquela época, uma parte do Livro das Prisões estava parcialmente escrita, mas eu ainda não tinha mostrado para ninguém. Poucos dias depois de sair com a Andréa, finalmente tomei coragem, criei o meu primeiro blog, coloquei no ar as prisões e dei o primeiro passo em direção a escrever esse texto aqui que você está lendo.
O encontro com Andréa foi talvez o último estímulo que faltava para eu finalmente… mudar.
Imagino que muitas de nossas antigas colegas mais certinhas consideravam a Andréa completamente louca.
Mas, se ela era louca, então eu seria também.
Decidi que seria uma pessoa adulta, livre, independente, capaz de me assumir sem medo.
Estava na hora de eu também colocar minha cara a tapa pelas minhas ideias.
(Para ler a própria Andréa contando sua história, leiam a bio de seu site. Vejam também esse vídeo dela discursando na Slut Walk de Brisbane, em 2012. Hoje, em 2014, Andréa mora na Noruega, onde cursa um mestrado em Neurociência. Para conhecer as minhas taras, leia esses dois textos, sobre mulheres malvadas e seus belos pés.)
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Escolher a mediocridade
Aos olhos do mundo, entretanto, o que eu e a Andréa mais temos em comum é nossa mediocridade: estamos ambos vivendo abaixo de nosso (pretenso) brilhantismo, desperdiçando nosso (suposto) potencial, jogando nossas ó-tão-incríveis vidas fora.
Uma menina brilhante. Formada por Princeton. Nota máxima em todas as matérias. Como pode se contentar em ganhar a vida chicoteando os outros? É isso que você quer fazer, Andréa? É assim que você se vê daqui a dez anos? Será que foi pra isso que você teve uma educação de nível internacional? Não tem vergonha de desperdiçar as oportunidades que deus lhe deu?
Afinal, a maioria dos nossos colegas de escola já está ocupando os lugares de destaque que a sociedade fatalmente destina aos homens brancos de classe média-alta oriundos as melhores escolas: donos de empresas, diretores de multinacionais e capitães de indústria, cheios de filhos criados por babás uniformizadas, fazendo leasing de carros e financiando apartamentos, investindo em portfólios diversificados de ações e contribuindo para sólidos planos de aposentadoria.
Enquanto isso, recém-falido na malfadada tentativa de viver a vida empreendedora que me tinha sido traçada, eu estava sobrevivendo de dar aulinhas de inglês em um curso de subúrbio, em Jacarepaguá.
O trabalho não pagava quase nada, mas ficava no mesmo quarteirão do meu apartamento, não me estressava, não ocupava a minha cabeça.
Os três anos nos quais trabalhei nesse curso foram os anos em que mais pensei, flanei, escrevi, transei, passeei. Nunca fui tão feliz, tão tranquilo, tão produtivo, tão contemplativo. Foi nessa época que me reinventei no homem que sou hoje.
Estranhamente, nada disso parecia ser suficiente para as pessoas que me amavam.
Amigas e parentes faziam questão de dizer quase todo dia que eu não tinha direito de desperdiçar assim meus talento (sic), logo eu, uma pessoa tão brilhante (sic!), que poderia estar fazendo qualquer coisa (sic sic!!), em qualquer lugar do mundo!! (SIC SIC SIC!!)
Mas não era verdade: claramente eu não podia dar aulas de inglês num cursinho de subúrbio.
Eu podia fazer qualquer coisa… que se enquadrasse na noção preconcebida que tinham de mim.
Eu era livre…. para preencher suas expectativas, não para viver minha vida nos meus próprios termos.
Minha vida aparentemente causava uma grande tensão entre amigas e parentes, um desconforto que sentiam necessidade de verbalizar de forma frequente, espontânea e nunca, nunca requisitada.
Por que se achavam no direito de ter opinião sobre minhas escolhas? Por que verbalizavam essas opiniões de maneira tão invasiva? Por que minhas escolhas as incomodavam tanto?
Diziam que eu estava desperdiçando a caríssima educação que recebi. Que tinha feito uma opção pela mediocridade.
Mas, de que vale tanta educação se, em vez de me dar asas, ela me serve de âncora? Se em vez de ampliar, ela limita minhas escolhas?
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Muitos dos elogios mais efusivos que recebemos são tentativas de nos controlar e nos manipular.
Hoje, fujo ativamente de pessoas que me elogiam. Busco sempre ser a pessoa menos interessante de qualquer recinto: quando sou a pessoa mais interessante da sala, eu troco de sala.
Escolhi não ser mais refém de aspirações e expectativas alheias em relação à minha pretensa ó-genialidade.
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Quem define nossa vida somos nós
Um belo dia, casei.
Alguns anos depois, ao descobrir que era um casamento aberto e fetichista, uma amiga comentou:
“Aaah, entendi. Você sempre tinha sido contra o casamento e, quando casou, achei que tinha mudado de ideia. Agora entendi: o que você mudou foi a sua definição de casamento!”
Exatamente, respondi.
Só quem tem direito de definir o que é o nosso casamento somos eu e minha esposa.
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Na juventude, meu pai foi tenista federado. Depois, fez faculdade de economia e trabalhou no mercado financeiro.
Desde pequeno, ele me levava para acompanhar campeonatos de tênis e para conhecer sua mesa de open market.
E eu só queria saber de acompanhar peças de teatro e conhecer clássicos da literatura.
* * *
Outro dia, em uma mesa de bar, amigos homens estavam listando todas as coisas que tinham feito para agradar seus pais, cursar direito ou frequentar igrejas, até se darem conta de aquele não era o seu caminho.
E apontaram para mim:
“Só o Alex nunca endeusou o pai.”
Mas não sou um superhomem precocemente bem-resolvido: eu só tive sorte.
Minha irmã caçula logo assumiu o manto de filho varão (se federou tenista e se formou economista, herdando assim os contatos esportivos e profissionais do meu pai) e me deixou assim livre para definir o meu sucesso pessoal de maneiras diferentes.
Se meus critérios de sucesso na vida fossem troféus de tênis e portfólio de ações, eu viveria eternamente preso às ambições e expectativas de meu pai.
Cabia a mim, e a mais ninguém, criar os meus próprios critérios de sucesso.
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Quem são meus ícones?
Há muitos anos, eu odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas.
Mas pensava:
“O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, também consigo.”
E lá ia eu me torturar mais um pouco.
Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença.
Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:
“Se ELAS conseguem, eu também consigo!”
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Por que precisamos destruir nossos ídolos?
Um dos clichês mais batidos e mais populares das artes narrativas: pessoa excepcional obtém sucesso fora de escala em sua área de atuação e se autodestrói de forma retumbante.
Como uma criança pedindo à mãe para contar e recontar a mesma história, parecemos ter um apetite insaciável por essa narrativa.
Mas por que gostamos tanto de ver nossos ídolos se fodendo?
* * *
Por um lado, enfrentamos uma pressão social enorme para nos enquadrar:
Manter uma só cônjuge e sempre do sexo oposto, criar a prole, fazer o dever de casa, respeitar pai e mãe, amar a deus acima de todas as coisas, pagar impostos, etc etc.
Em suma: ser boas pessoas cidadãs.
Mas ninguém fica famosa por ser uma filha obediente, ninguém enriquece por respeitar a mãe, ninguém ganha medalha por ser boa esposa. As recompensas são difusas e, às vezes, quase invisíveis.
Por outro lado, paradoxalmente, a sociedade parece premiar com fama e sucesso os bad boys e bad girls que quebram todas essas regras.
Comportamentos que transformariam qualquer um em pária social fazem sensação no Big Brother, geram convites para o camarote da Brahma e Ilha de Caras. As mesmas pessoas que assistem empolgadas House não tolerariam uma colega de trabalho que fizesse um décimo do que ele faz.
Artistas, atletas e celebridades de modo geral parecem desfrutar de uma liberdade muito maior do que a média da população. Por quê?
Porque sempre vem a conta.
Jesus morreu por nossos pecados e nunca mais perdemos esse hábito de viver indiretamente através das outras pessoas. Condenamos nossos ídolos a morrer por nós, pois só assim podemos suportar nossas vidas de não-ídolos.
Se passamos a vida inteira nos sacrificando para seguir as regras e, enquanto isso, outra pessoa quebra todas essas regras, e ainda por cima se dá bem, ganha mais dinheiro, parece viver de orgia em orgia, é como se toda a nossa vida tivesse sido uma mentira. Como se tivéssemos recalcado nossos desejos, mutilado nossa liberdade, reprimido nossa sexualidade, por nada. Otárias.
Então, quando o ídolo voa tão alto que derrete as asas e se espatifa no solo, nós todas, a sociedade inteira, soltamos um suspiro de alívio coletivo. Agora, podemos dormir tranquilas: nossa decisão de desfazer a banda e cursar ciências atuariais foi mesmo a mais acertada.
A queda do ídolo redime todos os nossos desejos recalcados.
A narrativa arquetípica da queda do herói cumpre uma importantíssima função social. O cidadão contribuinte, hetero, monogâmico, careta, bom pai, etc, etc, pode sair do cinema aliviado, e ainda se auto congratular:
“Bem, eu não danço como o Michael Jackson, não componho como o Raul Seixas, não canto como a Elis Regina, mas, porra, pelo menos eu consigo segurar minha onda, né?”
E, assim, uma vida que talvez fosse chata e sem sentido, torna-se tolerável.
Quem sabe até feliz.
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Somos tudo o que poderíamos ter sido
Depois de um concerto, a fã aborda a pianista e diz:
“Eu daria minha vida para tocar tão bem assim.”
E ela responde, simplesmente:
“Eu dei.”
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Somos todas, ao mesmo tempo, tanto a dentista entediada quanto também a artista plástica que poderíamos ter sido; ou a artista plástica pobretona e também a dentista que poderíamos ter sido.
Conheço muitas dentistas (e contadoras e bancárias e etc) que adoram fantasiar sobre a vida livre e interessante que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça nas artes plásticas (ou na poesia ou no teatro ou etc).
Conheço muitas artistas plásticas (e atrizes e poetisa e etc) que também adoram fantasiar sobre a vida segura e confortável que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça na odontologia (ou na contabilidade ou nas ciências atuariais ou etc).
De fato, algumas dentistas teriam sido excelentes poetisas. De fato, alguns poetisas talvez devessem ter se dedicado à odontologia. Mas quais?
Todo dia, comparo minha vida incerta à das amigas que desfizeram a banda da pós-adolescência e se dedicaram à estatística, e penso: de fato, eu não trocaria minha vida pela delas.
Entretanto, antes de cair naquela tentação tão vaidosa de me gabar de minha ó-tão-interessante “vida de artista”, faço questão de me lembrar do seguinte:
Se eu não trocaria a minha vida pela delas… elas também não trocariam suas vidas pela minha.
Cada escolha de vida tem delícias e custos que só conhece quem as escolheu.
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Jogando a vida na roleta dos sonhos
Escrevi, escrevi, escrevi. Todo dia. Às vezes, o dia todo.
Não peguei empregos rentáveis, não aceitei mais um frila, não fiz aquela viagem – porque não me sobraria tempo pra escrever. Preferi sempre ajustar meu nível de consumo pra baixo, gastar menos, para poder trabalhar menos, viver com menos – e escrever mais.
Escrevo profissionalmente há quase trinta anos. Se tiver mais trinta, não tenho dúvidas de que vou passá-los escrevendo.
Sabe por quê? Porque essa vida é minha. Só tenho ela pra arriscar. Só tenho a mim mesmo para sacrificar.
Se não jogar minha vida na roleta dos meus sonhos, quem vai fazer isso por mim?
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Quais são os limites da gratidão?
Nos encontros “As Prisões“, aparecem muitas histórias assim:
“Meus pais fizeram mil sacrifícios para eu poder cursar Medicina. Mesmo eu não querendo, você não acha que DEVO isso a eles?”
ou então:
“Minha mãe nunca vai ser feliz se eu não fizer Engenharia.”
Quem levanta essas questões são sempre pessoas boas, gratas, sinceramente desejosas de retribuir tudo o que receberam.
Mas qual é o limite?
Onde termina a gratidão e começa o nosso direito inalienável de dispor de nossa própria vida?
Será que a gratidão realmente nos obriga a carregar nos nossos ombros o peso dos sonhos e expectativas de outras pessoas?
Quem atrela sua própria felicidade pessoal às decisões de terceiros precisa, antes de tudo, de terapia.
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Nosso pai e nossa mãe são apenas as primeiras autoridades com as quais temos que lidar.
Depois, vêm professoras, chefas, coleguinhas, revistas femininas, padres, comédias românticas, etc, todas sempre tentando nos impor o mesmo roteiro preestabelecido:
Temos que ser monogâmicas, heterossexuais, religiosas, fazer universidade, trabalhar em tempo integral, namorar, casar, ter filhos, comprar casa, etc etc.
Muitas vezes, basta uma única discordância para sentirmos todo o peso da reprovação social sobre nós. (Perguntem a qualquer mulher que siga todo o acima mas que, pasmem!, não tenha filhos.)
Ser uma pessoa adulta é finalmente aprender a impor limites e dizer “não”.
É estabelecer, com serenidade e sem rebeldia, que aceitamos ingerência externa somente até certo ponto.
Que aceitamos, por exemplo, que o mundo nos diga que temos que vestir gravata no tribunal ou usar cinto de segurança no carro, mas que não aceitamos que nosso pai nos imponha uma carreira, ou nosso chefe, mais trabalho no fim de semana, ainda que um tenha nos sustentado no passado ou o outro nos sustente hoje.
Sem estabelecer com clareza esse limite, perigamos de cair nos extremos: de nos tornar ou as filhas ingratas e autocentradas que só vivem para si mesmas ou as filhas submissas que carregam nos ombros os sonhos do pai e da mãe.
Se não aprendermos a dizer “não”, viveremos para sempre presas à definições alheias e arbitrárias de sucesso e de mediocridade.
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Não existe sucesso, não existe fracasso
Talvez estudar em uma escola de elite e depois dar aulinhas de inglês (ou chicotear pessoas) seja mesmo medíocre.
Mas existem várias outras definições possíveis de mediocridade e de sucesso.
Talvez mediocridade seja essa nossa busca eterna por uma felicidade inatingível.
Talvez mediocridade seja tentar preencher nossos vazios existenciais com consumo desenfreado.
Talvez a maior de todas as mediocridades seja justamente esse raciocínio hierárquico e cartesiano que divide as pessoas em medíocres e bem-sucedidas, e, mais ainda, esse nosso pânico egocêntrico de sermos vistas como losers e não como winners.
Afinal, ser bem-sucedida em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
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Mês que vem, essa conversa continua na Prisão Obediência. Afinal, por que nos é tão automático nos conformar, de nos submeter, de nos anular?
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Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
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O encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Agora, estou promovendo o encontro “As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro “As Prisões” é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.