Assim como é preciso treinar os ouvidos para aprender a discernir timbres, tons e efeitos em uma música, assim como é importante estarmos atentos caso uma buzina soe para não sermos atropelados, ou em alguma emergência, da mesma forma, também precisamos treinar para começar a realmente ouvir as pessoas, comunicar e gerar conexão.
Eu não sei se esta é alguma grande verdade, mas costumo dizer que as pessoas mais solitárias, na realidade, não vivem em um mundo onde os outros estão fechados e não dão a mínima para ninguém mas, ao contrário, elas próprias não abrem espaço para que possa haver aproximação por parte de quem as rodeia.
Aqueles que mais reclamam de indiferença são, eles próprios, indiferentes. Eles não olham os outros nos olhos, não perguntam como está a vida das pessoas próximas, não despendem atenção no cuidado de alguém e sempre fazem alguma coisa sutil – ou nem tanto assim – que afasta as pessoas. Este fechamento acaba levando a falhas de comunicação, relações difíceis, complicações no trabalho e todo tipo de confusão. Guerras ocorrem e perduram simplesmente porque nenhum dos dois lados quer ouvir.
Um dos antídotos para esta condição é treinarmos nós mesmos a abertura, reconhecermos a nossa responsabilidade nesse processo, ao invés de esperar que o mundo inteiro se reconfigure e decida ser bonzinho conosco.
Repouse sem tendências
“Com empatia nós não direcionamos, nós seguimos. Não apenas faça algo, esteja lá. Empatia repousa na nossa habilidade de estar presente sem opinião.” ―Marshall B. Rosenberg, criador da Comunicação não violenta
O outro diante de nós – seja durante uma briga ou na mais calma e fascinante sincronia – é o lembrete constante de que não temos controle, de que não há garantia alguma que próximo passo vai ser do jeito que esperamos e de uma forma com a qual vamos saber lidar. Isso nos deixa ansiosos.
A gente dificilmente é capaz de repousar em meio ao caos. E essa é uma forma de não nos relacionarmos com as situações do jeito que elas se apresentam.
Essa ansiedade também pode se manifestar de outras maneiras, como o cacoete de fazer inserções a todo momento – até mesmo antes do outro terminar sua fala, contaminar o que é dito com significações próprias, concordar/discordar, agitar os braços ou pernas, sempre querer algo, ao invés de repousar sem tendências, aberto, simplesmente presente.
Muitas características da escuta profunda são mais conseqüência de um estado de relaxamento do que fruto do esforço de aparar arestas. Toda a abertura, acolhimento e empatia necessários para realmente ouvir encontram um solo muito fértil para se proliferarem quando há o espaço oferecido pelo relaxamento.
Se você não conhece nenhum método para se desenvolver nessa direção, recomendo começar por este vídeo.
Ouça a situação por completo
As pessoas se comunicam em vários níveis. Absolutamente tudo está falando. Sejam as roupas, um anel, um olhar, uma respiração mais demorada, um jeito específico de se curvar ou se levantar, a forma como batemos as mãos ou os pés. Cada pequeno detalhe tem uma voz, toca uma música. Esteja atento a todas elas.
Quem já teve a oportunidade de assistir uma orquestra tocando ao ar livre pode relatar como o ambiente inteiro se relaciona com o que está sendo tocado. Não é algo metafísico, nem fantasioso. O vento sopra de uma forma diferente, as pessoas se olham, sorriem silenciosamente, as árvores balançam, os pássaros enlouquecem.
Quando uma pessoa fala, algo similar acontece, ainda que numa escala menor. Há uma variedade de outras ações sendo executadas ao redor e isso pode facilitar ou dificultar o processo de comunicação. Às vezes, ela pode estar querendo desabafar, mas o ambiente não é favorável. Algum ruído pode estar tirando o foco da conversa ou simplesmente pode ser que hajam pessoas ao redor em outra sintonia.
Alguém atento a todos estes detalhes pode tomar uma ação simples como trocar de lugar e isso mudar completamente os níveis de abertura e conforto.
E não esqueça de ouvir o silêncio.
Entre no mundo do outro
Certa vez ouvi uma história sobre um cara, dentista, em torno de vinte e cinco anos. Bonito, inteligente, cheio da grana, dono de bom gosto para a música, para as artes, comida, tudo no seu devido lugar. Uma ótima pessoa, exceto pelo detalhe de que muitos relatavam o quanto era insuportável sentar ao seu lado para conversar sobre qualquer coisa.
Se você conhecesse uma banda nova, ele tinha uma outra melhor. Se você o convidasse para almoçar, ele narrava seus feitos gastronômicos pelas praias do nordeste. Se você tivesse visitado uma bela cachoeira escondida por alguma via alternativa perto da cidade, ele sabia de alguma outra ainda mais bonita.
Por outro lado, também já encontrei um cara genial, capaz de abraçar você em qualquer coisa. Ele sempre se interessava, fazia perguntas, realmente se surpreendia. E isso o tornava extremamente agradável. Você se sentia valorizado, incluído, mesmo quando ele mal sabia sobre o que estava sendo discutido.
Entrar no mundo do outro é se relacionar com o que é oferecido utilizando os referenciais dele. Ouvir entrando em domínios consensuais, se aproximando, acolhendo. Sair de seus próprios preconceitos e limites pré-estabelecidos, da mesma forma que uma pessoa é, de certa forma, obrigada a fazer quando visita um país com outra gastronomia. Não adianta chegar querendo feijoada, você acaba sendo obrigado a comer o que tem.
Uma pessoa capaz de ouvir os seres em seus mundos é alguém que vive em um universo vasto, repleto de novidades e riquezas ainda não descobertas. Ela sabe que todos os que se aproximam podem oferecer infinitas possibilidades e esta acaba se tornando a dimensão de seu próprio mundo.
Enriqueça o que você encontrar
De nada adianta entrar no mundo do outro e não se relacionar com ele de uma maneira positiva. É importante e útil estimular a conversa, alimentá-la, perguntar, valorizar trazendo outras referências, outras visões, ajudar o outro a se expressar, retomar o foco, caso seja necessário, ir construtivamente contra, mas acima de tudo, se envolver de coração.
Ouvir é cocriar, fazer sentido, agir, enriquecer. Não é apenas a habilidade de decodificar sons, mas também de dar importância, atenção, de se relacionar não só com o conteúdo, mas com o interlocutor e todo o seu mundo.
Ouça a si mesmo enquanto ouve o outro
Quem fala pode se se distrair, mudar de foco e depois voltar, sem que isso obrigatoriamente seja um problema. Quando feito com habilidade pode até mesmo ser um recurso de narrativa interessante. Na pior das hipóteses, apenas gera mais fala, torna o percurso mais tortuoso. Para o ouvinte, perder o foco realmente torna a escuta inviável.
Enquanto ouve, é importante não só entrar no mundo do outro mas observar de que forma este mundo impacta o seu próprio sem se confundir, sem se perder. Quais suas reações, de que forma ele o afeta? Será que está se distraindo? Está se mexendo demais, está desconfortável, tentando encerrar o assunto, está indiferente?
Ouvir é construir uma fala mais poderosa
“O fenômeno da comunicação depende não do que é transmitido, mas do que acontece com a pessoa que recebe a mensagem” –Humberto Maturana
Treinar ouvir melhor leva inevitavelmente à construção de uma fala mais poderosa. Repousar, observar a própria mente, entrar e enriquecer o mundo do outro, relacionar-se com a situação por completo, são todas atitudes que conduzem a ações cortantes, diretas, precisas.
Se você ouve melhor, tende a ser mais capaz de detectar e oferecer o que realmente nós precisamos, sem rodeios.
Eu mesmo queria encontrar mais pessoas com essas habilidades, que fossem capazes de atravessar minhas bobagens e me dissessem o que eu preciso, não o que quero ouvir.
E vocês, estão realmente ouvindo? Estão sendo ouvidos?
Mecenas: Schweppes
Meninos falam. Se atropelam em busca de atenção. Homens escutam além das palavras.
Todos têm muito a dizer, mas parte do que nos torna capazes de desenvolver relações melhores é a capacidade em realmente escutar.
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