Existem muitas ilusões às quais nos apegamos para poder funcionar como pessoas humanas.

Uma das maiores delas é a de que existe algo que possamos fazer para não encherem mais o nosso saco, para a família parar de se meter em nossa vida, para o mundo finalmente ficar satisfeito com nossas escolhas.

Mas não existe.

O mundo é como um namorado ciumento. Se usarmos uma saia mais longa, ele não vai ficar satisfeito com sua namorada obediente e pudica: vai querer mandar no nosso decote.

A obediência, além de ser uma prisão, simplesmente não funciona.

A Day's Work (1970 - Philip Guston)

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"Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não."

Um amigo, contando sobre suas escolhas profissionais:

 

"Eu queria fazer Artes Cênicas, mas meu pai, que nunca me obrigou a nada, ficou insistindo pra eu fazer Direito, que Direito dava dinheiro, que Direito era mais seguro, que com Direito eu poderia fazer muitas coisas, e falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."

E o que você fez?, perguntei.

 

"Cedi. Fiz Direito."

É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?

 

"Bem, eu queria fazer penal, mas meu pai, que é super compreensivo e bem intencionado, ficou insistindo pra eu fazer Direito Tributário, porque Tributário é que dava dinheiro, porque Penal tem que ficar lidando com bandidos, que Tributário todas as empresas precisam, que ele tinha amigos nessa área, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."

E o que você fez?, perguntei.

 

"Cedi. Fiz Tributário."

É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?

 

"Bem, eu queria trabalhar no Tributário de uma ONG, ajudar o mundo e coisa e tal, mas meu pai, que sempre só quer o meu bem e me ajuda muito, ficou insistindo para eu trabalhar no escritório do amigo dele, que era muito maior e mais sólido, onde eu teria um plano de carreira, onde eu prestaria serviços para as maiores e mais lucrativas multinacionais do mundo, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar."

E o que você fez?, perguntei.

 

"Bem, aí eu rodei a baiana, né? Eu disse, porra, pai, já tenho 30 anos, sou formado em Direito, vou trabalhar onde eu quiser, caralho!"

E aí? Ele te deserdou? Deu na sua cara? Cometeu suicídio de tanto desgosto?

 

"Não. Ele falou, tá bem, meu filho, claro, é a sua vida."

Ficamos um pouquinho em silêncio e ele mesmo continuou:

 

"E eu pensei: putz, se tivesse falado isso dois anos antes, teria feito Penal e não Tributário. Se tivesse falado isso cinco anos antes, teria feito teatro e não Direito. Se eu soubesse que podia dizer não, nunca teria terminado o namoro com a Paulinha, nunca teria me forçado a ir à igreja, nada disso."

E completou:

 

"Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não."

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* * *

 

Respeito é uma via de mão dupla

Quando escrevo sobre obediência, muitas pessoas respondem com uma variação de:

 

"Eu obedeço meu pai/meu professor/minha esposa/etc… por respeito!"

* * *

Em algumas hierarquias, já entramos voluntariamente e de olhos bem abertos: ao aceitar o emprego de gerente do Banco do Brasil, ou me alistar tenente da Marinha, sabemos que teremos que obedecer ao vice-presidente e ao vice-almirante, etc.

Além disso, reconhecendo ou não o Contrato Social, obedecemos ao policial militar porque ele de fato tem o poder de nos matar ou nos prender.

Fora dessas situações bem específicas, ninguém tem o direito de mandar em nós.

Apesar disso, todo dia, o dia todo, é surpreendente a quantidade de ordens, implícitas e explícitas, que recebemos de nossas mães e de nossos maridos, dos segurança de shopping e das colegas de trabalho.

* * *

Então, quando alguém me dá uma ordem, eu até poderia "obedecer por respeito".

Mas uma pessoa que me dá uma ordem que ela não tem direito de dar é uma pessoa que não me respeita.

E não obedeço quem não me respeita.

* * *

Também sempre escuto variações da seguinte história:

 

"Não pude fazer faculdade de Letras porque meu pai me obrigou a fazer Engenharia".

Nesse caso, existem duas alternativas:

Ou o pai aceita as escolhas do filho e fica feliz por ele, seja cursando Artes Cênicas ou Direito;

Ou o pai não respeita as escolhas do filho e só lhe amará e aceitará se fizer o que ele quer.

Nesse último caso, como o pai não respeita o filho, eu diria que o filho está automaticamente liberado de respeitar o pai.

Afinal, respeito é uma via de mão dupla.

Monument 1976 by Philip Guston 1913-1980

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As várias encarnações da Autoridade

Sempre que falo de pai não estou falando de pai.

Nosso pai e nossa mãe são apenas as primeiras autoridades com as quais temos que lidar.

Depois, vêm professoras, chefas, coleguinhas, revistas femininas, padres, comédias românticas, etc, todas sempre tentando nos impor o mesmo roteiro preestabelecido:

Temos que ser monogâmicas, heterossexuais, religiosas, fazer universidade, trabalhar em tempo integral, namorar, casar, ter filhos, comprar casa, etc etc.

Muitas vezes, basta uma única discordância para sentirmos todo o peso da reprovação social sobre nós. (Perguntem a qualquer mulher que siga todo o acima mas que, pasmem!, não tenha filhos.)

Ser uma pessoa adulta é finalmente aprender a impor limites e dizer “não”.

Que aceitamos, por exemplo, que o mundo nos diga que temos que vestir gravata no tribunal ou usar cinto de segurança no carro, mas que não aceitamos que nosso pai nos imponha uma carreira, ainda que tenha nos sustentado no passado, ou que nosso chefe nos imponha trabalho no fim de semana, ainda que nos sustente hoje.

É estabelecer, com serenidade e sem rebeldia, que aceitamos ingerência externa somente até certo ponto.

Cornered 1971 by Philip Guston 1913-1980

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O poder de um "não"

A palavra "não" é uma das mais poderosas e libertadoras que existem.

Gavin deBecker, em seu livro "As virtudes do medo", enfatiza que "não" é uma frase completa. Um "não" sozinho já se basta.

Como rapidamente aprendem as mulheres nesse nosso mundo machista, qualquer coisa dita depois do "não" já transforma sua negativa em negociação.

Reparem a diferença entre:

 

"Quer sair comigo?"
"Não, hoje estou ocupada…" ou "Não, peguei uma gripe…"
"Ok, então, quando desocupar, rola?" ou "Assim que sarar, então, tá valendo?"

e

 

"Quer sair comigo?"
"Não."

(O livro "As virtudes do medo", sobre como se prevenir contra violência, já salvou a minha vida e a de algumas pessoas queridas também. É o livro que mais presenteei ao longo dos anos. Se você só aceitar uma recomendação minha de leitura, aceite essa. Vale em dobro para quem é mulher. Leia também o que a Lola Aronovich escreveu sobre o livro.)

* * *

A novela "Bartleby, o Escrituário", de Herman Melville, o mesmo autor de "Moby Dick", mostra um funcionário que finalmente aprende a dizer… não.

 

"Bartleby, pode ficar até mais tarde?"
"Prefiro não".
"Bartleby, pode ir buscar uma coisa ali na esquina?"
"Prefiro não."

Muitas vezes, basta um não para desmontar o sistema.

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A desobediência civil

 

Em 1846, o escritor norte-americano Henry David Thoreau foi preso por não pagar impostos. O dinheiro seria usado para financiar a Guerra Mexicano-Americana — talvez o maior crime da política externa dos Estados Unidos, uma disputa acirrada.

 

Thoreau escreveu, em "A Desobediência Civil":

 

"Eu me recuso a jurar lealdade ao Estado. Custa menos pra mim suportar a punição do que obedecer. Eu valeria menos se obedecesse."

Na cadeia, Thoreau percebeu a total impotência do Estado contra ele:

 

"Então, é só isso que podem fazer contra mim por quebrar suas leis? Eles me trancam aqui dentro mas meu pensamento, que é o verdadeiro perigo, continua livre. Como estou fora do seu alcance, decidiram punir meu corpo, como se fossem meninos que não podendo atacar um desafeto chutam seu cachorro."

Ou como escreveu Nelson Mandela em uma carta da prisão, publicada em "Conversations with myself":

 

"São apenas minha carne e meu sangue que estão trancados nessas paredes apertadas. Permaneço cosmopolita na esperança. Em meus pensamentos, sou tão livre quanto um falcão. A âncora dos meus sonhos é a sabedoria coletiva da humanidade."

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As empresas anunciam porque não podem nos obrigar a comprar

 

Os outdoors com fotos cada vez mais apetitosas de produtos cada vez mais distantes de serem comida são um bom sinal: querem dizer que as empresas de fast-food (sic) ainda precisam de nossa cumplicidade na ingestão do seu lixo.

Mesmo diante de todo o gigantesco poder econômico da empresa escocesa, é de fato incrivelmente fácil não-comprar dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. O ônus da ação é completamente deles: tudo o que preciso fazer é nunca entrar na casa do palhaço e pedir a carne prensada no pão.

Eles só lucram se formos todas cúmplices dos nossos próprios ataques cardíacos.

* * *

Não basta que todos os meios de comunicação afirmem que "homem tem que ser macho" ou que "mulher tem que ser recatada": é preciso também que todas as pessoas vigiem infindavelmente a masculinidade de uns e a sexualidade de outras.

Para exercer sua opressão, a Autoridade precisa converter as pessoas oprimidas em pessoas opressoras, ao mesmo tempo vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando, sendo julgadas e condenadas.

Felizmente, a Autoridade não pode obrigar ninguém a se prestar a esse papel. Ela sempre precisa que sejamos suas cúmplices.

Como escreveu Paulo Freire, em um dos livros mais lindos que já li na vida, quando a educação não é libertadora, o sonho da pessoa oprimida é tornar-se uma opressora.

Mas nós podemos dizer "não".

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A impotência da Autoridade

A Autoridade pode nos obrigar a muito pouco.

O pai pode deserdar o filho que escolheu ser ator de teatro infantil, mas é completamente incapaz de fisicamente impedi-lo de subir no palco ou obrigá-lo a frequentar as aulas de Penal I. A mãe pode expulsar de casa a filha lésbica, mas não pode fisicamente obrigá-la a sentir tesão por homens ou ser penetrada por um pau. A chefa pode demitir a funcionária recalcitrante, mas não pode fisicamente obrigá-la a assinar um relatório mentiroso ou a vender um produto defeituoso.

Talvez mais importante, nenhuma autoridade é onipotente: elas também pagam um preço por usar seu poder. O pai que deserda o filho, a mãe que expulsa a filha, a chefa que expulsa a funcionária, vão todas sofrer pelas escolhas que escolheram tomar.

Com certeza, teriam preferido (a Autoridade sempre prefere) que a vítima tivesse "ido por bem", que não tivesse sido necessária a traumática aplicação do castigo. Afinal, como não amar o capacho que lambe a bota que lhe pisa?

A Autoridade pode nos punir, mas não pode nos obrigar a ir contra nós mesmas, a abandonar nossos sonhos, a abdicar de nossos princípios.

Ela pode até nos matar mas, se recusarmos abaixar a cabeça, é completamente incapaz de nos vencer.

Nas minhas madrugadas mais difíceis, esse é sempre um grande consolo.

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Uma ressalva socioeconômica: privilégio & desigualdade

Ao refletirmos sobre obediência, rebeldia e respeito, é sempre importante termos em mente que nem todas as pessoas têm os mesmos direitos de interpelar as autoridades constituídas.

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Quando a Autoridade não pode obrigar, ela demoniza (literalmente) quem desobedece.

 

Escreveu Tulio Vianna, em "Transparência pública, opacidade privada":

 

"Não há uma conduta que possa ser considerada crime ou mesmo imoral em qualquer cultura. Somente a desobediência à norma possui a universalidade necessária para tamanha popularização do mito. … Lúcifer não foi um homicida serial, um sádico torturador ou um maníaco sexual. Nenhuma destas condutas o teria tornado o símbolo da maldade. Lúcifer desobedeceu a uma norma; desafiou o poder hegemônico; recusou-se a obedecer àquele que tudo vê, tudo sabe, tudo pode. É isso que faz dele o símbolo da maldade. …
A rebeldia se transforma em maldade. Paralelamente a esta transformação simbólica do arquétipo da resistência em símbolo da maldade, ocorre também a transformação do arquétipo do controle no símbolo da bondade. Deus é bom, por inventar as normas. A bondade é corolário do poder, do saber e do ver.
O mito da queda de Lúcifer é a passagem simbólica que marca a invenção da ética nas sociedades ocidentais. O bem se confunde com o controle; o mal com a resistência. O mito de Lúcifer é também o mito da legitimação do poder."

Naturalmente, se o rebelde é demonizado, ele também é desumanizado. E quem não é humano é bicho, é coisa.

Pode ser morto.

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“A sociedade não quer uma polícia honesta, porque no dia em que a polícia for honesta, o filho do banqueiro e do juiz será preso da mesma maneira que o jovem favelado. A polícia é corrupta porque convém à sociedade. Deseja-se uma polícia honesta? Então, o que vale para a favela passa a valer para o Posto 9. Não pode cheirar em Ipanema. Vai ter pé na porta na Delfim Moreira. A sociedade vai conseguir segurar isso?”

 

Hélio Luz, então chefe de polícia civil do Rio de Janeiro, no documentário "Notícias de uma guerra particular" (1999). (A íntegra da entrevista de Luz pro filme é imperdível.)

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Existe um truque simples para saber se você é uma pessoa privilegiada:

Digamos que está em um bar e comece algum tipo de confusão, briga, violência. De repente, ao longe, uma sirene. A polícia está chegando!

Se você já sente alívio, pois a polícia vai chegar e tudo vai se resolver…

Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas "cidadãs de primeira classe", que a polícia foi criada para proteger e defender.

Se você já tira a identidade do bolso, coloca em cima da mesa, põe as duas mãos bem visíveis ao lado do documento e pensa que, se fizer silêncio e nenhum movimento brusco, pode ser que consiga voltar pra casa levando só uns safanões…

Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas "cidadãs de segunda classe", que a polícia foi criada para reprimir e oprimir em nome da segurança e paz de espírito do grupo acima.

No Brasil, só a elite é inocente até prova em contrário.

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Incorporando o espírito de Thoreau, eu já peitei a truculência da PM do Rio de Janeiro algumas vezes.

Mas, antes que eu queira me dar tapinhas nas costas pela minha "coragem", eu repito para mim mesmo que sou branco, hetero, pósgraduado. Uma daquelas pessoas que parece ter pai juiz ou avô senador, cuja morte violenta O Globo estamparia na primeira página.

Um jovem negro morador de favela que interpelasse a PM rigorosamente como eu fiz estaria arriscando a própria vida.

Já eu arrisco apenas alguns tabefes ou, quem sabe, passar uma noite na cadeia em nome dos meus princípios.

E eu ainda pensaria: "Olha!, que heróico, que nem Thoreau!"

Aliás, Thoreau ficou rigorosamente uma única noite preso, até sua tia pagar os impostos que ele devia.

Enquanto isso, na mesma época, o Estado norte-americano estava matando, torturando e escravizando pessoas por terem feito muito menos do que se recusar a pagar impostos. Todas pessoas que, ao contrário de Thoreau, não eram nem brancas, nem escritoras, nem formadas em Harvard.

Por isso, nossa luta é para viver em uma sociedade mais democrática e republicana, onde todas as pessoas sejam cidadãs plenas e tenham o mesmo direito de interpelar os poderes constituídos sem medo de serem torturadas, mortas, desaparecidas.

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Espaço público vs espaço privado

Todo nosso processo de socialização tem como objetivo nos deixar mais dóceis, mais obedientes, mais domesticadas.

E funciona: quando vemos uma guarita, nós paramos, abaixamos a cabeça, nos identificamos, esperamos permissão de passar.

Mas essa guarita tem direito de estar ali? Essas pessoas têm direito de nos fazer perguntas e negar passagem?

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Teoricamente, um condomínio pode escolher designar suas ruas internas de públicas ou privativas: no segundo caso, abre-se mão de uma série de serviços públicos (entrega de correios, coleta de lixo, transporte coletivo, iluminação pública, etc) em troca do direito de só permitir a entrada ou passagem de quem se quer.

Caso decida que suas ruas internas são públicas, o condomínio pode desfrutar desses serviços também públicos mas, em contrapartida, não pode negar entrada ou passagem a ninguém. Afinal, a rua é pública.

Entretanto, cada vez mais condomínios tentam malandramente conseguir o melhor dos dois mundos: apesar de suas ruas internas serem públicas, ainda assim colocam uma cancela e seguranças armados na porta.

Leia também  Aos meus amigos homens: façam terapia

 

Ou seja, o condomínio não só bloqueia uma via pública como ainda obriga as pessoas a parar e se identificar para poder exercer seus direitos de cidadãs de transitar por uma via pública.

Abaixo, o Condomínio Península, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.

 

Foto de Arthur Jacob, publicada na Coluna do Ancelmo Góis, O Globo, 11 de dezembro de 2007
Foto de Arthur Jacob, publicada na Coluna do Ancelmo Góis, O Globo, 11 de dezembro de 2007.

 

A menos de cinco minutos dali, na Cidade de Deus, no dia 19 de junho de 2006, moradores revoltados bloquearam a Estrada do Gabinal, colocando fogo em pneus, madeiras e até mesmo em um ônibus para protestar mais um inocente morto sumariamente pela polícia, em uma operação que também deixou baleada uma criança de oito anos. 

Foram violentamente reprimidos (felizmente, sem perda de vidas) e logo aprenderam a lição: os ricos da Barra podem bloquear uma via pública na maior cara-de-pau; eles, não.

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Instinto de Obediência

 

Como socorrista, nossa primeira tarefa é não deixar as pessoas bem-intencionadas terminarem de matar a vítima. Em uma ocasião, se chego dez segundos atrasado, dois bons samaritanos teriam levantado um menino do asfalto e acabado de quebrar sua coluna.

Para manter as pessoas ocupadas e se sentindo úteis, eu passo a me comportar como um general no campo de batalha, tomo o controle da tropa e começo a delegar tarefas aos subordinados: você, de vermelho, liga pra polícia, 190; você, de verde, liga pros bombeiros, 193; você, de rabo de cavalo, consola a motorista e diz que não foi culpa dela; você, com a pasta, pega o triângulo no meu porta-malas pra desviar o trânsito, etc.

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O pior lugar para se ter um ataque cardíaco fulminante é no meio de uma multidão. A responsabilidade se dilui e as pessoas nem se sentem culpadas por não lhe ajudar: pensam que as outras também poderiam ter ajudado. Aliás, se ninguém ajudou, vai ver nem era tão sério assim. Melhor continuar andando, não se meter. 

 

E, à noite, todas aquelas santas pessoas que passaram por cima de você enquanto estrebuchava até a morte vão botar a cabeça no travesseiro e dormir o sono das justas.

(Esse mesmo processo mental nos permite conviver confortavelmente em meio a tanta miséria: afinal, eu não dei esmola ao mendigo mas qualquer um também poderia ter dado!)

Se pudéssemos escolher, seria melhor ter nosso ataque cardíaco diante de uma única pessoa. Ela vai ter sobre si todo o peso da responsabilidade. Sabe que, se não lhe ajudar, você vai fatalmente morrer. Não há mais ninguém para repartir esse fardo.

* * *

Uma das maneiras de quebrar a chamada "difusão de responsabilidade" é delegando tarefas. Ao invés de gritar um socorro genérico, experimente dizer:

 

"Você aí, de bigode loiro, vem aqui me ajudar agora!"

Para o homem do bigode loiro, já não existe mais o conforto da diluição de responsabilidade. Ele foi especificamente convocado. Se não atender, aquilo pesará em sua consciência pra sempre.

Se ele não ajudar, há uma boa chance de alguém na multidão, revoltada com a covardia do homem do bigode loiro, que absurdo!, fazer algo para corrigir esse abandono.

* * *

Uma leitora poderia refutar:

 

"As pessoas obedecem porque querem ajudar."

Sim e não. Nós obedecemos porque fomos treinadas desde cedo pra obedecer. Nesse exemplo, salvar uma vida é só a feliz consequência.

Todo nosso sistema escolar, toda a educação que recebemos dos pais, tudo o que todas as autoridades nos dizem, é um longo processo de quebrar nosso espírito para nos tornar mais obedientes e mais dóceis.

A mensagem "obedeça as autoridades" é infinitas vezes mais enfatizada do que "ajude as outras pessoas".

Não é de espantar, então, que para a maioria de nós, obedecer é um ato muito mais automatizado do que ajudar.

Obedecer, afinal, significa evitar o conflito, agradar, pertencer. Quer coisa melhor que isso?

* * *

Quando controlo a cena de um acidente, meu único receio é que minha interpretação de “o homem que sabe o que está fazendo” seja tão boa que desestimule alguém que realmente saberia o que fazer de se apresentar. Por isso, sempre pergunto se há algum médico ou enfermeiro presente.

Talvez seja esse o segredo da obediência.

As pessoas, nós todas, nunca sabemos nada de nada, mas temos uma fé profunda e inabalável que alguém, em algum lugar, sabe.

A chave pra controlar qualquer multidão, seja para salvar um atropelado ou invadir a Polônia, é convencê-los de que você é esse alguém.

deluge

* * *

 

Contra as soluções fáceis

Acontece sempre. Seja na sala de aula, ensinando racismo e desigualdade, seja nos textos sobre feminismo e privilégio.

Depois de uma longa exposição de um problema complexo, alguém pergunta:

 

“Ok. Entendi. Mas e agora? O que fazemos? Qual é a solução?”

Muitas pessoas sentem a mesma ansiedade. É compreensível.

Em um primeiro momento, parecem pessoas práticas e de bom-senso, de saco cheio de tanta punhetação intelectual acadêmica, e que querem simplesmente sair na rua e resolver o problema, oras. Vivas pra eles!

Mas, se você pára e pensa, pode concluir que o que falta a essas pessoas é justamente parar e pensar.

Um comentário que parece positivo (apesar de inócuo) acaba se revelando perigoso, ao sugerir:

 

— Incapacidade ou indisposição para discussão, reflexão ou diálogo, ou seja, para buscar suas próprias conclusões;
— Ansiedade por respostas prontas e simples, e por ações concretas e fáceis de realizar.

Vai chegando o final da aula, e estão todos ali me olhando ansiosos, de lápis em punho, esperando pela resposta certa, querendo saber “afinal o que devem fazer!”, e a impressão que tenho é que aceitariam qualquer besteira que eu falasse, desde que coubesse em uma frase e fosse fácil de decorar.

As maiores tragédias da história foram perpetradas por pessoas angustiadas para resolver um problema (real ou imaginário) marchando atrás de quem ofereceu uma solução simples e direta.

* * *

Quando respondo que não existe solução, que não sei a resposta certa e que não vou lhes dizer o que fazer, outro alguém sempre retruca:

 

"Então, de que adiantou? Pra que ficamos duas horas aqui perdendo nosso tempo? Isso [querendo dizer essa aula, minha matéria, a disciplina, a própria universidade, a vida, sei lá] não serve pra nada!"

E respondo:

Mas se eu lhes dissesse o que fazer, então serviria pra alguma coisa? Pior do que não servir pra nada, não seria extremamente perigoso? É pra isso que vocês vêm à universidade? Para que uma pessoa qualquer, só porque tem um doutorado e passou num concurso, lhes diga o que fazer? Não querem chegar às suas próprias conclusões?

* * *

Parece piada, mas depois desse longo discurso sempre tem alguém de cara sonolenta (vocês vão achar que estou zoando) que levanta o braço lá detrás e pergunta, de verdade, na lata:

 

"Tá, professor, mas afinal, o que é que é pra colocar no teste?"

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O prêmio por obedecer é ser a mais obediente

Pior, mesmo se fizermos tudo direitinho e se nunca desobedecermos nenhuma ordem, ainda assim nosso prêmio será apenas a satisfação de sermos "a melhor escrava".

Em 2010, Erica Goldson, a primeira aluna de sua turma no ensino médio, fez o seguinte discurso de formatura:

 

Estou agora cumprindo esse objetivo [de me formar]. Deveria ver isso como uma experiência positiva, especialmente tendo sido a melhor da turma. No entanto, em retrospecto, não posso dizer que sou mais inteligente que os meus companheiros. Posso atestar que sou apenas a melhor a fazer aquilo que me dizem e a trabalhar dentro dos limites do sistema.
Mesmo assim, aqui estou, e deveria estar orgulhosa por ter completado este período de doutrinação. Vou agora para a próxima fase que é esperada de mim, de modo a receber um documento que me certifica como apta para trabalhar.
Eu contesto, entretanto, que sou um ser humano, uma pensadora, uma aventureira – não uma trabalhadora. Um trabalhador é alguém que está preso numa repetição – um escravo do sistema que foi posto perante ele.
Mas a verdade é que demonstrei com sucesso que eu fui a melhor escrava.
Fiz o que me disseram até o extremo. Enquanto outros desenhavam durante as aulas, para mais tarde se tornarem grandes artistas, eu anotava tudo, para me tornar a melhor "fazedora de provas". Enquanto outros vinham para as aulas sem os trabalhos de casa feitos porque tinham passado a noite lendo algo do seu interesse, eu nunca deixei de entregar um trabalho. Enquanto outros estavam criando músicas e compondo letras, eu estava trabalhando em tarefas escolares adicionais para aumentar ainda mais minha nota, mesmo nunca precisando disso.
Daí, eu me pergunto: por que quis tanto ser a melhor aluna?
Sim, eu mereci essa posição. Mas e daí? Quando eu sair do sistema institucional educativo, serei uma pessoa de sucesso ou perdida para sempre?
Não tenho ideia do que quero fazer com a minha vida. Não tenho interesses porque sempre vi todo objeto de estudo como um trabalho a ser cumprido. Fui a melhor em todas as matérias só pelo propósito de ser a melhor, não para aprender.
E agora, sinceramente, estou assustada.

Veja Erica dando esse discurso (vídeo em inglês), leia o texto completo (em inglês ou português) ou confira uma adaptação para os quadrinhos do Zen Pencils (em inglês).

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Pelo direito de estarmos confusas

Uma vez, em sala de aula, eu acabara de expor um tempo verbal bem complexo para o qual não existia equivalente na língua materna das alunas. Uma delas, a que tinha mais dificuldade, levantou o braço e disse que ainda estava muito confusa. Perguntei se tinha mais alguém confusa na sala. Muitas levantaram o braço.

E expliquei:

Vocês acabaram de ser expostas a uma quantidade grande de informação sobre um tempo verbal totalmente novo, que funciona de um modo bem diferente da lógica da língua nativa de vocês. Diante disso, a reação mais correta, mais apropriada e mais humana é mesmo ficar confusa.

Se, agora, nesse momento, vocês estivessem seguras de ter entendido tudo, provavelmente seria uma falsa confiança, fruto de um entendimento incompleto. Vocês ainda vão passar vários dias confusas, mas não tem problema. O teste é só daqui a um mês. Enquanto isso, vamos treinar isso juntas, em sala, em grupos, sem valer nota, até vocês de fato saberem como usar esse tempo verbal.

Até lá, ficar confusa só faz bem.

A aluna que fez a primeira pergunta me olhou com um alívio tão grande, mas tão grande que fiquei até emocionado, e desabafou:

 

"Nunca ninguém tinha me dito que eu podia ficar confusa!"

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Os grandes crimes da humanidade, as merdas absolutamente gigantescas, os genocídios e os fascismos, foram todos cometidos por pessoas obedientes e cheias de certezas.

As pessoas rebeldes, as pessoas incertas, as pessoas do contra, as pessoas confusas, essas podem até fazer muita besteira, mas não marcham em uníssono ao som de tambores.

 

Desde o Julgamento de Nuremberg, "estar só obedecendo ordens" já não é mais defesa para ninguém.

 

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É mais fácil pedir perdão do que permissão

Uma velha parábola. Da época em que fumar ainda era socialmente aceitável.

Sala de espera. O homem puxa um cigarro e, antes de acender, pergunta à recepcionista:

 

“Posso fumar aqui?”
“Não, senhor.”

Ele está guardando o maço quando percebe todas aquelas guimbas a sua volta, fumadas até o fim. E questiona:

 

“E essas guimbas? De quem são?”

E a recepcionista, imperturbável:

 

“Ah, sim, são das pessoas que não perguntaram.”

* * *

 

Não temos como calar o mundo

Por todos os lados, vejo pessoas mudando suas vidas, abdicando de seus sonhos, se virando ao avesso, só porque não aguentam mais os constantes comentários, críticas, questionamentos de parentes, colegas, amigas.

Mas talvez exista uma maneira diferente de encarar a questão.

A Autoridade, e todos os seus representantes, sempre tentarão determinar nossa conduta, mandar em nossa vida, julgar nossas escolhas. Não há nada que possamos fazer para calar suas vozes.

Assim como o lado bom da publicidade é que o capitalismo ainda não pode nos obrigar a consumir, esses comentários invasivos e violentos significam que estamos de fato vivendo a vida que gostaríamos de viver.

Quando o pai do ator de teatro infantil critica as escolhas profissionais do filho, este sempre pode pensar, satisfeito e aliviado:

 

"Sim, estou ouvindo isso, mas hoje sou ator de teatro infantil como eu sempre quis. Pior seria que tivesse feito Direito, como papai mandou, e hoje estaria ouvindo igual, por alguma outra coisa qualquer, por trabalhar no escritório errado ou por ter perdido uma causa, mas nunca teria realizado meu sonho de ser ator de teatro infantil."

Como não existe a possibilidade de calarmos o mundo, nossa melhor hipótese possível é fazermos o que quisermos de nossas vidas e que o Mundo fale o que quiser.

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Uma nota pessoal do Alex

Estou há vários meses pensando, escrevendo, burilando a Prisão Obediência. Quando finalmente termino um texto assim tão elaborado, gosto de enviar uma primeira versão para as pessoas assinantes do meu newsletter. Em poucas horas, eu já tinha recebido centenas de emails de todo o Brasil, com leituras cuidadosas, cautelosas, criteriosas; com dúvidas, sugestões, comentários. Não tenho como descrever para vocês o quanto esse texto que você acabou de ler está melhor graças a todo esse feedback, nem o quanto eu fico emocionado por tanto carinho e generosidade. Muito, muito obrigada a todo mundo que leu, opinou, ajudou.

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Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvidas, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.

Agora, estou promovendo o encontro "As Prisões" por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.

O encontro "As Prisões" é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.

O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)

Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.

Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.

Ao longo de 2014, todas As Prisões serão enviadas primeiro, com exclusividade, às pessoas assinantes do meu newsletter e, então, publicadas aqui no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.

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Todas as ilustrações desse texto são pinturas do artista canadense Philip Guston (1913-80).

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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu