Que tal se eu também contribuir com o tema? O ponto de vista de pai.

Somos uma típica família de classe média paulistana, ela é médica veterinária e eu engenheiro, um executivo. Temos dois filhos, a Catarina e o Guilherme (4 anos e 6 meses respectivamente). Vou contar de uma só vez a história desses meus dois partos porque estão muito interligados, até porque não consigo evitar chamá-los de Projetos, 1 e 2, já que ambos são evidências do benefício do planejamento.

Não somos um casal “alternativo”, exceto pela leve preferência por comida orgânica. Aliás, somos até bem normais. Não fazemos yoga nem temos tatuagens, não sabemos tocar instrumentos musicais, não somos vegetarianos e nem adeptos de homeopatia. Até termos nossos filhos, nossa rotina era a carreira, com pequenas pausas para a gastronomia. Depois mais carreira, carreira e carreira. Hoje, depois desses dois projetos, parquinhos e escola ocupam também um espaço importante.

Projeto 1, Parto Natural Hospitalar da Catarina, setembro de 2010

Quando soube que eu estava grávido, não tínhamos qualquer meta romântica ou sonho para o nascimento do bebê, somente expectativas. Assim como a maioria das mães, esperávamos um parto normal, porque é mais seguro, porque é mais saudável. Porém, eu tinha uma informação que fez toda a diferença: no Brasil o índice de cirurgias cesarianas é muito maior que em países da Europa, mais que 50% dos nascimentos

Não sei quando eu soube disso, talvez lendo almanaques de estatísticas de países ou algum artigo de revista. Não sabia da existência do parto natural, domiciliar e sequer sabia o que é uma doula. Parteira para mim era quase uma benzedeira (que também não sei o que é).

Nunca conversamos profundamente sobre isto pois acreditávamos que o parto normal seria o final certo se as condições fisiológicas da gravidez fossem favoráveis e tivéssemos acesso à um bom hospital. 

Minha esposa conversou com familiares e elegeu, dentre as indicações, a melhor ginecologista e obstetra conhecida, melhor ainda, atendia pelo nosso convênio médico (um muito bom).

Ela foi nas consultas de pré-natal, tudo ótimo, tamanho, peso, batimentos, pressão, data provável de parto (dpp), ultrassom (nesses eu também fui). 

Tudo como tinha que ser. 

O desejo do parto normal foi levado às consultas, mas sem nenhum compromisso explícito. Lá para a semana 36 (de uma média de 40, para outros pais desavisados), eu também fui à consulta, pois afinal de contas, queria conhecer a Dra. C. que iria cuidar da gente no dia do parto.

A consulta foi legal, tudo ótimo, tamanho, peso, batimentos, pressão, dpp… depois sentamos, falamos de maternidades (já tínhamos visitado as “top of mind”) e perguntei despretensiosamente: “Que bom que está tudo bem. Como devemos planejar o parto para não cairmos no lado negro das estatísticas de cesarianas? Quais os sinais objetivos de que está na hora de ir para a maternidade?”

As respostas vieram fragmentadas, como se fosse preciso várias linhas de defesa da argumentação. Apesar de as palavras terem sido muito bem colocadas, talvez nem fossem essas, assim soaram para mim: “parto não se planeja, o que tiver que ser, será”, “a Juliana é muito delicada, acho que ela não vai aguentar um parto normal”, “parto normal mesmo, também chamado de natural, é com uma doula, profissional que não faz parte da minha equipe”, “não se preocupe, a Juliana vai saber quando chegar a hora”, “deixe que eu aviso vocês quando o bebê estiver pronto”.

Devo ter deixado claro meu desconforto com as respostas, mas mantivemos a cordialidade e nos despedimos. Me dei o tempo do elevador chegar à garagem e entrarmos no carro antes de emitir uma opinião à minha esposa. Falei com as exatas palavras: 

“Ela vai fazer uma cesariana em você.” 

Meu tom não era de terror nem derrota, mas de convicção. Será que não estamos sendo convincentes dos nossos desejos? Será que entendi errado as estatísticas? Por que o convênio médico permitiria uma cirurgia que não é necessária? Podemos mudar de médico estando tão próximos do nascimento? 

Pesquisando, explorei os temas doulas, partos na Europa e cesarianas no Brasil. Foram referências suficientes para abrir um outro mundo para mim. Deste momento em diante eu soube que para nascer bem no Brasil é preciso vencer algumas batalhas.

Primeira Batalha: Informação

Arte: Gioia Albano

Naquela semana tirei alguns dias de folga, ficamos procurando entender o contexto em que nossa situação se encaixava, os interesses envolvidos, o papel dos médicos, hospitais, planos e saúde. Os aspectos culturais e econômicos deste complexo sistema. 

A palavra “doula” era a referência mais forte que tínhamos e ao que nos apegávamos naquele momento, uma bóia que flutuava em um oceano de informações. Encontramos um site que tinha uma lista de nomes de doulas, mas era uma lista de desconhecidas sem nenhum elemento para escolher.

Me apeguei então a um critério que me ocorreu: queria um nome alemão, pois li que na Alemanha esta era uma profissão tradicional e respeitada. Eu tinha a expectativa de que uma pessoa que conhecesse os costumes de lá pudesse dar as respostas que buscávamos. Achei a Andrea Steiof, Doula alemã radicada em São Paulo e que, pela facilidade de línguas, é procurada por estrangeiros que tem seus filhos no Brasil. Liguei também para outras duas ou três doulas, mas escolhemos marcar um encontro com a Andrea.

Achamos também alguns sites de clínicas obstétricas que expressavam especial atenção aos partos normais e humanizados, mas ainda eram apenas opções das “páginas amarelas”, naquele momento podiam não passar de tentativas de comercialização de serviços sem qualquer diferencial real na filosofia ou ciência aplicada. Ainda assim, gostei do site da Casa Moara.

No primeiro encontro com a Doula, a primeira impressão não poderia ter sido melhor. Ela foi muito racional e objetiva, atenta à nossa insegurança em tomar decisões e nos explicou seu papel no processo. Tornou-se para sempre nosso porto seguro nas decisões. Também endossou nossa ideia de conhecer a equipe da Casa Moara. 

Posso dizer que ela influenciou nossa decisão sobre a equipe médica e não o contrário. Entendemos neste encontro, de maneira definitiva, que a Doula é a responsável por oferecer alternativas para o maior conforto físico e emocional da mãe e da família durante a gestação e nascimento. 

Tudo isso, nada mais do que isso. 

Na semana seguinte nos consultamos com a Dra. Andrea Campos, obstetra na Casa Moara, outra ótima interação. Nosso maior receio era que ela não aceitasse nosso caso estando já no oitavo mês de gravidez. Pelo contrário, logo percebemos que a mudança de médico na última hora era sua rotina pois as armadilhas do sistema vão ficando mais visíveis no final da gestação. Falou do restante da equipe, da Márcia Koiffman (Obstetriz), que mais tarde me fez entender o papel e valor da parteira.

Iniciamos o acompanhamento semanal na Casa Moara. A nossa Doula veio em casa algumas vezes, fez massagens, deu uma aula de anatomia e fisiologia do parto e amamentação. Indicou muitos sites, músicas e livros, líamos bastante e avidamente, estávamos famintos de informação. Estava vencida a primeira batalha.

Fomos à uma reunião no Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama), onde conhecemos a Ana Cristina Duarte, pessoa que admiro pelo seu pioneirismo, garra e obstinação pela causa do nascer bem no Brasil, e por fim montei nosso plano de parto. Eu fazia tudo de uma forma quase militar, estudava todos os aspectos e recursos que podiam ou não ser aplicados, dava sugestões. Pedia recomendações para a Doula e Médica. Propus até usarmos óxido nitroso (gás hilariante) durante o trabalho de parto, até que a Doula me disse que não existia isso no Brasil, só em alguns países nórdicos. 

Ri de mim mesmo, parecia um adolescente escolhendo acessórios para o carro novo. Virei um aficionado pelo tema. Cheguei a cogitar o parto domiciliar, mas minha esposa achou ousado demais. Confesso que não queria ir tão longe naquela nossa primeira viagem, mas ficou no ar para a próxima vez. Montei o cronograma e planos de contingência. Acredito que a Doula e a Médica devem, em sua intimidade, ter visto graça em tamanha dedicação minha com o planejamento.

Decidimos então por um Parto Natural Humanizado Hospitalar, se possível na banheira e sem anestesia, além de todos os detalhes operacionais.

Mas claro que, na vida, nada é perfeito.

Segunda Batalha: Família

Arte: Gioia Albano

Como se não bastasse ter enxergado a armadilha e encontrado a o caminho seguro, eu ainda tinha que convencer a família e amigos de que fazíamos o correto e, mais do que isso, tive que lidar com a responsabilidade de discordar de uma multidão recomendando em favor da cesariana eletiva.

Os dias foram passando, tudo ótimo, só curtindo os chutes e expectativas normais do fim de gravidez, alguns alarmes falsos, contrações fora de hora e começaram questionamentos sobre marcar data, esperar demais, riscos à que estávamos expondo nosso bebê, casos e tragédias. Um terrorismo psicológico tão comum à que somos submetidos neste momento de fragilidade. 

Acho que minha esposa estava insegura, podia desabar a qualquer momento. Eu a mantinha de pé, fiz tudo que estava ao meu alcance para trazer aliados para meu lado, mostrei vídeos, mandei artigos, livros, levei a mãe da minha esposa a um encontro na Casa Moara na expectativa de que, vendo e ouvindo outras grávidas e profissionais conscientes e engajadas, despertaria nela o mesmo encantamento que eu sentia por ter enxergado este caminho.

Esforço em vão, afinal de contas, é muito mais fácil não assumir nenhuma responsabilidade, delegar ao médico as decisões (ou ao destino, se preferir), eximindo-se das consequências das próprias ações e omissões. 

Este tema foi, inclusive, objeto de uma discussão exaltada em meu momento de catarse, quando decidi por fim abandonar os papéis de vítima (da armadilha) e pregador (do caminho). Assumi para mim toda a responsabilidade, fosse um sucesso ou um fracasso, perante todos eu me tornei o único responsável pelo desfecho. Ou melhor, se fosse um sucesso, possivelmente seria vista apenas a mão providencial da “sorte”. Minha esposa sempre me apoiou e buscava me confortar fazendo eu entender que era informação demais para eles, que tínhamos que seguir sozinhos. Minha família, por tradição, é mais aberta às novas experiências e ainda que discretamente nos deu seu apoio. Este foi o maior desafio, discordar dos que acredito que queriam nossa felicidade sobre algo que é tão crítico e relevante como a saúde de minha esposa e filhos. Foi muito marcante correr o risco de ser apontado como único responsável por uma tragédia familiar.

Uma dolorosa batalha, com perdas para ambos os lados. Mas que me fortaleceu. 

Sabendo que, apesar de tudo, queria dividir com eles esta minha alegria, mantive até o fim o plano de que a mãe de minha esposa estivesse presente na sala de parto no momento do nascimento. E assim foi.

Terceira Batalha: Natureza

Arte: Gioia Albano

A bolsa estourou em uma bela manhã. Ficamos no quarto quietinhos, lendo mais e monitorando as contrações, nos comunicando com a Doula, a Médica e a Obstetriz. Ao anoitecer, fomos a uma sessão de acupuntura recomendada pela médica (pois as contrações estavam irregulares). De lá, fomos para a maternidade do Hospital São Luiz, que dessa vez era para valer. O trabalho de parto estava evoluindo, um dos eventos mais incríveis da natureza, e ela está do seu lado, um momento de riqueza e intensidade do puro comportamento animal. Aqui, o inimigo é provavelmente o seu medo e insegurança, cultivados indevidamente pela sociedade civilizada. Afinal de contas, somos os únicos mamíferos na natureza que duvidam de sua capacidade de dar à luz.

Demos entrada na maternidade em uma quinta-feira e, naquela madrugada, às 3:33h, a Catarina nasceu sem anestesia, sem traumas, sem violência, sem humilhação. Do começo ao fim eu sabia tudo que se passava, estava tão confortável e seguro que fui capaz de cuidar também dos detalhes mais simples, que contribuíam para o desenrolar dos acontecimentos: música ambiente, aromaterapia, fotografias. Garantir que nada fugisse ao nosso Plano de Parto. Nossa filha nasceu na banheira, com toda a saúde e vitalidade que era de se esperar. Choros de emoção, cortei o cordão umbilical depois que parou de pulsar, mamou logo em seguida e ficou o mínimo de tempo longe de nós desde então. Dormia conosco no quarto e fizemos questão de trocar todas as fraldas, dar todos os banhos e aprender com as enfermeiras do hospital as técnicas e cuidados com o recém nascido. Fomos bons alunos.

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Destaco ainda desta experiência:

  • Minha esposa foi perfeita, manteve a calma, consciência e bom humor por todo o tempo, não cogitou desistir, mantendo-se maravilhada e maravilhosa ao longo de todo o trabalho de parto;
  • Esta foi a melhor experiência da minha vida, meu melhor projeto até então, planejado e executado com perfeição. Atribuo este sucesso aos excelentes profissionais que nos assistiram e à fortuna que a natureza oferece à grande maioria das mulheres;
  • Ter a oportunidade de oferecer aos filhos desde seu primeiro instante de angustia, o conforto e segurança que nós demos à Catarina durante seu nascimento traz uma responsabilidade adicional, algo como elevar a régua do “dar do bom e do melhor”;
  • Ver a mãe de minha esposa realizando de forma tão participativa aquilo que possivelmente é um sonho de todas avós, testemunhar a filha guerreira dando luz à neta foi para mim mais uma missão cumprida, ainda que poucos tenham visto desta forma;
  • Esta experiência nos deu oportunidades de aprender um pouco sobre a fisiologia e psicologia do nascimento e infância, por isso incorporamos ao nosso estilo de vida algumas boas práticas que nos foram apresentadas, tais como amamentação exclusiva com livre demanda, criação com apego, medicina antroposófica, educação construtivista e alimentação saudável.

Projeto 2, Parto Natural Domiciliar do Guilherme, abril de 2014

Quando eu soube que estava grávido pela segunda vez, só pensava em uma coisa: ter um parto ainda mais emocionante que o primeiro. Um desafio, pois o evento do nascimento da Catarina três anos antes fora um grande sucesso e superar esta marca seria muito difícil. Rapidamente entendi que só seria possível se tivéssemos um parto domiciliar, como havíamos “combinado” na última vez, e se a Catarina participasse de forma ativa e saudável do processo. Desejo que mais tarde dividi com a Andrea Steiof, nossa Doula oficial.

Apeguei-me ao compromisso do parto domiciliar com minha esposa. Na época, havia algumas repercussões relevantes na mídia sobre esta “nova” modalidade de parto. De um lado, pessoas ilustres e iluminadas como Gisele Bündchen (que teve seus dois filhos no conforto e segurança do lar), explorando toda a naturalidade e feminilidade da questão. Por outro lado, mártires como Caroline Lovell, ativista australiana pelo apoio aos partos domiciliares que tragicamente faleceu em 2012 por complicações em seu próprio parto. Sem contar O Renascimento do Parto, o filme.

Portanto, a ideia em si provavelmente não seria novidade para aqueles com os quais a dividiríamos, mas as opiniões médicas divergentes e a realidade de que não somos efetivamente personalidades da moda ou TV e nem moramos na Holanda, Suécia ou Austrália traria naturalmente um sentimento de oposição ao nosso plano. Assim, assumimos (em princípio) uma posição discreta sobre o tema.

Não vou defender aqui estatísticas e meu ponto de vista sobre riscos de partos domiciliares vs hospitalares. A análise de riscos tem um limite subjetivo que inviabiliza o debate de posições ideologicamente antagônicas. No entanto, esclareço que sou uma pessoa racional e, com as informações que dispunha, as decisões que tomamos foram as de maior probabilidade e impacto na felicidade da minha família, no curto e longo prazos. Não teríamos feito se não fosse assim.

Desde o início minha esposa estava fazendo acompanhamento de pré-natal com a Márcia Koiffman, Obstetriz da Casa Moara que já tinha nos assistido como parte da equipe no parto da Catarina. Ela, com auxílio da Priscila Colacioppo, seria a parteira responsável pela assistência.

Todos os exames estavam ótimos. Tínhamos boas perspectivas de poder completar o ciclo com um parto domiciliar, já que a gravidez estava transcorrendo muito bem e com riscos habituais (baixo risco). Compramos um kit de parto domiciliar e uma banheira inflável. Fizemos, inclusive, um test drive na banheira e a Catarina adorou. A nossa Doula veio em casa, fizemos exercícios e tivemos as conversas de costume. Tudo parecia muito mais fácil, sem desafios, talvez até desinteressante. Demoramos até entrar no clima.

O fato de eu ter sido desligado de onde trabalhava um mês antes da dpp me ajudou a entrar no ritmo. Tinha 24h por dia para preparar tudo. Montei nosso Plano de Parto, bem mais objetivamente que no caso da Catarina, mas igualmente meticuloso e completo. O único ponto incomum, além do fato de que seria um parto domiciliar, era o cuidado em envolver a Catarina, que se possível assistisse e participasse nos momentos mais marcantes. Nos esforçamos para isso.

Envolvendo a Catarina

Quando falamos para Doula que esta era a meta dela, ela imediatamente entrou em contato com suas colegas (não só no Brasil, mas também no exterior) em busca de informações e experiências de como deveríamos fazê-lo e quais os cuidados em caso de as coisas não correrem bem, tanto no parto como com a Catarina. Nossas dúvidas eram sobre a necessidade de ter alguém que cuide exclusivamente da Catarina e também como prepará-la psicologicamente para assistir ao evento, de forma que fosse positivamente marcante. 

Lemos bastante e concluímos que as crianças têm dispositivos naturais de proteção que, se não estivessem confortáveis, iriam se refugiar em seu quarto ou até mesmo dormir. Além disso, a melhor forma de prepará-la era mostrando vídeos, fotos, simulações com bonecas, falando com ela sobre o que ocorreria e também ouvindo suas expectativas. Falávamos que a mamãe poderia fazer careta e barulhos, mas que não era nada de ruim. Nós também a levamos para as consultas de pré-natal. Até hoje ela se encanta ao assistir vídeos de nascimentos de bebês e animais.

No momento do parto, fomos recompensados por nosso esforço e dedicação. Ela já dormia quando a bolsa estourou, perto de meia-noite. Pouco antes das 4 da manhã, minha esposa estava na banheira em nosso quarto quando acordei a Catarina, peguei-a no colo e a levei para sala. Conversei alguns minutos com ela, contei que o Bill (apelido do Guilherme) estava nascendo e que a mamãe estava no quarto com a Andrea, a Márcia e a Priscila, que ela ia gostar que a Catarina fosse lá para ver. Entramos devagar no quarto, minha filha no colo, ficamos olhando um pouco distantes. Nesta hora, minha esposa já estava mais serena o que contribuiu para o bem estar da Catarina. Eu, no ouvido da Catarina, ia falando tudo que acontecia: “agora a Márcia vai colocar um instrumento na barriga para ouvir os barulhinhos do Bill”, “a água está quentinha para a mamãe e o Bill não ficarem com frio”, “olha lá a mamãe fazendo força para ele sair, já está quase nascendo”. Percebi que ela entrou no clima muito rapidamente, sem medo nem ansiedade. Estava esperando os próximos acontecimentos. Ela já tinha visto algo parecido antes.

Na última contração ela já queria se aproximar. Mesmo com toda a movimentação, não tirava os olhos da mamãe e inclusive fazia perguntinhas: “é agora papai?”, “a mamãe está fazendo força?”. Depois que nasceu, ficou olhando admirada para o irmãozinho, parecia um bonequinho saído de seu armário de brinquedos. Se eu pudesse ler os pensamentos dela, estaria escrito “a mamãe tinha razão, o Bill estava dentro da barriga dela”. Foi gratificante ver que ela não se assustou, aos três anos e meio de idade, aceitou de forma natural o valioso momento e a realidade de que haveria mais alguém entre nós, vindo no meio da madrugada de dentro da mamãe. 

Mais tarde, ajudou a vesti-lo e pesá-lo. Fazia carinho e cobria-o enquanto mamava. Sei que estava também avaliando o impacto que aquilo traria na sua vida, teria que dividir a mamãe e o papai, mas acho que a experiência que ela teve foi relevante para que tivesse fatos reais e nítidos na memória, não apenas fragmentos, e pudesse assim pensar sobre eles, como se encaixavam, como fluíram, poder contar na escola nos dias seguintes sentindo-se parte da coisa toda, evitando, portanto que se colocasse em situação de contemplação e exclusão. Na sua forma, lúdica. foi também protagonista.

Depois de tudo, ainda tivemos nosso momento artístico. Com a placenta, fizemos algumas impressões com tinta vermelha (sangue). Deitou-se com mamãe e o irmãozinho e dormiram o resto da manhã.

Gerenciando a Torcida

Novamente a torcida organizada se manifestou. Desta vez, estávamos mais conformados com o fato de que não teríamos apoio efetivo e, portanto, também não expúnhamos abertamente nossos planos. Minha esposa tentou por algum tempo esconder sua decisão de ter um parto domiciliar ou pelo menos se esquivava de responder diretamente perguntas comprometedoras quando questionada por sua família. “Para quando está marcado?”, “Que maternidade será?”. Eu, mais seguro e entusiasta do tema, era franco e aberto ao debate. 

Alguns amigos ou familiares davam sinais discretos de sua discordância, outros tentavam parecer democráticos com um “eu discordo, mas respeito sua decisão”, mas não deu para deixar de notar a tentativa de se criar um clima de terror ouvindo novamente casos e tragédias, quando ocorreram alguns alarmes falsos. A lição tirada é que ainda há uma conspiração em favor das cesarianas. As exceções são motivo de comemoração. Nesta disputa desigual, a informação e convicção em seus desejos são seus maiores aliados.

Felizmente, tínhamos um apoio distante, alguém que nos entendia (eu mesmo nem precisava, mas foi importante para minha esposa). Um casal de amigos nossos, brasileiros e residentes na Coréia do Sul que, inspirados na nossa aventura com a Catarina, tornaram-se também admiradores do processo de nascer bem, dividiam muitas experiências conosco. Também tiveram seu bebê de parto humanizado em um país que privilegia cesarianas (cerca de 40% dos nascimentos). Com eles, aprendemos que há uma continuidade nisso tudo. Não basta nascer bem, é preciso alimentar bem, limpar bem, sujar bem, carregar bem, dizer “não bem, dizer sim bem. Há muito que se aprender na educação, geralmente tanto melhor quanto mais precisa for a comunicação e os julgamentos forem baseados em princípios de relacionamento e necessidade naturais do ser humano.

O Dia Seguinte

Uma quinta-feira, nada poderia ter sido mais caseiro. A equipe ainda estava em casa, guardando os equipamentos, e eu fui comprar pão quentinho. Fazia muito tempo que eu não comprava pão para o café da manhã. Tomamos um caprichado que eu havia planejado: ovos, bacon, pão de queijo, suco de laranja, queijos, frutas e iogurte. Eu coloquei no nosso Plano de Parto até o cardápio das refeições. Se fosse de noite, seria uma canja de galinha. No almoço, uma lasanha com salada. Eu tinha tudo planejado.

Minha esposa ligou para a família e divulgou a notícia no Facebook. Recebemos visitas em casa. Pouco se falou sobre o evento em si, mas era visível que todos estavam surpreendidos com a simplicidade da vida. Sem maternidade, sem festas, sem estacionamentos, sem equipe de filmagem, sem lembrancinhas ou roupinha de saída de maternidade. Na ausência disso, tudo ficou claro como isto não passa de um negócio.

À noite, recebemos um pediatra que fez um exame de rotina. Tudo ótimo, nos orientou quanto às vacinas, exame do pezinho, ouvido e vitamina K.

Na semana seguinte fui ao cartório fazer o registro. Tinha a documentação oficial emitida pela equipe, mas sabia que poderiam questionar em qual maternidade nasceu, e uma resposta como “nenhuma, nasceu em casa” poderia facilmente burocratizar minha vida. Mas não, correu tudo bem e para minha surpresa ainda tive uma agradável conversa no cartório com a atendente sobre como foi nascer em casa.

Claro que, com o plano de saúde não foi tão fácil. Seis meses depois e ainda discutiam o reembolso das despesas. É a epidemia de cesarianas: muito tem sido considerado como hipótese para o elevado índice de cesarianas no Brasil. A Organização Mundial da Saúde recomenda que não sejam mais do que 15% dos nascimentos. Alguns países como Holanda já tiveram índices próximos de 10%. O tema é mesmo complexo e não tenho pretensão de trazer uma conclusão definitiva. Mas ouso deixar alguns elementos para reflexão.

Encontrei uma vizinha do apartamento de baixo no elevador e contei a aventura. Ela imediatamente disse que ouviu um chorinho “baixinho e bonitinho” na madrugada, achou mesmo que tinha nascido. Fiquei feliz de ter dado a ela a oportunidade de acordar naquele dia frio e ensolarado de outono com os primeiros sons de uma nova vida.

Michel Boczko

Engenheiro de formação, executivo de profissão, cozinheiro e pai de paixão. Aos 37 anos, mora em São Paulo e é pai de dois filhos e entusiasta do tema de nascer e crescer bem no Brasil e no mundo.